Abdel-Jalil Akkari é doutor em Ciências da Educação pela Universidade de Genebra (onde atua como professor) e pósdoutor pela Universidade de Baltimore. É consultor da Unesco e diretor de Pesquisas na Haute Ecole Pedagogique. Realiza estudos sobre desigualdades educacionais, Educação comparada e conexões entre culturas e Educação. Em julho último, esteve em Porto Alegre para participar do 3° Congresso Nacional Marista de Educação. Durante sua visita falou com exclusividade ao Extra Classe.
Extra Classe – No Brasil, país em que a Educação privada é de tradição confessional, como fica essa definição de “missão” do professor? Como falar desse conceito sem ultrapassar os limites do profissionalismo? Como encontrar o ponto de equilíbrio entre os diferentes níveis de exigência?
Abdel-Jalil Akkari – É muito difícil dar uma resposta para essa pergunta. Eu vejo que existem dois tipos de cobrança ao professor: a administrativa e a pedagógica. O problema é que sem cobrança administrativa não há como fazer a cobrança pedagógica. O que ocorre muitas vezes é o desequilíbrio entre essas duas. A escola que funciona bem é aquela que possui um bom padrão administrativo. Quando isso ocorre, cada professor se sente responsável pelo progresso da aprendizagem do aluno. O que tenho notado em minhas pesquisas é que o professor está um pouco cansado da cobrança administrativa. Porém, a reforma pedagógica não pode parar por causa da reclamação do professor. Por outro lado, não se deve confundir cobrança administrativa com burocracia e preenchimento de fichinhas e relatórios diários.
EC – Esse cansaço do professor também não passa um pouco pelas exigências dessa nova sociedade da informação?
Akkari – Sim. Esse é um problema universal. O que percebi em todas as partes do mundo é que o professor está cansado. Eu gosto muito de pesquisar na escola e o que se vê é um professor cansado pelo excesso de mudanças, das reclamações dos pais, das exigências crescentes da própria escola e cansado dessa sociedade da informação que o desestabiliza. Mas não é um cansaço generalizado, pois se trata também de um fenômeno social e um problema de comunicação. A Suíça, meu país, ficou um longo período sem realizar reformas na Educação dos anos 40 até os 90 e de lá para cá temos uma reforma por ano, o que é excessivo. São muitas mudanças e adaptações da função docente. Portanto, é preciso pensar melhor as reformas e garantir que elas ocorram de baixo para cima. Uma reforma não pode tomar lugar de outra reforma antes que essa se consolide minimamente. Isso é a reforma pela reforma. Na Europa isso ocorre a reboque das agendas políticas dos governantes e devido à alternância de poder entre diferentes grupos políticos. Quando a direita está no poder as reformas possuem a tendência de voltar à aprendizagem de base. Quando é à esquerda, a ênfase é de uma Educação para a cidadania e para as questões ambientais.
EC – E qual o reflexo disso? No Brasil, essas mudanças de modelo acabam não amadurecendo e o que se tem visto são avaliações baixas do sistema educacional. O que ocorre na Europa?
Akkari – Vou dar um exemplo. Na Suíça, onde o sistema educacionalé bastante descentralizado, cada região tem sua política. São dois ministérios da Educação. A região católica, rural e mais pobre obteve melhores resultados do que as áreas urbanas e mais abastadas como Genebra e Zurique. Nas regiões melhor avaliadas, o modelo é bastante rígido, principalmente no que se refere à disciplina. Já nas regiões mais ricas existe uma multiculturalidade muito grande. A partir disso, se implementou uma reforma para corrigir as distorções do sistema. Essa reforma encontrou problemas de ordem cultural e estrutural. O que quero dizer com tudo isso é que a Educação exige soluções sempre complexas. É preciso que a Educação seja multidimensional para conseguir dar uma resposta.
EC – No Brasil a Educação também passa por sucessivos modismos no que se refere a modelos educacionais. Um modelo mal chega a ser absorvido pelo sistema educacional e outra tendência é implantada, ou pior, misturada, sempre de acordo com as mudanças políticas. É disso que o senhor fala?
Akkari – Exatamente. E gostaria de comentar que isso não ocorre somente aqui no Brasil. Trata-se de um fenômeno mundial. Vou pegar um exemplo concreto, dos ciclos de aprendizagem, que se transformou em uma moda mundial e ditou a maioria das reformas das últimas décadas. Muitas reformas tratam de trabalhar junto às primeiras séries do Fundamental. O problema é que as pesquisas mostram que esse procedimento é melhor para o desenvolvimento social do aluno, mas não são conclusivas no que se refere a se esse formato é melhor para a aprendizagem. Em muitos sistemas escolares se pensa que esse tipo de mudança vai modificar a escola e não é verdade. Além do mais, qualquer mudança precisa de um tempo para aferir resultados. No Brasil se discute muito a reforma curricular, por exemplo. Se diz que não dá resultados e que os alunos não aprendem. Mas não se dá tempo para a reforma acontecer.
EC – O que o senhor tem constatado em suas pesquisas no Brasil?
Akkari – Há alguns anos tenho pesquisado sobre a Educação rural, sobretudo em Minas Gerais. E o que tenho visto é que essa realidade está desconectada do sistema. Muita coisa mudou, principalmente com a LDBEN, mas há muito a avançar. Agora estou fazendo estudo sobre Educação Básica, analisando a questão do nível qualidade pelo ponto de vista do professor. É um trabalho que ainda está avançando. De modo geral, penso que o Ensino Fundamental no Brasil avançou muito do ponto de vista quantitativo. Nos dez últimos anos, cada vez menos crianças estão fora da escola. Por outro lado, muitos alunos saem da escola sem saber ler e escrever. Aí entra a questão da qualidade. Para mim é muito claro que o problema é financiamento. No mundo, todo o sistema educacional que se preze deve se balizar na qualidade. Todos os lugares como França e Suíça iniciaram com ênfase na quantidade há 40 anos, com 50 alunos por sala de aula, para depois chegar à qualidade. E a questão da qualidade não é uma questão meramente educacional, é social, pois passa por temas como empregabilidade e desenvolvimento. Eu sou um otimista. Para mim, o sistema educacional brasileiro pode conseguir rapidamente passar para um padrão conectado ao nível de desenvolvimento do país. Esse é um problema que o Brasil precisa resolver. Do ponto de vista econômico, o país é um ator importante, mas não existe mesma correspondência no campo da Educação, o que destoa de países vizinhos como Argentina, Uruguai e Chile, com sistemas educacionais melhores. Existe esse desequilíbrio que precisa ser resolvido. É estrutural. A legislação evoluiu antes da estrutura. É preciso encontrar outra forma de transferir recursos federais de financiamento para os municípios. Municípios pobres não conseguirão assegurar Educação Básica de qualidade.
Extra Classe – Independente de críticas aos métodos de aferição, o setor privado tem sido mal avaliado. O senhor reconhece como razão desse fenômeno também uma tendência do segmento em aderir de forma gradual a uma espécie de mercantilização da Educação?
Akkari – Vejo algumas razões principais para isso. Sou especialista em Educação comparada e aprendo muito nos locais que visito. Como observador estrangeiro observo que o Ensino Médio – que em outros locais do mundo chamamos Ensino Secundário – é visto no Brasil como uma mera sala de espera para o vestibular. Em muitos países da Europa existe um Ensino Médio em que os estudantes cursam dos 12 aos 19 anos. Ou seja, são sete anos de Ensino Secundário antes de partir para a universidade. É óbvio que essa visão utilitarista do ensino compromete totalmente o processo como um todo. É como se cada etapa não tivesse seu valor em si. As séries iniciais ficam na antesala das séries finais (de quinta à oitava), que por sua vez funcionam como um preparatório para o Ensino Médio, que só serve ao vestibular. É uma visão distorcida e infelizmente aceita pela escola e pela sociedade. De certa forma predominou uma visão de Educação como treinamento, influenciada pelos norte-americanos, que tomou conta do Ensino Médio e desembocou na Educação Superior.
EC – Existe uma crise da profissão docente? Cada vez menos pessoas se interessam pela profissão. Como se resolve isso?
Akkari – Sim, esse problema é real. Mas o Brasil não é um caso isolado, mas aqui é bastante grave. Às vezes, se compara o profissional de ensino com um médico ou um engenheiro. Até podemos comparar numa ótica meramente profissional. Mas precisamos lembrar que no mundo existem 70 milhões de professores trabalhando diariamente. Quantos segmentos empresariais possuem esse número de trabalhadores? Não existe essa quantidade de médicos ou engenheiros, por exemplo. Quando uma profissão é massiva dessa forma, ela vai passar inevitavelmente por crises. É uma tendência mundial que uma profissão com número tão grande de trabalhadores sofra com a precarização. Agora, e o Brasil no meio disso? Se perguntarmos entre alunos de uma boa escola na Suíça quem quer ser professor, encontraremos pelo menos 20% dos melhores alunos que querem exercer a docência. Em uma boa escola brasileira, são pouquíssimos os que querem ser professores, que dirá os melhores. Em uma boa escola de Curitiba, que visitei, o número encontrado foi zero. Penso que a questão dos salários e da formação representam aspectos importantes neste contexto. Além disso, a crise da profissão é diferenciada em cada lugar, mas aqui é maior, se levarmos em conta o bom desenvolvimento econômico. Cria-se também aí um desequilíbrio. Se por um lado, aquela época do professor clássico (carismático) já acabou, agora vivemos o tempo do profissional de ensino inserido em um contexto democrático e da sociedade da informação. É preciso tomar várias medidas estruturais para melhorar o reconhecimento social dos docentes. Porém, o professor também precisa fazer autocrítica para exercer seu trabalho com maior qualidade. De certa forma, é um pouco aquela frase de Paulo Freire: “Tia não, professora sim”.
EC – Mas como desatar este nó?
Akkari – Estamos fazendo em Minas Gerais, Goiás, Paraná e interior de São Paulo uma pesquisa sobre este tema. A idéia é buscar, de forma muito prática, de que forma um professor pode viver de maneira digna sem dobrar a sua carga de trabalho correndo de uma escola para outra, pois é comum profissionais atuarem em vários turnos e em diferentes instituições. Essa é uma especificidade brasileira. Em vários lugares do mundo, os professores possuem um cargo que lhes ocupa todo o dia, que apesar de não ser remunerado com salários altos, lhes permite uma vida digna. E essa é uma solução simples que traz conseqüências benéficas para a qualidade do trabalho do professor. Por outro lado, também é comum os professores responderem quando questionados se os salários influenciam no seu trabalho, que mesmo quando mal-remunerados dão o melhor de si aos alunos. Mas sabemos que não existem verdades absolutas. As soluções e explicações passam por questões complexas também.
EC – Com as novas tecnologias os professores também precisam dispor de mais tempo para dar conta das exigências impostas pela sociedade da informação. Como as instituições (escolas e universidades) podem contribuir para que essas novas responsabilidades, tecnologias, recursos não se transformem num fardo, num peso e num fator de estresse?
Akkari – O profissional da Educação é o único profissional que está exposto a reclamações de todo mundo. Poucos contestam um diagnóstico médico. Mas o docente é sistematicamente questionado, criticado e cobrado pelos gestores, pelos supervisores, pelos alunos, pelos pais e pelos próprios colegas. É um profissional que atua em um contexto tenso. É óbvio que isso afeta a sua postura. O que vejo como uma das soluções para amenizar este ambiente e reduzir esta sensação de cansaço e estresse é a criação de projetos pedagógicos. Sei que aqui no Brasil sempre se fala em projetos político-pedagógicos. Mas o que significa isso? Significa que o peso da responsabilidade deve ser coletivo. Mesmo na escola privada, o que ocorre agora quando um professor tem um problema com um aluno é que isso é suportado individualmente. O problema é que os projetos pedagógicos geralmente vêm de cima e o professor não participa de sua elaboração. Além disso, a linguagem muitas vezes é muito distante da realidade de sala de aula. É preciso levar em consideração essas limitações para superá-las e fazer com que os projetos pedagógicos dêem respostas práticas às demandas reais dos professores e diminuam essa sensação de impotência e cansaço que muitas vezes predomina entre os professores.
EC – Como é a atuação dos sindicatos de professores na Suíça?
Akkari – Quando reformaram o sistema de formação de professores na Suíça, tornou-se necessário mudar o currículo de Pedagogia. A primeira tarefa foi convencer o sindicato dos professores dessa necessidade. Digo isso, porque lá o sindicato não é apenas uma organização corporativa. É muito mais do que isso: é uma instituição que quer ter o controle sobre a qualidade da formação de seus sindicalizados. Tenho percebido no Brasil que a maioria das greves e movimentos ocorrem por motivos salariais. Considero muito salutar quando se extrapola o limite meramente corporativo, e se discute, por exemplo, a qualidade da formação que os profissionais que compõem as diversas categorias de trabalhadores, incluídos os professores, recebem.