História da Educação no Brasil foi marcada por tensionamentos
Berenice Corsetti – Foi uma contribuição importante. A vinda dos jesuítas para o Brasil se dá no século 16, em 1549, quando tivemos a vinda do primeiro Governador-Geral. Os jesuítas receberam o monopólio da Educação brasileira e começaram uma obra que era evangélica e educacional. Foram eles que construíram os principais colégios nesse período de 210 anos. Em 1759 foram expulsos pelo Marquês do Pombal, dentro de um projeto de reorganização de estado português. Era um momento em que não havia nenhuma iniciativa pública no campo educacional, e a saída dos jesuítas significou um grande vazio.
EC – A partir de quando o Estado passa a se ocupar em promover a Educação?
BC – A Educação pública está inserida no projeto republicano como uma promessa de modernização do país. Conceitos como modernização, industrialização, urbanização e Educação passam a fazer parte do ideário republicano. Em 1881 temos a primeira constituição republicana com uma característica forte de separação entre o Estado e a Igreja, quando o Estado vai se colocar como o principal responsável pela expansão da escolarização do Brasil, uma escolarização que era muito tímida e precária. As escolas que tínhamos eram aulas realizadas nas casas. O século 20 vai significar esta virada em termos da participação do Estado no campo educacional. Se pensarmos na realidade do início da República, de 75% a 90% de analfabetos, temos hoje uma escola básica, principalmente de Ensino Fundamental, que vem agregando oportunidade de acesso. Temos com isso um avanço educacional importante, mas não conseguimos superar problemas estruturais gravíssimos.
EC – E por que não conseguimos avançar?
BC – Porque precisamos avançar no campo das políticas públicas. Por exemplo, o direito ao acesso é uma promessa que o modelo liberal, no campo político-educacional, alardeou. No entanto, se nós temos acesso, nós temos uma escola com enormes problemas de qualidade que não consegue – inclusive – reter uma parcela expressiva da população em função de suas condições sócio-econômicas. Essas crianças são reprovadas, se evadem, acabam sendo, de alguma maneira, excluídas por uma outra ponta. Então nós temos que pensar que se nós avançamos em termos de oportunidade, de expansão de vagas, e, portanto, de direito ao acesso, temos que resolver o problema de qualidade da escola, do contrário a cidadania prometida continuará sendo extremamente parcial.
EC – Neste sentido, como a senhora vê a construção das políticas públicas para a Educação?
BC – Falar em políticas públicas no Brasil significa falar de um processo de mais de cem anos. Se temos no início da República o ideário de modernização do Brasil, no qual a Educação era a grande promessa, e daí a expansão do ensino público, por outro lado nós temos, além dos problemas de qualidade, o advento de outras políticas que implicam a nacionalização e a profissionalização do ensino. Por exemplo, a Era Vargas foi um momento importantíssimo de nacionalização do ensino, de vincular a escola ao projeto nacional. Entretanto, foram adotadas medidas muito duras neste período se pensarmos que as populações de origem colonial europeia (alemães e italianos) foram profundamente reprimidas com relação ao uso da língua. Refiro-me à dificuldade da construção de políticas públicas no campo educacional, tendo em vista que elas são vinculadas a um projeto de Estado. Com isso elas sofrem as contingências dos diferentes momentos históricos, dos diferentes projetos de poder que vão se colocando. Analisar políticas educacionais tem muito a ver com a ação do Estado, e de diferentes atores do cenário social. Hoje, por exemplo, vemos os empresários falando em Educação.
EC – Chegamos aqui a dois outros aspectos: a relação públicoprivado e entrada do setor empresarial na escola. Como avalia estas questões?
BC – O público-privado foi sempre uma relação polêmica desde o início da constituição do campo educacional, principalmente no período republicano em que a Educação vai ser expandida. Em primeiro lugar, essa relação confrontava interesses do Estado republicano com a Igreja, principalmente a católica. Isso levou a embates extremamente importantes porque, quando a constituição de 1891 separa Estado e Igreja, o Estado deixa de colaborar com a sustentação material da Igreja. Então ela tem que se recolocar e reocupar o seu papel. Isso vai levar a embates na constituinte de 1933, que foi a preliminar da constituição de 1934. Os católicos se organizam para defender suas ideias, porque acham que a Igreja que tem papel prioritário no campo da educacional e o Estado tem que ser um coadjuvante. Esse embate vai gradativamente sendo substituído por um outro muito sério, que é o embate entre o público (entendido aqui enquanto estatal) e o interesse mercantil que passa a assolar o campo educacional. A partir de um determinado momento histórico, temos um avanço da mercantilização da Educação, que passa a ser considerada como um fator de desenvolvimento econômico e a ser pensada muito mais como uma mercadoria. Principalmente dos anos 90, e de maneira muito particular com as políticas educacionais implementadas pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, quando o ministro de Educação, Paulo Renato de Souza, promoveu uma liberalização do campo educacional, sobretudo no Ensino Superior. Instituições educacionais tradicionais, que sempre pautaram a sua atuação pela qualidade acadêmica, como a Unisinos e as PUCs, passam a sofrer uma concorrência absolutamente desleal como de instituições pequenas que passam a ser autorizadas, que não têm o mesmo compromisso com a qualidade do ensino. Nesse processo vemos a crise de grandes e importantes instituições que levam, mesmo que no campo privado, um projeto humanista de sociedade. Elas são confrontadas com um projeto de mercado, cujo único objetivo é o lucro. Essas novas instituições, sabendo do valor que na sociedade do conhecimento ganha a Educação, passam a transformá-la numa mercadoria. O que fica em risco na realidade é um projeto de humanização que, se por um lado passa pela nossa defesa intransigente da Educação pública, também reconhece a importância histórica.
EC – Neste quadro, a avaliação, a mensuração dos resultados vêm sendo temas pontuais nos diferentes encaminhamentos no setor educacional brasileiro.
BC – Essa é uma questão extremamente complexa e polêmica. A avaliação faz parte do processo de ensino e de aprendizagem. É um momento extremamente importante em que podemos diagnosticar – se entendida como um processo – os avanços obtidos na aprendizagem dos alunos, mas também seus limites. A avaliação ganha importância nesse processo de constituição de políticas educacionais do Brasil, lá nos anos 30, com educadores republicanos extremamente preocupados com a qualidade da escola. Anísio Teixeira é símbolo desta referência, mas temos outros como Fernando de Azevedo, Manuel Lourenço Filho, que, junto com outros, constituem o que chamamos movimento dos educadores da Educação nova. Em 1932 eles lançam um manifesto, famoso na história brasileira, que criou um enorme rolo com a Igreja, porque ali defendia tacitamente a Educação pública e a laicização do ensino, ou seja, a saída de ideologias religiosas. Esse momento histórico é um marco de constituição da Educação liberal do projeto republicano onde a questão da qualidade da escola começa a ser discutida.
EC – Mas hoje, como isso se dá?
BC – Se dermos um salto para a realidade contemporânea, veremos que a avaliação passa a ser a grande pedra de toque das políticas educacionais atuais. E isso vem muito influenciado pelos países desenvolvidos que passaram a aplicar provas. Não só isso, nós tivemos também o papel importante de organismos internacionais, como é o caso do Banco Mundial, que para fornecer empréstimos aos países em desenvolvimento estabelecem um conjunto de condicinalidades políticas. Isso ocorre muito nos anos 80 e 90, quando a avaliação é uma exigência do Banco Mundial. A partir daí, passamos a viver uma sanha de índices. É quando se constitui no Brasil o Sistema de Avaliação da Educação Básica, o famoso Saeb, seguido de medidas como o Enem, que está tão em voga e polêmico hoje, e o provão para as universidades, que foi muito questionado e remeteu à mobilização contrária do movimento estudantil. O provão, que vai ser substituído pelo Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes), do governo Lula, estabelece um ranqueamento das universidades. Então nós temos uma aproximação muito grande da Educação com a lógica do mercado.
EC – Por que a senhora afirma que hoje os empresários pensam na Educação de todos as crianças e jovens do Brasil e não apenas na Educação de seus filhos?
BC – Por que na lógica empresarial atual, a Educação passa a ser considerada como uma variável do desenvolvimento econômico, mostrando que há uma relação entre anos de escolarização e, por exemplo, os salários que os profissionais recebem. A ideia de que a escola deve desenvolver competências e habilidades básicas para a formação do trabalhador é o que leva os empresários a defenderem um determinado tipo de avaliação, ou seja, aquela que desenvolve competências, e aí nós estamos aderindo a toda uma pedagogia das competências muito desenvolvida na década de 90, e que realmente instrumentaliza a Educação, pensando no papel do futuro trabalhador quando ele é inserido no mercado de trabalho.
EC – Mas não é uma visão limitadora da escola?
BC – No meu ponto de vista a escola tem um papel fundamental sim em preparar os cidadãos para que eles tenham condições de ocupar o seu lugar social, tendo inclusive seu direito ao trabalho. A grande questão é, se nós pensamos apenas numa escolarização básica, que dê as competências instrumentais para o mundo do trabalho, e depois a formação do trabalhador vai ser completada na empresa, eu fico me perguntando se efetivamente essa Educação está oportunizando a todos os brasileiros a efetiva disputa democrática pelas melhores oportunidades no mercado de trabalho? Eu pergunto, aquelas crianças e jovens filhos das famílias mais bem dotadas economicamente, elas não terão uma formação que ultrapasse esse perfil de formação de competências e habilidades básicas? Eu penso que a escola tem que ir para além de uma formação que instrumentalize para o mercado de trabalho. E aqui me refiro a formação do cidadão integral, capaz de exercer as suas funções sociais, entendendo seus direitos e deveres. Existem, entretanto, conceitos de cidadania como o defendido por certos organismos internacionais que fala da moderna cidadania que é preparar o cidadão para a competitividade. Ora, o mundo que eu sonho não é o mundo em que os cidadãos vão se preparar para só competirem entre si, porque aí a regra que vale é do salve-se quem puder. A escola tem um papel que vai para além do seu caráter de formação de quadros para o mercado. E aqui falo na escola nos seus mais diferentes níveis: da Educação
Infantil ao Ensino Superior, à pós-graduação.
EC – O que significa neste momento a proposta de elaboração do Sistema Nacional de Educação brasileiro?
BC – A conferência (Conferência Nacional de Educação) se coloca como um momento histórico precioso, mas há muitos riscos. Por exemplo, a proposta em paralelo da constituição de um sistema nacional de avaliação pode realmente, se não for bem pensado e construído como um processo que contemple todo o andar de alunos e professores na construção do que chamamos de ensino-aprendizagem, se constituir numa enorme camisa de forças, amarrada em todas as suas instâncias. Temos que pensar, por exemplo, em como introduzir na avaliação a questão estrutural da escola: quantos alunos têm por sala de aula? Quais são as efetivas condições de recursos das escolas? Quando eu penso na realidade do Rio Grande do Sul em que aulas estão sendo ministradas em contêineres? Fico me perguntando se esse professor, quando tiver seus alunos avaliados, essa condição estrutural será considerada? A avaliação tem que ser um auxiliar e não um exercício de premiação e punição como em alguns estados, e infelizmente aqui no Rio Grande do Sul é o que se sinaliza. Avaliação não é para punir ou premiar, é para diagnosticar e ajudar o sujeito na escola a melhorar o seu próprio percurso.