GERAL

Entre a política e a moralidade

120 anos depois do fim do Império no Brasil, os vícios políticos permanecem os mesmos
Por Flavia Bemfica / Publicado em 13 de setembro de 2009

No próximo mês de novembro, o Brasil vai comemorar os 120 anos da Proclamação da República. As comemorações acontecem em um momento especialmente delicado no que se refere aos chamados “valores e instituições republicanos”. As denúncias e escândalos envolvendo a Câmara dos Deputados e o Senado alimentam diariamente o noticiário político desde o início do ano. A CPI da Petrobras e um mal explicado possível encontro entre a ministra chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff (PT), e a ex-secretária da Receita Federal, Lina Vieira, evidenciam como ocorrem os encaminhamentos a respeito de questões referentes ao zelo com o patrimônio público. A versão local dos escândalos atinge diretamente o Executivo. A governadora Yeda Crusius (PSDB) foi denunciada pelo Ministério Público Federal (MPF) por improbidade administrativa, em uma ação onde há outros oito “réus”, entre eles o presidente do Tribunal de Contas do Estado (TCE), João Luiz Vargas, o deputado federal José Otávio Germano (PP), os deputados estaduais Luiz Fernando Záchia (PMDB) e Frederico Antunes (PP). Yeda é alvo ainda de procedimento investigatório que corre na Procuradoria Geral da República (PGR) em Brasília. Nacional ou regional, a sucessão de fatos vem obrigando o país a ressuscitar velhas discussões sobre a falta de ética na política, a corrupção, a apropriação do público pelo privado e, somada a todos estes fatores, a quase indiferença da população. Nas páginas que seguem, especialistas e intelectuais retomam clássicos da Filosofia, da Ciência Política, da Sociologia e da Antropologia para tentar explicar por que, transcorridos 120 anos de instalação da República, o país mantém na política práticas da época colonialista, que custam caro não apenas aos cofres públicos, mas também ao seu autorreconhecimento como nação.

Desde os tempos de Platão
A discussão sobre se as regras da política podem ser submetidas às regras da moral é uma espécie de “pilar” do estudo da política e pode-se dizer que está presente em todos os clássicos desde Platão. O tema foi abordado por Nicolau Maquiavel, Thomas Hobbes, Emmanuel Kant e Max Weber, só para citar alguns. A distinção entre política e moral assim como a conhecemos – no sentido de que o que é obrigatório na moral nem sempre o é na política e de que o que é lícito na política pode ser moralmente ilícito – é atribuída a Maquiavel. Grosso modo, a conhecida teoria do pensador italiano estabelece que enquanto que moralmente uma ação é boa ou má tomando-se por base uma norma pré estabelecida, um critério associado ao conceito de bem, na política o que determina se ela é boa ou má é seu resultado. Popularmente, a teoria foi reduzida ao conhecido “os fins justificam os meios”.

Arte: Edgar Vasques

Arte: Edgar Vasques

No estudo e mesmo na prática política, a teoria maquiavélica não é única, apesar de sua força em diferentes correntes do pensamento. Além disso, a distinção entre tipos de éticas está presente em várias outras áreas da ação humana. Existem, por exemplo, a ética do mercado, a do Direito ou a da Medicina. As diferenciações são estabelecidas de forma a que se entenda o quanto regras de conduta pessoal, do trato entre indivíduos, nem sempre podem ser aplicadas a grupos. Mesmo seguindo esta linha, a política teria algumas características exclusivas, uma vez que trataria tão somente dos deveres para com os outros, sem a distinção entre estes e os deveres para consigo mesmo.

A convivência entre contrários
O professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Caxias do Sul (UCS) e professor titular aposentado da Faculdade de Filosofia da Ufrgs, João Carlos Brum Torres, argumenta que na vida privada nossa ética se baseia em pontos como o respeito aos direitos dos outros e podemos escolher o núcleo de relações. Na política, ela é um terreno de representação comunitária onde contrários são obrigados a conviver e a tomar decisões coletivas. A partir daí, se estabelece um princípio de transação.

O professor é considerado uma autoridade no assunto porque, ao contrário da maior parte dos filósofos e cientistas políticos, não se restringiu aos estudos teóricos. Como integrante de diferentes governos – foi secretário municipal em Porto Alegre, diretor do Banco de Desenvolvimento do Estado do RS (Badesul) e por duas vezes secretário de Estado – pôde observar na prática como a política se desenvolve. “Na vida privada, quando ocorre um rompimento sério por diferenças de posições, ele é definitivo. Na política, um rompimento nunca pode ser para sempre, porque o seu contrário, ele não desaparece, e, no futuro, pode até vir a ser um aliado. Isso, do ponto de vista da ética privada, é escandaloso”. Uma segunda decorrência, segundo o professor, também é importante. O fato de que a ação política tem sempre um sentido estratégico. “É necessário ‘enquadrar’ o adversário. Parte disso se faz com argumentos, e parte, levando em conta os interesses desses adversários, fazendo concessões. Por ser estratégico, o movimento perde em transparência”, resume Brum Torres.

Entender a política não é para ingênuos
É fato para especialistas e pensadores que as regras que valem para a política não são aquelas da ética individual, e que aplicar a segunda à primeira seria uma grande ingenuidade. Mas isso, asseguram os próprios filósofos e cientistas políticos, não significa que a política seja desprovida de regras. Ao contrário. Na obra Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos, de Norberto Bobbio e Michelangelo Bovero, além de um extenso apanhado sobre a relação entre política e moral, destacam que, mesmo na teoria maquiavélica, os fins só justificariam os meios no caso de a ação política ‘imoral’ ser legitimada por ‘grandes coisas’ ou ‘a saúde da pátria’. “Perseguir o poder pelo poder significaria transformar um meio em um fim em si mesmo”, assinalam. Tomando como exemplo a corrupção, os autores lembram que o que torna moralmente ilícita toda a forma de corrupção política “é a fundamentadíssima presunção de que o homem político que se deixa corromper colocou o interesse individual à frente do interesse coletivo, o bem próprio à frente do bem comum, a saúde da própria pessoa e da própria família à frente da saúde da pátria. E assim fazendo faltou ao dever de quem se dedica ao exercício da atividade política, cumprindo uma ação politicamente incorreta”. Alguém lembrou dos políticos gaúchos denunciados pelo Ministério Público Federal (MPF). Ou do presidente do Senado, José Sarney?

“O Sarney é um caso emblemático, porque é um homem culto e certamente poderia fazer uma explanação teórica sobre a ética bem melhor do que muitos, mas o que ele sente e faz é outra história”, completa o professor João Carlos Brum Torres. Segundo o professor, os escândalos pelos quais a política brasileira passa no momento remetem justamente ao desrespeito dos limites da própria política. “As transações jamais podem ocorrer em cima de interesses materiais e nem dizer respeito a bens públicos. A barganha política não pode ser transformada em patrimonial. A própria transação política é limitada e não pode ocorrer quando claramente contrária ao bem público”.

Falta freio ético no país do ‘jeitinho’
No caso brasileiro, admite Brum Torres, a questão cultural precisa ser levada em conta quando se analisam as práticas políticas. “As grandes etapas dos marcadores da nossa história foram todas transacionadas ou quase isso. Vestiram-se instituições republicanas e um discurso republicano sem que isso partisse das entranhas da sociedade, que é muito laica no sentido do prazer e do sucesso material. Parece não existir um freio ético de base religiosa e muito menos um laico de base republicana”.

O professor de Ciência Política na Universidade de Brasília (UnB) e membro do conselho diretor da Ong Transparência Brasil, David Fleischer, tem avaliação semelhante. Para o professor, vários dos atos de Sarney, como o benefício de parentes e amigos, encontram respaldo entre a população e, em parte, é por isso que a cobrança da sociedade ainda é pouco acentuada. “O país não abandonou o ‘jeitinho’. O problema é que existe uma linha muito tênue entre o ‘jeitinho’ e o crime. Associada a isso ainda existe a velha confusão entre público e privado. Você observa um político referirse ao governo dizendo ‘o meu governo’. O sentido é este mesmo: o governo é meu, eu sou dono, ele entende que lutou para conquistar isso, como se fosse uma propriedade. Não é”.

Há uma série de medidas que podem ser adotadas no curto prazo para reverter a situação, mas Fleischer aposta na mudança cultural. “Tem que começar a trabalhar isso lá na escola sim”. Como integrante do Transparência Brasil, o professor visita escolas em Brasília, para conversar sobre temas como cidadania com os alunos. “Falamos, por exemplo, sobre a cola, que é vista como a coisa mais comum. Ou sobre práticas dos pais, que compram filmes piratas, ou, na frente das crianças, dirigem-se ao comércio e perguntam os preços de uma mesma mercadoria com nota e sem nota fiscal”.

O professor ressalva que não está entre os que acreditam que o problema seja uma espécie de exclusividade do país, apesar das questões culturais. “Nos Estados Unidos, as empresas não fazem caixa dois porque, se forem pegas, o ônus é muito alto. Se não há caixa dois interno, a empresa vai ficar muito relutante em dar dinheiro para um político via caixa dois de campanha. É preciso amarrar todas as pontas”.

É preciso fortalecer o conceito de bem comum
Especialistas de todas as áreas do conhecimento ligadas às chamadas ciências humanas já se debruçaram sobre as particularidades da cultura brasileira para tentar explicar a combinação que permite que as denúncias de corrupção e de beneficiamento privado a partir de recursos públicos se sucedam há décadas, com diferentes sujeitos, apesar das denúncias recorrentes. A conclusão é de que também uma combinação – de medidas de curto a longo prazos – é que pode diminuir em muito o problema.

“A corrupção no Brasil remete à própria construção do Estado nacional e à persistência de traços de atraso como o patrimonialismo, a truculência e a pouca diferenciação entre a esfera pública e a privada. Para fazer frente a isso é necessária uma experiência na qual são importantes tanto instituições democráticas como regras de responsabilização. Mas isso é insuficiente. É necessário fortalecer uma cultura política: comportamentos, ideias, ações que resgatem a dimensão republicana, ou do bem comum”, explica o jurista, professor titular de Direito Constitucional e ex-diretor da Faculdade de Direito da Ufrgs, Eduardo Carrion.

Carrion defende que os avanços não dependem exclusivamente de reformas constitucionais: podem ser obtidos via reformas na legislação ordinária e com a aplicação de fato das leis referentes à fiscalização e responsabilização de dirigentes e representantes políticos. Cita a mudança na forma de financiamento das eleições, o aperfeiçoamento da representação proporcional e o fim da reeleição para cargos executivos. “O desvio de recursos decorrente da corrupção tem um alto custo social não só porque o desvio compromete as políticas sociais, mas porque fragiliza o contrato social, ou seja, os referenciais coletivos e de solidariedade. Isso precisa ser evidenciado”.

No RS a fiscalização das contas ainda é feita em sigilo
A questão da fiscalização é outro ponto nevrálgico. “As auditorias como as realizadas pelos Tribunais de Contas são praticamente contábeis. Ora, normalmente os desvios não vão para os balancetes”, lembra Brum Torres. Quem estuda a corrupção na política sabe que os corruptos não raro são especialistas em Direito, Economia ou Administração que conhecem como poucos as brechas legais, as artimanhas contábeis, a dificuldade na obtenção de provas consistentes, a lentidão dos processos e a falta de informação generalizada. No RS, por exemplo, a Contadoria e Auditoria Geral do Estado (Cage), vinculada à Secretaria da Fazenda Estadual, realiza auditorias regulares nos diferentes órgãos da administração. Os resultados, porém, não são divulgados. São encaminhados em caráter sigiloso para a Comissão de Finanças da Assembleia Legislativa e, não raro, acabam nos arquivos sem serem consultados. Na Casa, tramita projeto para que os resultados das auditorias tornem-se públicos. Por enquanto, sem decisão.

Reforma e fiscalização
Entre as medidas que poderiam ser implementadas independente da longa mudança cultural, três são uma espécie de unanimidade: o fim do financiamento privado de campanhas; a profissionalização dos Tribunais de Contas (TCEs) e o fortalecimento dos órgãos de fiscalização. “O financiamento privado cria laços, amarras, privatiza a carreira política. O político fica em uma situação assim de, pelo menos, manter-se atento aos interesses do financiador, para citar os casos mais inocentes”, resume o professor João Carlos Brum Torres.

A situação dos TCEs também incomoda aos especialistas. “Como é que o sujeito chega ao Tribunal, que tem como tarefa fiscalizar as contas do poder público? Tornar-se conselheiro é um presente para deputados em fim de carreira. Este mecanismo precisa mudar”, argumenta o coordenador de Projetos da ONG Transparência Brasil, Fabiano Angélico. Ele refere-se ao fato de que as chamadas cortes de contas são compostas por uma mescla de deputados indicados por seus pares e servidores de carreira na qual os primeiros são maioria, seguindo a divisão estabelecida na Constituição Federal (reproduzida pelas estaduais): dois terços de membros indicados pelo Congresso Nacional, no caso da União, e pelas Assembleias Legislativas nos estados e um terço de técnicos. Quando a totalidade resulta em número ímpar, sempre é possível um arredondamento. No RS, por exemplo, dos sete conselheiros, cinco são ex-deputados e dois servidores de carreira.

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