“O Visconde é que estava certo!”
Extra Classe – É correto dizer que vivemos hoje o mesmo debate dos tempos da campanha O petróleo é nosso?
Carlos Lessa – Vou responder contanto um pouco de história. O Brasil, depois da segunda guerra mundial, percebeu com absoluta clareza que o petróleo havia sido o alicerce da vitória americana e que nenhum país poderia prosperar se não tivesse uma economia de petróleo. O que significa ter, no mínimo, o refino e a distribuição e, no máximo, uma produção de petróleo própria. Quando terminou a guerra, iniciou-se no país uma discussão enorme a respeito de o Brasil ter ou não petróleo e se poderia ter ou não uma empresa nacional para a exploração. Havia uma corrente absolutamente pessimista que dizia que não havia petróleo, e dentro deste mesmo segmento os que afirmavam que mesmo que tivesse, não teríamos competência gerencial, tecnológica, financeira ou industrial para a exploração. Essa gente dizia o seguinte: “A melhor solução para o Brasil é entregar ao setor privado todas as atividades ligadas ao petróleo e abrir ao capital estrangeiro a presença nesta economia”. Isso era rotulado de entreguismo. Do outro lado estava a visão nacionalista que dizia o seguinte: “é impossível não haver petróleo, dado o tamanho do território nacional e que todos os nossos vizinhos o possuíam”. Diziam também que o Brasil podia, sim, criar sua companhia estatal de petróleo. O México já havia feito e a Itália de Mussolini também. Havia, já, algumas estatais de petróleo no mundo, e bem-sucedidas. Ocorreu, portanto, uma discussão muito forte em torno da organização da economia do petróleo desde o final da guerra até o início dos anos 50.
EC – E a relação com os EUA?
Lessa – Nesta época esperavase que houvesse apoio norte-americano para a reconstrução da infraestrutura nas áreas de transporte e energia. Seria uma espécie de plano Marshall. Havia até uma comissão mista Brasil/EUA para avaliar o que seria feito. Desta comissão saiu o BNDES, porém nada de cooperação americana para nenhum dos projetos brasileiros. Veio a guerra da Coreia e os estadunidenses desmantelaram qualquer possibilidade de cooperação com a gente. Ao mesmo tempo, pensou-se que seria o início de uma terceira guerra mundial, num momento em que estávamos com nossa infraestrutura arrebentada e sem uma economia de petróleo. Com isso, a questão do petróleo ganhou grande urgência. Então, se os americanos não davam dinheiro para recuperar as ferrovias e as hidrovias, a única solução seria tentar viabilizar as rodovias. Foi então criado o Plano Rodoviário Nacional e um imposto único sobre combustíveis e derivados para captar recursos para a construção de estradas. Ao mesmo tempo, era absolutamente necessário equacionar a questão do petróleo.
EC – Como foi o debate na época?
Lessa – O quebra-pau foi generalizado e os nacionalistas ganharam, pois tinham do seu lado a maioria maciça de engenheiros, estudantes e militares, além de vários segmentos políticos que fizeram uma campanha extremamente bem sucedida. Em cima disso, Getúlio Vargas manda um projeto feito por Rômulo de Almeida e que é superado pela própria oposição, pois cada um queria ser mais nacionalista do que o outro, para ficar bem diante do eleitorado. O sonho brasileiro era a fabricação de motores à explosão. Quando é criada no Brasil a Fábrica Nacional de Motores (FNM) para caminhões, que resultou nos famosos caminhões “Fe -Ne-Mê”. Além desta, funda-se uma fábrica de conservação de motores de aviação. Estava claro que se o país não tivesse caminhões e aviões não teria potência militar. Em resumo, a comissão Brasil/EUA não levou a nada, mas resultou disso um estudo feito por Celso Furtado a pedido do BNDES que se transformou no livro A economia brasileira, que serviu de base para o plano de metas de Juscelino Kubitsheck. Ele se agarrou naquilo: no plano de metas estabelecido por aquela comissão e na ideia da malha rodoviária, colocando no centro do discurso a indústria automobilística. Então, nesse período, o Brasil optou por quatro coisas: pela modalidade rodoviária, pelo motor à explosão, pelo petróleo estatal e pela indústria automobilística (como coração da passagem do Brasil para a modernidade). Não tem nada mais simbólico do que um fusca feito no Brasil, desfilando na Avenida Rio Branco, movido por gasolina produzida em uma refinaria da Petrobras.
EC – Então os paralelos são muitos com os dias de hoje?
Lessa – Em um artigo meu para o Valor Econômico (ainda não havia sido publicado no momento da entrevista) digo que minha geração leu O Poço do Visconde, de Monteiro Lobato, que é um livro infantil. Neste livro o autor fala nos maus brasileiros que foram desmoralizados pela descoberta do poço no Sítio do Pica-pau Amarelo, da Dona Benta. Então, se o Visconde de Sabugosa encontrou petróleo e furou um poço, junto com seus amigos, Emília, o Rinoceronte e o pessoal lá do Sítio provou que era possível. O Visconde é que estava certo! Enfim, era uma história para crianças, porém, o que ele fez foi dizer para toda a minha geração que quem dizia que o Brasil não tinha petróleo era um mau brasileiro. O discurso entreguista de ontem afirmava que o país não tinha competência científica, financeira, nem gerencial para explorar petróleo. Os entreguistas de hoje não podem mais dizer que não temos competência, já que a Petrobras figura entre as mais bem sucedidas do mundo. O que eles dizem é que esse petróleo vai virar mico. Basicamente afirmam que a preocupação com o meio ambiente vai reduzir o consumo de petróleo drasticamente e que se passará a consumir combustíveis alternativos. Alegam também que teríamos que vender agora enquanto esse óleo ainda tem valor de mercado e que para isso precisamos de cooperação de empresas estrangeiras, pois elas sabem operar redes de produção e comercialização extensas. Esses três argumentos são inteiramente falaciosos.
EC – Explique melhor.
Lessa – Não existe nenhuma descoberta de combustível que substitua o outro. O que existe é um combustível que se torna muito mais dinâmico do que outro. Quando o petróleo surgiu, no final do século 19, não acabou com o carvão, que foi o combustível da primeira revolução industrial. Quando o petróleo passou a ser o combustível dinâmico da segunda revolução industrial, o carvão não deixou de existir e continua sendo insumo importantíssimo na metalurgia, siderurgia e termoeletricidade.
EC – Até porque o consumo de energia também cresce exponencialmente. É isso?
Lessa – Um novo energético empurra para frente a tecnologia e o antigo permanece. Vamos supor que venha uma nova fonte de bionergia. Isso vai ter um custo de produção. Quando isso ocorrer, os países vão querer explorar ao máximo possível o petróleo existente. No Canadá, por exemplo, existe petróleo, mas fica numa coisa chamada areia betuminosa. A Venezulela tem muito petróleo, mas também tem um óleo horroroso chamado pure oil que é quase um asfalto. Hoje não é possível nem extrair da areia betuminosa nem este pure oil venezuelano. O mesmo acontece com o Cazaquistão e com o interior da ex-União Soviética, pois não têm oleodutos, sistema de transporte, degelo, etc. Se o preço do petróleo subir vão explorar o óleo do Alasca, do Canadá, da Venezuela; vão entrar por dentro da Ásia Central, assim como nós agora chegamos ao Pré-sal. Esse petróleo aguenta desde que o barril custe mais do que 40 dólares. O que aconteceu com os países como Arábia e Iraque, que possuem petróleo à flor-da-terra, quando o barril passou de 40 dólares? Ganharam muito dinheiro, mas não se desenvolveram. Nenhum país exportador de petróleo bruto deu certo até agora, exceto a Noruega. Por isso dizemos que o Brasil não pode ser o Iraque, mas uma Noruega continental.
EC – E a Indonésia que exportou o barril a 2 dólares e agora importa a 147?
Lessa – Se arrebentou toda. Eu comecei a utilizar esse exemplo e os maus brasileiros, iguais aqueles do Monteiro Lobato, inventaram esse argumento de que vão criar um produto que transformará o petróleo em mico.
EC – E as outras alegações da oposição em relação ao Pré-sal?
Lessa – Eles não podem dizer que a Petrobras não tem competência para explorar. Podem só dizer que não tem tamanho para dar conta de tudo isso.
EC – Como o senhor avalia a proposta do governo de criar uma nova empresa estatal?
Lessa – A nova empresa teria todo o petróleo do subsolo brasileiro e responderia à existência disso na Constituição Brasileira. O regime de concessão, instituído durante o governo FHC, dizia o seguinte: o petróleo que está embaixo da terra é do Brasil, mas depois de extraído é da concessionária, que pode fazer com o mineral o que quiser, ou seja, exportá-lo. No sistema de partilha, proposto pelo governo Lula, isso não ocorre. O Estado é que define onde vai furar e o que vai produzir. Ao insistir no sistema de partilha, o atual governo está tentando voltar ao que era nos tempos de Getúlio Vargas. O controle estratégico sobre o petróleo volta a ser do Estado Nacional Brasileiro. O caso da Petrobras é outra coisa. Como foi ela que encontrou o Pré-sal terá direito a pelo menos 30%, mas pode chegar a 100%. Se o Estado definir que só vai explorar o Pré-sal no ritmo que a Petrobras puder, não haverá interferência estrangeira nem da iniciativa privada nacional.
EC – Isso também não fica reforçado pelo novo marco regulatório proposto pelo governo?
Lessa – Exatamente. Mais ainda. O que irritou os entreguistas, com o novo marco regulatório é que: como os campos são contínuos, já se sabe que a partir de Tupi e de Yara (os dois campos que já estão em pré-produção) que a reserva deles é maior do que a do lote concedido. Tudo isso é propriedade do Estado e não vai ser leiloado. Isso vai capitalizar a Petrobras em R$ 50 bilhões. Aí os acionistas brasileiros e internacionais ou chegam com o dinheiro ou perdem em participação. No meu entendimento, toda a política que o Lula fez até agora está correta. No meu entender, os maus brasileiros têm muitas críticas, mas até agora eu não consegui ver problemas na proposta.
EC – A oposição acusa o governo de colocar esse tema em ano eleitoral. Como o senhor vê isso?
Lessa – Esse argumento é fantástico. É que eles, os conservadores, sabem que vai ser muito difícil defender a posição entreguista diante dos holofotes da opinião pública. Isso é feito com mais facilidade quando a vigilância social é menor. O Rio Grande do Sul, por exemplo, está dando uma lição para o Brasil, mais uma vez, nesse sentido de vigilância.
EC – Quais os principais riscos dessa mudança de política para o petróleo?
Lessa – Tem uma coisa que eu não entendi ainda e tenho medo. Eu acho péssimo o Brasil exportar petróleo cru a não ser em situações muito calibradas. Não podemos ser vítimas da doença holandesa, o que pode ser uma tragédia, pois isso inflacionaria a entrada de divisas estrangeiras e poderia dificultar a produção interna do país nos outros setores. Acaba tendo de importar alface. Não podemos ficar reféns do petróleo. Em alguns países isso desmantelou a rede produtiva e é a isso que chamamos de maldição do recurso natural.