Quando o trabalho gera dor e sofrimento
Com um faturamento anual próximo dos 6 bilhões de dólares e participação de 3,8% no total das exportações do país * em 2009, a avicultura é uma das atividades que mais cresce na economia brasileira. O setor responde pela geração de meio milhão de empregos diretos, sendo 160 mil na região Sul e cerca de 25 mil só no Rio Grande do Sul. O Brasil é responsável por 40% do comércio mundial de carne de frango, o maior exportador do mundo, e o terceiro em produção, com 11 milhões de toneladas/ano.
Foto: Comunicação Social
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A vitalidade do setor é ressaltada pela Associação Brasileira dos Produtores e Exportadores de Frangos (Abef)**, que evidencia nos números o bom desempenho desse mercado mesmo em tempos de crise cambial. Nessa conta, no entanto, as empresas que dominam a avicultura não consideram o passivo social causado pelo adoecimento de trabalhadores nos frigoríficos. O problema virou até objeto de investigação do Ministério Público do Trabalho desde 2006.
As doenças relacionadas à rotina de esforço repetitivo, extensas jornadas e ambiente gelado na linha de corte, embalagem e congelamento de carne de aves já atingem 20% dos trabalhadores. “Isso caracteriza uma epidemia nacional”, alerta o procurador do MPT de Caxias do Sul, Ricardo Garcia.
As condições de trabalho nos frigoríficos do setor avícola vêm sendo investigadas por uma forçatarefa criada pela Coordenadoria Nacional de Defesa do Meio Ambiente do Trabalho (Codemat) do Ministério Público do Trabalho. “As condições são absolutamente incompatíveis com a saúde física e mental dos trabalhadores e estão produzindo uma legião de jovens mutilados”, observa o procurador do Trabalho de Chapecó (SC) e membro do Codemat, Sandro Eduardo Sardá. Segundo ele, as jornadas de trabalho chegam a 14 horas diárias, enquanto o MPT defende 36 horas semanais. De acordo com o procurador, os dados do INSS sobre doenças ocupacionais nos estados da região Sul, somados Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás, mostram que a avicultura lidera os casos de afastamentos previdenciários. “Nenhuma outra atividade econômica gerou tanto adoecimento nesses estados quanto os frigoríficos”, ressalta.
De acordo com a médica do trabalho e auditora de segurança e saúde do trabalhador da Delegacia Regional do Trabalho de Porto Alegre, Iara Hudson, a avicultura apresenta o segundo maior índice de trabalhadores afastados por LER/Dort no RS, sendo superada apenas pela indústria automobilística. Dos 240 casos avaliados pela DRT, 90% são subnotificações, ou seja, as empresas não emitem a Comunicação de Acidente do Trabalho (CAT).
No estado, o Ministério Público do Trabalho já inspecionou plantas das empresas Penasul, Frangosul, Nicolini, Frinal, Carrer, Chesini e Agrosul. De oito unidades visitadas pelos procuradores, sete foram interditadas por falta de segurança do maquinário e das instalações. “O ambiente úmido e frio causa adoecimento. Os movimentos repetitivos, o ritmo intenso de trabalho e a pressão das chefias, que chega ao assédio moral, são causas de depressão e outras enfermidades mentais, de Lesões por Esforço Repetitivo LER/Dort , que já são epidemia nacional”, ressalta Garcia, representante da força-tarefa do MPT no estado.
Para o presidente da Federação dos Trabalhadores nas Indústrias da Alimentação (FTIA/RS), Caio Reinhardt, as empresas priorizam a produtividade e o lucro, sem se importar com a saúde dos trabalhadores. “O ritmo e as condições de trabalho nos frigoríficos no estado são desumanas. Para muitos trabalhadores, a avicultura representa a opção de acesso ao mercado de trabalho, mas o primeiro emprego muitas vezes se transforma no último, porque depois de dois anos nesse ritmo de trabalho ele fica incapacitado para qualquer atividade”. Luiz Fernando Ross, presidente da Associação Gaúcha de Avicultura (Asgav), afirma que as empresas estão desenvolvendo políticas de atenção à saúde do trabalhador junto com a entidade. “É um trabalho bastante aprofundado, com estudo de pausas para descanso, mudanças de posição durante a jornada e um sistema de gerenciamento de recursos humanos para a redução das doenças ocupacionais”, argumenta o dirigente. Ross diz que a estimativa de que 20% dos trabalhadores estão doentes “não expressa uma realidade”.
MEC fecha o cerco
Foto: René Cabrales
“Pode pesquisar na periferia que você vai encontrar uma legião de jovens e mulheres mutilados”, desafia Paulo Machado, vice-presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Alimentação de Passo Fundo. A planta da Doux Frangosul instalada no município, diz, é a única opção de trabalho para muitas famílias da região, o que potencializa as doenças ocupacionais. “A empresa obriga as pessoas a trabalharem doentes, medicadas com analgésicos, e não emite CAT. A Justiça do Trabalho não aceita a maioria das denúncias”, aponta.
Gerci dos Santos, 53 anos, relata que, depois de 8 anos trabalhando na evisceração de frangos, perdeu os movimentos de uma das mãos. Depois de uma cirurgia, foi reintegrado, mas os problemas nas articulações voltaram. “Não tinha mais forças para puxar a linha e pendurar os frangos, sentia muita dor. Os médicos da empresa te forçam a trabalhar doente, na base de diclofenaco e paracetamol (analgésicos). O que mais tem é gente trabalhando enfaixada, com os pulsos inchados”, relata Santos. Ele conta que teve de recorrer a um médico particular para receber tratamento adequado.
Depois de uma década trabalhando na linha de corte da indústria, Loreci Mello, 40 anos, espera sua aposentadoria por invalidez. Após três cirurgias para drenar as articulações, as mãos perderam sensibilidade e os movimentos dos dedos provocam muita dor. “Nos últimos tempos, me entupiam de remédios, eu trabalhava dopada. Quando não suportei mais, me deram licença de saúde ao invés de encaminhar como acidente de trabalho. Hoje, os remédios são para dormir”.
Foto: Gilson Camargo
Em Montenegro, Darina dos Santos, 47 anos, conta que está enfrentando uma batalha judicial para encaminhar sua aposentadoria por invalidez devido a uma alteração feita por peritos do INSS nas informações sobre a natureza da doença ocupacional que lhe paralisou os ombros. “Os resultados dos exames de três médicos diferentes foram alterados ou tiveram informações omitidas no relatório que a perícia fez negando o benefício”, relata Darina, mostrando uma caixa com as cartelas dos analgésicos prescritos pelos médicos do trabalho.
O sindicato dos trabalhadores ingressou com um pedido de abertura de processo éticoprofissional pelo Conselho Regional de Medicina (Cremers) contra três médicos do trabalho da Doux/Frangosul por falsificação de atestados médicos. “O documento emitido por um médico particular para uma trabalhadora doente teve o número de dias de afastamento reduzido. Uma tala de gesso foi retirada do braço da paciente, que foi medicada com analgésicos e encaminhada para a linha de produção”, relata o presidente do Sindicato, Daniel Bilheri. Segundo ele, as provas juntadas ao processo desapareceram da sala de julgamento na sede do Cremers em Porto Alegre, no dia 22 de abril deste ano. Os médicos foram absolvidos. O Conselho informou que não se pronuncia sobre processos internos. O responsável pelo setor de recursos humanos da Frangosul em Montenegro não retornou aos pedidos de entrevistas da nossa reportagem.
Foto: René Cabrales
EPIDEMIA SOCIAL – Uma pesquisa realizada pela Ufrgs, UFPel, técnicos da Federação e Instituto Itapuy, de São Leopoldo comprovou que a vida útil do trabalhador na área é de apenas cinco anos. O diagnóstico Projeto Integrado Saúde do Trabalhador Avícola foi elaborado a partir de entrevistas com 1,2 mil operários com mais de seis anos em atividade nos frigoríficos do estado. “Estamos vivenciando um estado de epidemia generalizada entre os trabalhadores da área no que se refere a doenças de esforço repetitivo. A forma como se organiza o trabalho no setor avícola provoca uma epidemia social visto que, em pouco tempo de trabalho, o profissional tem sua saúde deteriorada em função dessa obsessiva e compulsiva busca de produtividade que não protege a sua integridade. O resultado é o aumento do número de aposentadorias precoces por invalidez”, explica o coordenador da pesquisa, Paulo Peixoto Albuquerque, doutor em Sociologia e professor da Faculdade de Educação da Ufrgs.
Foto: René Cabrales
Para o especialista, as doenças profissionais são decorrentes dos modos de produção e da falta de mecanismos de controle público. “A facilidade e a variedade de cortes de frango encontradas nos supermercados não evidenciam que, junto com o produto, estamos consumindo, e produzindo, a doença do trabalhador”, aponta. O diagnóstico do setor será reeditado em 2010 com propostas de monitoramento contínuo e um projeto de lei específico sobre o ambiente de trabalho, revela Albuquerque. “O cenário sinistro que foi desenhado quando se concluiu a pesquisa em 2008 não mudou. Até agora nada foi feito, apesar das audiências públicas no Senado, na Assembleia Legislativa e nas Câmaras de Vereadores das cidades que sediam as grandes empresas frigoríficas”.
Empresas crescem com dinheiro público
Em 2008, dois anos depois de iniciadas as investigações do MPT e em meio às denúncias das condições de trabalho nos frigoríficos, o Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES) concedeu às empresas créditos no valor de R$ 10 milhões. “Nos contratos não existem cláusulas sociais, ou seja, não foram exigidas contrapartidas objetivas para a redução do número de adoecimentos”, aponta o procurador Sandro Sardá.
Outro caso citado pelo representante da forçatarefa do Ministério Público do Trabalho para ilustrar a injeção de dinheiro público sem contrapartidas sociais nessas empresas é o da Mafrig Alimentos. No ano passado, a multinacional comprou a Seara por US$ 900 milhões para aumentar a capacidade de abatimento para 2,28 milhões de aves e 10 mil suínos por dia e tornar-se concorrente direta da Brasil Foods. Resultado da fusão entre a Sadia e a Perdigão, a Brasil Foods abate 3,3 milhões de aves e 27,4 mil suínos/dia. “A Mafrig tem que ser privatizada”, ironiza Sardá, referindo-se às linhas de crédito do BNDES utilizadas na aquisição e também a uma compra de ações da empresa pelo banco.
Sobre o custo das doenças ocupacionais, o procurador alerta que são o grupo de enfermidades que gera o maior número de afastamentos pela Previdência e, junto com os acidentes de trabalho, custam ao país o equivalente a 4% do Produto Interno Bruto, ou cerca de R$ 107 bilhões por ano. Em muitos casos, o valor dos tributos pagos pela empresa são inferiores aos gastos da Previdência. Um exemplo citado pelo procurador é o da Sadia, que de 2003 a 2007 pagou R$ 40 milhões em impostos para o INSS. No mesmo período, o INSS pagou aos trabalhadores dessa empresa benefícios previdenciários que chegaram a R$ 140 milhões. “Uma hora trabalhada custa R$ 2,70 para a empresa. Esse é o custo das pausas de 10 minutos a cada 50 minutos trabalhados, uma das medidas preventivas”.
MPT combate dumping social
O procurador do Trabalho de Caxias do Sul, Ricardo Garcia, representante do RS na força-tarefa criada pelo MPT para fiscalizar as condições de trabalho nos frigoríficos, afirma na entrevista a seguir que o setor é um dos piores postos de trabalho do mercado e que o Judiciário tem condenado empresas por dumping social (precarização de direitos trabalhistas para reduzir custos).
Extra Classe – Como o senhor avalia o ambiente e as condições de trabalho nos frigoríficos no estado, a partir da atuação do MPT?
Ricardo Garcia – É um dos piores postos de trabalho do mercado. O trabalho é monótono e desenvolvido em ambiente frio e úmido, com ritmo intenso, sob fiscalização constante, caracterizado por movimentos repetitivos e esforço físico constante. Os salários são baixos e não há convivência entre os empregados, que se desumanizam no processo.
EC – Quais os principais problemas constatados e que empresas apresentam maiores problemas?
Garcia – Temos firmado alguns TACs, promovido algumas ações e desenvolvido políticas de combate a essas práticas e fontes de risco. Os resultados vêm aparecendo, ainda de forma lenta, mais lenta do que desejamos. As empresas que apresentam os maiores problemas são as grandes exportadoras, pois mercadejam com muita competitividade e buscam ampliar seus mercados pela redução de custos, já que o produto (frango/peru/suíno) é o mesmo. E essa redução tem se dado principalmente na automação de alguns processos e redução de investimentos em saúde e segurança no trabalho.
EC – Os sindicatos de trabalhadores da alimentação estimam que, para cada trabalhador em atividade, há três afastados por problemas de saúde relacionados ao ambiente de trabalho. O senhor concorda?
Garcia – Sim, concordo. A fiscalização do Ministério do Trabalho tem comprovado isso em todo o país, e o MPT já ajuizou dezenas de ações civis públicas referentes a frigoríficos no Brasil todo. Não só a Doux, mas todos os frigoríficos têm essa característica.
EC – O que o MPT tem recomendado às empresas no que se refere ao problema do esforço repetitivo? Qual seria o ritmo desejável?
Garcia – O ideal é o estabelecimento de pausas de 8 a 10 minutos a cada 50 de trabalho, para possibilitar a recuperação dos membros superiores. O ritmo desejável é aquele que exige frequência das ações (movimentos) inferior a 30 por minuto. Temos adotado o Método Ocra para análise e a prevenção do risco por movimentos repetitivos, porque esse método tem obtido ampla aceitação e aplicação na Europa, onde vem se firmando como o melhor instrumento para a contenção da epidemia de doenças osteomusculares relacionadas ao trabalho ou lesões por esforço repetitivo (LER/Dort) nos membros superiores.
Foto: Flávio Portela
EC – Como a Procuradoria do Trabalho combate as condições insalubres nas indústrias e quais processos tiveram resultados concretos em termos de TACs?
Garcia – O MPT tem investigado profundamente o ambiente de trabalho no setor, em todo o país. Há, inclusive, uma discussão para unificação dos entendimentos dos procuradores, em nível nacional, para atuar de forma mais homogênea. Mas todos concordamos que é preciso eliminar o perigo representado pelo parque fabril em razão das máquinas que ele utiliza, instalando proteções e sistemas de paradas de emergência. O ambiente úmido e frio é, unanimemente, apontado como causa de adoecimento; os movimentos repetitivos, o ritmo intenso de trabalho e a pressão da chefia, que chega ao assédio moral, são causas de depressão e outras enfermidades mentais e de LER/Dort, que já é epidemia nacional.
EC – Como o Judiciário tem atuado em relação às ações do MPT?
Garcia – O Judiciário, regra geral, tem acolhido nossos pedidos, determinando a concessão de pausas e, até, condenando empresas por dumping social, pois a negativa de direitos trabalhistas visa à redução ilegal do preço do produto como forma de competição. E a perspectiva é de melhora dessa visão, pois as ações coletivas estão sendo manejadas com mais frequência. O Judiciário já compreende melhor, em extensão e profundidade, a diferença entre direitos coletivos e direitos individuais, concedendo tratamento diferenciado para os primeiros dada a sua relevância para a saúde social do país.
Correções:
*Ao contrário do informado na edição impressa, o setor responde por 3,8% das exportações brasileiras e, o Brasil, por 40% do comércio mundial de carne de frango.
** Após o fechamento da edição impressa, uma assembleia de dirigentes do setor aprovou a criação da União Brasileira de Avicultura (Ubabef) a partir da fusão da Abef com a União Brasileira de Avicultura.