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Numa folha qualquer…

Uma exposição itinerante com desenhos de crianças em zonas de conflito representa um apelo à paz a partir do olhar das vítimas sobre suas próprias tragédias e esperanças
Por Clarinha Glock / Publicado em 27 de julho de 2010
Foto de crianças em aula em Lundi, na República Democrátic a do Congo. O conflito atual tem suas origens em um golpe de Estado de 1996 que levou ao poder Laurent Desiré Kabila. Em 1998, Burundi, Ruanda e Uganda, com diversos grupos armados, tentam derrubar Kabila, que recebe o apoio de Ang ola, Chad, Namíbia, Sudão y Zimbábue, em uma guerra que já causou cerca de 4 milhões de mortos. O controle e a explor ação dos recursos naturais contribui para a perpetuação do conflito. Acordos de paz firmados em 2002 e 2003 e um go verno de transição depois eleito em 2006 não puseram fim à violência devido aos interesses econômicos e estratégicos sobre a região. No leste do Congo, hoje, os recursos minerais estão financiando vários grupos armados, muitos dos quais usam o estupro em massa como uma estratégia deliberada para intimidar e controlar as populações locais, ga rantindo, a ssim, o controle das minas, rotas comerciais e outras áreas estratégicas. A maioria dos minerais é usada em dispositivos eletrônicos como telefones celulares, tocadores de música portátil e computadores (Fonte: Raise Hope for Congo/Enough Project e Escola da Cultura de Paz/UAB).

Foto: Enough Project / Divulgação

Foto de crianças em aula em Lundi, na República Democrátic a do Congo. O conflito atual tem suas origens em um golpe de Estado de 1996 que levou ao poder Laurent Desiré Kabila. Em 1998, Burundi, Ruanda e Uganda, com diversos grupos armados, tentam derrubar Kabila, que recebe o apoio de Ang ola, Chad, Namíbia, Sudão y Zimbábue, em uma guerra que já causou cerca de 4 milhões de mortos. O controle e a explor ação dos recursos naturais contribui para a perpetuação do conflito. Acordos de paz firmados em 2002 e 2003 e um go verno de transição depois eleito em 2006 não puseram fim à violência devido aos interesses econômicos e estratégicos sobre a região. No leste do Congo, hoje, os recursos minerais estão financiando vários grupos armados, muitos dos quais usam o estupro em massa como uma estratégia deliberada para intimidar e controlar as populações locais, ga rantindo, a ssim, o controle das minas, rotas comerciais e outras áreas estratégicas. A maioria dos minerais é usada em dispositivos eletrônicos como telefones celulares, tocadores de música portátil e computadores (Fonte: Raise Hope for Congo/Enough Project e Escola da Cultura de Paz/UAB).

Foto: Enough Project / Divulgação

O ano de 2010 começou com conflitos armados em 29 países. No entanto, em mais de dois terços deles havia canais abertos de comunicação capazes de resultar em processos de paz. Exposições com desenhos de crianças vítimas das guerras, a formação de multiplicadores em escolas e comunidades, além de trabalhos de reabilitação pós-bélica em países que firmaram acordos de paz, são algumas das iniciativas para contrapor a cultura da guerra.

O painel Guernica, do pintor Pablo Picasso, ainda hoje nos lembra a agonia da população desta cidade espanhola ao ser bombardeada por aviões alemães em 26 de abril de 1937, como apoio de Adolf Hitler a seu aliado, o ditador Francisco Franco. Passados 63 anos, o mundo segue em guerras, e as Guernicas do século 21 são tão tristes e sofridas como as do passado. Mudam as nacionalidades, mas a dor é a mesma: famílias destroçadas, meninos soldados, mulheres estupradas, tanques, minas, decapitação, amputação, enforcamento, refugiados. A diferença é que os retratos das guerras atuais foram feitos por crianças. Eles podem ser vistos em uma exposição itinerante intitulada Os conflitos armados desenhados, a paz desenhada, organizada por Alba Sanfeliu Bardia, da Escola de Cultura de Paz da Universidade Autônoma de Barcelona, na Espanha.

Alba Sanfeliu Bardia, organizadora da exposição

Foto: Clarinha Glock

Alba Sanfeliu Bardia, organizadora da exposição

Foto: Clarinha Glock

Com lápis de cores e papel na mão, crianças de vários países, em diferentes épocas e situações, desenharam suas realidades em meio às guerras. Pesquisando em mais de 60 livros e sites da internet, Sanfeliu encontrou desde traços minuciosos de armas e feridos até esboços de figuras humanas que quase não se pareciam com gente. “Foi duro ver os dramas que representam”, diz Alba. “O segredo é saber escutar e fazer algo para mudar”, acrescenta.

Formada em Ciências Políticas e em Cultura de Paz, Alba Sanfeliu Bardia teve a ideia da pesquisa quando cursava um curso de pós-graduação em Saúde Mental e Situações de Violência Política e Catástrofes Naturais, na Universidade de Madri. Ao longo de um ano, reuniu mais de 400 desenhos. Os temas se repetem, mas surpreendeu-a os desenhos de Uganda, com o drama dos night commuters, crianças que, para não serem recrutadas pelos grupos armados, fugiam à noite para as grandes cidades. Assim como a memória do genocídio dos meninos e meninas de Ruanda, dos refugiados de Myanmar (ou Birmânia), dos soldados-criança de Serra Leoa e sua relação com as drogas para suportar a violência.

Também chamaram a atenção as casas – símbolos de estabilidade –, antes e depois de serem bombardeadas, metralhadas, incendiadas ou derrubadas; os monstros e fantasmas dos pesadelos de palestinos, assim como as doenças e as mortes resultado das fumigaciones(despejo de inseticidas por aviões para acabar com os plantios de coca) no Equador e na Colômbia.

Na Bósnia, os mestres desataram a chorar diante dos quadros de desolação pintados no papel. Inicialmente, pediam que a criança retratasse o dia mais triste que havia vivido. “Como podiam escolher entre o dia que a violaram, ou que mataram seu pai?”, comenta Alba. Passaram então a pedir que desenhassem um dia feliz e outro triste.

“A arte pode unir, e cada vez mais romper com a concepção de que tem que estar dentro dos museus”, salienta a pesquisadora. A exposição segue até o final do ano na Universidade Autônoma de Barcelona e depois vai percorrer as escolas da região. Mais do que lembrar as guerras, os desenhos são uma arma importante de denúncia e de apelo pela paz.

Quando a música pode levar à paz

Segundo Concerto do Paz Sem Fronteiras reuniu meio milhão de pessoas em Havana, em setembro de 2009

Foto: Divulgação

Segundo Concerto do Paz Sem Fronteiras reuniu meio milhão de pessoas em Havana, em setembro de 2009

Foto: Divulgação

Em Darfur, no Sudão, houve um tempo em que as mulheres animavam seus maridos para a guerra cantando. Após um período de conscientização, 50 mulheres hoje entoam canções de paz e reconciliação. Em 2005, o governo austríaco mudou a letra sexista de seu hino. Em 2009, o colombiano Juan Esteban Aristizábal, mais conhecido por Juanes, organizou um concerto em Cuba pedindo que a paz seja reconhecida como um direito universal. Outro colombiano, César Lopez, criou a “escopetarra”, uma guitarra que não dispara tiros, mas música, e distribuiu exemplares para outros que estão na mesma luta: Afroreggae, Mano Chao, Bob Geldof, Fito Paez, Eric Wainana. E, no Brasil, o compositor Carlinhos Brown é citado como um símbolo de união entre o som e atuação social.

A música também pode ser um instrumento de educação para a paz, descobriu Alba Sanfeliu Bardia, da Escola de Cultura de Paz de Barcelona, que já publicou um livro sobre o tema – Las mujeres, la música y la paz (Icaria Editorial) – e se prepara para lançar outro, com o apoio do Ministério da Cultura da Colômbia. Manifestações artísticas podem mobilizar, sensibilizar, provocar mudanças, acredita Alba.

Ao lado, desenho de um menino de dez anos intitulado Marines U.S.A. Irak, feito após uma operação norte-americana para "libertar o Iraque", e exposto na galeria de arte Puffin Room de Nova Iorque (Fonte: exposição Shocked and Awed, Nova Iorque, EUA)

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Ao lado, desenho de um menino de dez anos intitulado Marines U.S.A. Irak, feito após uma operação norte-americana para “libertar o Iraque”, e exposto na galeria de arte Puffin Room de Nova Iorque (Fonte: exposição Shocked and Awed, Nova Iorque, EUA)

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Ao lado, Tasoula Christofidou, dez anos, da escola primária Paphos Linocut, do Chipre, desenhou "Um soldado turco mata o prometido da garota" (Fonte: Children’s Art Foundation/Stone Soup, Santa Cruz, Califórnia, EUA). A Revista Stone Soup publicou uma seleção de desenhos de crianças de 36 países, em que se destaca a guerra no Chipre e a invasão turca em 1974

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Ao lado, Tasoula Christofidou, dez anos, da escola primária Paphos Linocut, do Chipre, desenhou “Um soldado turco mata o prometido da garota” (Fonte: Children’s Art Foundation/Stone Soup, Santa Cruz, Califórnia, EUA). A Revista Stone Soup publicou uma seleção de desenhos de crianças de 36 países, em que se destaca a guerra no Chipre e a invasão turca em 1974

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As guerras do mundo moderno

Em meio ao noticiário de ataques suicidas no Iraque e no Paquistão, acirramento da guerra Israel-Palestina, como é possível implementar a paz? Pois a Escola de Cultura de Paz da Universidade Autônoma de Barcelona (UAN), na Espanha, analisa as causas dos conflitos macro e faz um trabalho de formiga para aproveitar cada oportunidade de diminuir o confronto e promover a reconciliação. Seus relatórios e programas estimulam a formação de protagonistas locais capazes de atuarem de forma construtiva.

A escola foi criada há 11 anos, a partir da demanda de alunos da própria universidade interessados em se aprofundar no tema. Divide-se em seis programas: Processos de Paz, Conflitos e Construção de Paz, Direitos Humanos, Consolidação da Paz, Educação para a Paz e Programa de Artes e Paz. O diretor Vicenç Fisas explica que o objetivo é fazer um acompanhamento dos confrontos atuais, analisar e comparar dados. E, quando possível, a partir da diplomacia cidadã, tentar abrir negociações e dar apoio a iniciativas da sociedade civil. “Os resultados são modestos”, admite Fisas. “Às vezes se trata de um seminário a portas fechadas para que surjam ideias novas. Noutras, consiste em fazer uma ponte para que um grupo armado se comunique com o governo”. Conflitos como o do País Basco, da Colômbia, do Sahara, das Filipinas e do Kurdistão são seguidos de perto pelos especialistas atualmente.

“O desafio é interromper os ciclos de violência que perpassam as gerações de jovens nascidos e criados nestes contextos”, diz Jeanne Pearce, do Departamento de Estudos para a Paz da Universidade de Bradford, do Reino Unido, no capítulo inicial do relatório Alerta 2010! lançado pela Escola. Pearce observa que em El Salvador, por exemplo, hoje há mais violência do que durante os anos da guerra civil. Trata-se da violência social e criminal, que surge a partir do desespero por um futuro melhor. Desta forma, conclui: “A luta pela paz é, ao menos em parte, a luta para construir as condições para que as pessoas vivam sem violência”.

E é isso que trata de fazer a Escola no programa de Consolidação. “Nos países que saíram de um conflito armado e entram numa fase de reconstrução, fazemos uma análise de como está funcionando esta reabilitação e colocamos em funcionamento uma rede que permita a comunicação entre todas as pessoas e centros que estão trabalhando neste tema”, informa.

Em geral, há pouca atenção sobre como são colocados em marcha os processos de paz, reclama Fisas. Sem resolver as causas que geraram os conflitos, as tensões permanecem latentes, e as guerras correm o risco de se repetir. Isso ocorreu em todos os países da América Central, e pode acontecer também no sul do Sudão, por exemplo, onde, apesar do acordo assinado em 2005, há uma tensão crescente por conta das eleições de 2011, que vão determinar o autogoverno da região. “As eleições têm que ser pacíficas”, enfatiza Fisas, caso contrário, há riscos de que surja um novo confronto. Neste ponto, os meios de comunicação poderiam ajudar, dando visibilidade aos atores da paz e seguimento ao que acontece depois de um acordo – contextualizando e fazendo com que não sejam esquecidos os conflitos que duram muitos anos.

O movimento na web

• O movimento Paz sin Fronteras, do colombiano Juan Esteban Aristizábal, o Juanes, pede que a paz seja reconhecida como um direito universal: www.pazsinfronteras.org.

• A ONG Selva Negra foi criada pelo grupo mexicano Maná em defesa do meio ambiente:www.selvanegra.org.mx

• Playing for Change Foundation tem projetos de centros de música no continente africano e em campos de refugiados:
www.playingforchange.com/?utm_source=pfcep&utm_medium=email&utm_campaign=ep280510

• César Lopez explica como criou sua “escopetarra” durante visita ao Afroreggae, no Rio de Janeiro:
www.youtube.com/watch?v=jZMJbzllww4

• O Sierra Leona Refugee All Stars é formado por 12 músicos que viveram a guerra e começaram a fazer música nos campos de refugiados: www.refugeeallstars.org/

Radiografia dos conflitos armados

• Consideram-se “conflitos armados” os enfrentamentos protagonizados por grupos armados, regulares ou irregulares, em que há um uso contínuo e organizado da violência, com um mínimo de cem vítimas mortais por ano ou que tenham um forte impacto no território e na segurança (populações expulsas, violência sexual, destruição da infraestrutura básica).

• Diferenciam-se da delinquência comum por suas demandas de autogoverno e autodeterminação; aspirações identitárias; oposição a sistemas político, econômico, social ou ideológico de um estado ou da política interna ou internacional de um governo (o que motiva a luta para chegar ao poder ou tirar quem está no poder); busca de controle de recursos ou do território.

• Em 2009 foram registrados 31 conflitos armados, mas a redução das hostilidades no nordeste de Sri Lanka e em Nagalandia, na Índia, fez com que o ano fechasse com 29 conflitos ativos. Em relação a 2008, o Sudão se incorporou à lista.

• A maioria dos conflitos armados aconteceu na Ásia (14) e na África (10), sendo o resto na Europa (três), Oriente Médio (três) e América (um).

• Aproximadamente dois terços dos conflitos armados em 2009 estavam vinculados a questões de identidade (de etnias ou grupos) e demandas de maior autogoverno.

• Os conflitos armados de maior intensidade se produziram no Afeganistão, na Colômbia, no Iraque, na República Democrática do Congo, no noroeste do Paquistão, na Somália, no Sri Lanka, no Sudão e no norte de Uganda.

Fonte: Alerta 2010! Relatório sobre conflitos, direitos humanos e construção de paz, da Escola de Cultura de Paz, Icaria Editorial e UAB. O relatório está disponível, na íntegra, em http://escolapau.uab.cat/img/programas/alerta/alerta/alerta10e.pdf

Confira sugestões de experiências sobre Educação para Paz no site
http://escolapau.uab.cat/castellano/programas/educacion.php

As guerras do mundo moderno

Marina Caireta Sampere

Foto: Clarinha Glock

Marina Caireta Sampere

Foto: Clarinha Glock

Um dos desafios da Educação para a Paz é como educar “em” e “para” um conflito, dentro do ambiente de uma escola, da família, da comunidade, por exemplo. Marina Caireta Sampere, do Programa de Educação para a Paz da Escola da UAB, lembra que o grande segredo é ser capaz e consciente do quão importante é autorrealizar-se e aprender constantemente sobre si mesmo. “Quando falamos da educação para a paz falamos, em boa parte, de atitudes e de habilidades para as relações e para a comunicação, e um dos elementos importantes para trabalhar com crianças é ser exemplo – tu podes dizer uma coisa, mas as crianças reproduzem o que elas vivem e não o que lhes dizem”, explica.

Por meio de dinâmicas e jogos, professores, educadores não-formais, técnicos municipais e integrantes de associações comunitárias (que atuam como multiplicadores) passam por situações que os colocam à prova. Como agiriam numa briga entre dois professores? E entre um aluno e um professor? Entre pensar e viver uma situação há uma diferença. “É interessante, porque muitas vezes o que uma pessoa pensa que nunca faria, acaba fazendo”, constata.

O primeiro passo, diz Marina, é entender que o conflito faz parte do cotidiano de todo mundo. É uma das melhores formas de promover transformações, se for bem conduzido. Para isso, é preciso aceitar as emoções negativas, se escutar, aprender e desenvolver habilidades. Esses exercícios práticos podem não acabar com a guerra no Oriente Médio, mas certamente vão ajudar a resolver problemas muito mais próximos do dia-a-dia.

Um dos temas de confronto na Espanha, por exemplo, é a proibição do uso do véu e da burka nas escolas e em espaços públicos de algumas cidades por parte das imigrantes. Marina Sampere lembra que há uma diferença de tratamento e do uso do termo “imigrante” de acordo com o país de procedência: muda quando ele vem da França, do Paquistão, do Marrocos, ou da América Latina. E salienta que, antes do próprio imigrante, há a discriminação contra os ciganos, marginalizados e segregados em bairros de Barcelona. É preciso aprender a aceitar a diversidade e a não ver o outro como inimigo. Isso também faz parte da educação para a paz.

 

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