GERAL

Os bons e os maus

Por Jacira Cabral da Silveira / Publicado em 25 de novembro de 2010

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Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Ainda está bem presente na memória da maioria das pessoas a campanha realizada pelos diferentes partidos políticos nas últimas eleições. Assim como em campanhas anteriores, o marketing político de algumas candidaturas impregnou os discursos televisivos, radiofônicos e impressos de um maniqueísmo explícito, fazendo alusão aos “bons e maus”, ao “certo e errado”. Raúl Enrique Rojo, doutor em Sociologia pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (França) e professor dos programas de pós-graduação em Sociologia e Relações Internacionais da Ufrgs, analisa a questão e alerta: “Os sociólogos da educação afirmam que a escola tende a reforçar os valores dessas crenças consideradas como socialmente positivas por aqueles que detêm o poder nessa sociedade”. Ele falou ao Extra Classe sobre a origem e a repercussão do maniqueísmo no pensamento da sociedade contemporânea.

Extra Classe – Qual a origem da filosofia
maniqueísta?

Raúl Enrique Rojo – O maniqueísmo se refere a Manes, um herege persa que viveu na segunda metade do século terceiro de nossa era. Mas preciso fazer uma referência a alguém que nasceu um pouco antes, por volta dos anos 230 DC, o mago Terebinto, da Palestina, que havia ido morar na Pérsia onde difundiu suas ideias religiosas dos antigos persas. Era o zoroastrismo, a religião que havia pregado e difundido Zaratustra, referido por Nietzsche. As doutrinas de Terebinto não foram aceitas pelos persas e ele se refugiou na casa de uma viúva rica que o ocultou. Ao cabo de um tempo ele foi encontrado e morto. Depois disso, a viúva comprou um escravo de nome Cúrbico a quem adotou e fez estudar alguns livros de Terebinto. Com a morte da viúva, Cúbico herdou seus livros e fortuna, trocando seu nome para Manes, para ocultar sua condição de ex-escravo. A partir da leitura dos livros de Terebinto, Manes começou a se apropriar das ideias e princípios expressas em tais literaturas e que, fundamentalmente, consistiam em que o mundo todo era o resultado de dois princípios: o bem e o mal. Para dar força a seus ensinamentos e ganhar prestígio, também se autodeclarou “taumaturgo”, aquele que curava impondo as mãos. Como o filho do rei da Pérsia estava doente, Cúrbico se ofereceu para curá-lo, mas o rapaz morreu e ele foi colocado na prisão onde conheceu o cristianismo e fez algumas misturas com a religião da Pérsia antiga, fazendo com seus seguidores o chamassem de espírito santo. Depois de algum tempo, Manes fugiu da prisão e foi para a Babilônia, mas é claro que suas ideias não foram bem aceitas pelos sacerdotes cristãos, que prontamente o excomungaram por sua doutrina e ele acabou sendo preso novamente e morto de forma cruel. Mas seus seguidores seguiram pregando esse cristianismo sui generis, defendendo princípios como a existência do bem e do mal, sendo as almas frutos do bem e os corpos do mal.
EC – Como se dá sua disseminação no mundo?

Rojo – Durante muito tempo esses hereges foram Rojoconsiderados como tais, sobretudo dentro do Império Romano do Oriente. Por esses anos do século terceiro, Constantino abraçou a religião cristã e a oficializou no império. A mãe do imperador Anastácio, do Império Romano do Oriente, converteu-se ao maniqueísmo (século V) e com isso foram suspensas as leis que condenavam e perseguiam os maniqueus, mas ao cabo de alguns anos a persecução voltou. Algumas dessas ideias difundiram-se entre alguns grupos de cristãos que pregavam o desprendimento e apego a bens materiais, e foram formando seitas que encontraram espaço para a pregação e acabaram convertendo não só o povo como também alguns nobres, sobretudo no sul da França, na região de Albi, junto aos Pirineus, tanto do lado francês quanto do espanhol. Território que vai dar lugar aos cátaros (maniqueístas), também conhecidos albigeios por causa da região de Albi, entre os séculos XII e XIII. Até que o papa empreendeu uma cruzada contra esses cristãos hereges que foram finalmente esmagados ao cabo de cerca de três cruzadas. A fortaleza de Rocamadour foi possivelmente o último refúgio dos cátaros, massacrados pelos exércitos do famoso general cristão francês, Simon de Montfort. Os cátaros eram seguidores de algumas das ideias do maniqueísmo de Manes. Hoje não resta quase nada dos maniqueístas, porque as ideias foram se extinguindo junto com seus seguidores, o que não impediu alguns sincretismos, difundindo-se assim as ideias maniqueístas.

" Todo confessionalismo, de alguma maneira, é um fundamentalismo na medida em que faz alusão a certos fundamentos básicos constantes em seu livro sagrado"

Foto: Igor Sperotto

” Todo confessionalismo, de alguma maneira, é um fundamentalismo na medida em que faz alusão a certos fundamentos básicos constantes em seu livro sagrado”

Foto: Igor Sperotto

EC – Ao que o senhor atribui a repercussão até os dias de hoje de uma religião que nasceu de forma tão periférica?

Rojo– Aqui deveríamos fazer uma diferenciação entre o maniqueísmo corpo de doutrinas, mais ou menos organizadas, e que dão lugar a crenças religiosas, e o que, a partir dela, se chama comumente de maniqueísmo nas línguas modernas. Para fazer uma comparação, quando você fala de ceticismo, você sabe que era uma corrente filosófica grega e depois romana, mas quando dizemos que fulano ou beltrano são céticos, não estamos dizendo que eles são discípulos dos céticos gregos. Por outro lado, quando chamamos alguém de cínico, não estamos dizendo que ele seja um seguidor de Diógenes. Há também uma forma de falar daqueles que pensam que há uma divisão clara entre o bem e o mal, o que poderíamos modernamente identificar como maniqueísmo, mas 90% daqueles que utilizam esse termo não sabem de onde ele provém, nem o que significa na história ou na sociologia das religiões. Então, quando digo que alguém é muito maniqueísta na maneira de julgar as pessoas, não acredito que ele conheça sequer a existência de Manes. Isso é importante salientar, porque senão poderíamos acreditar que o que está difundido é a religião maniqueísta, mas o que é bastante difundido é uma intransigência ou intolerância a respeito do outro, do diferente, do estranho, ou simplesmente daquele que pensa diferente de mim. Esta é uma atitude modernamente chamada de maniqueísta.
EC – As escolas também têm práticas que reforçam essa filosofia?

Rojo– Seguramente, os sociólogos da educação afirmam que a escola tende a reforçar os valores dessas crenças, consideradas como socialmente positivas, por aqueles que detêm o poder nessa sociedade. Porém, vamos um pouco mais para trás: como são formadas as ideias na comunidade na qual crescem as crianças? Através de um processo de socialização primitiva que se dá no seio do lar; os pais nos dizem o que é bom e o que é mau, o que se deve e o que não se deve fazer, e assim somos socializados nessa crença por nossas famílias. E essa socialização é bem sucedida na medida que incorporamos uma série de princípios de rejeições e aceitações como sendo algo natural, resultantes da própria natureza das coisas. Mas na vida em sociedade não há nada natural, é tudo, como dizem alguns autores, arbitrário, cultural. Num determinado momento de nossas vidas somos levados à escola ou a instituições que são especializadas em nossa sociedade, e lá encontramos os anciões da tribo, os sacerdotes da nossa comunidade; estamos na escola. Essas instituições vão reforçar os mesmos valores que aprendemos em nossos lares, dizendo o que é perigoso para a conservação da unidade de nosso grupo, da permanência desses valores e do nosso grupo social – no mais largo sentido da palavra. Essa forma de pensar pode ir adquirindo graus de intolerância cada vez maiores.
EC – Como aparece no fundamentalismo?

Rojo– Notadamente, as três principais religiões monoteístas – o cristianismo nas diversas versões, o islamismo e o judaísmo – fazem referência a um corpo orgânico de crenças que conformam uma confissão e consideram-se as únicas religiões dignas de respeito. Todo confessionalismo, de alguma maneira, é um fundamentalismo na medida em que faz alusão a certos fundamentos básicos constantes em seu livro sagrado. Nos últimos tempos tem aparecido um certo fundamentalismo brama, que seria uma contraprova disto que estou afirmando, porque o bramanismo é politeísta e não tem propriamente um livro sagrado, ainda que os vedas e alguns outros livros – entre literários e religiosos dos hindus – podem fazer as vezes de um texto sagrado. Mas no mundo ocidental e no Oriente próximo, o confessionalismo e o fundamentalismo são característicos desse olhar proselitista, que se encontra no cristianismo e no islamismo.
EC – Muitas vezes a política se parece com a religião, com crenças e conteúdos
programáticos?

Rojo– Eu estava justamente fazendo essa ponte. Nós estamos vivendo épocas em que há um novo confessionalismo, não mais religioso senão político. Geralmente, os totalitarismos têm dado lugar a uma sorte de confessionalismo político. Já não será uma religião organizada com cabeça visível na Terra, que estaria representando, digamos, um deus pessoal ou profetas, senão o líder. Há também o livro ou livros onde se concretiza a doutrina. Durante os períodos de terror robespieristas, da Revolução Francesa (1789 a 1799), os revolucionários pretenderam criar uma religião do ser supremo que substituísse o cristianismo. Ainda que o intento tenha fracassado, os totalitaristas são a prova da intolerância a respeito do outro. Aliás, vou lhe dizer que não gosto da palavra tolerância, porque essa palavra significa a renúncia de perseguir o outro, ao que ele pensa de diferente por razões práticas. É assim como, por exemplo, o islã tolerante – como se autodefine – quando vai aceitar que os fiéis das outras religiões possam continuar vivendo, garantindo-lhes a vida e o seu culto, mas os reduzem a bhirni, que significa ‘protegidos’. Com isso os transformam em cidadãos de segunda categoria, como que incapazes e indignos de exercer toda uma série de direitos e chegar a ocupar certos postos; por outro lado são protegidos por aqueles que, verdadeiramente, creem no que há que se acreditar.
EC – O senhor disse que prefere o termo pluralismo, não é?

Rojo– Sim, eu prefiro muito mais falar de pluralismo no lugar de tolerância. O pluralismo é justamente uma forma de reconhecer-se a incerteza a respeito do que pode ser certo ou errado. É uma posição humilde a respeito da verdade e que até pode envolver o mundo da ciência. Os representantes da ciência dura (naturais ou físicas) nos dizem que se uma hipótese resiste a determinadas provas, ela pode ser considerada verdadeira por algum tempo, mas que em algum outro momento pode ser provado que não é bem assim; como, aliás, a história da Ciência tem demonstrado muitas vezes. Eu acredito em determinadas coisas, mas meu parecer merece o mesmo respeito que o parecer do outro, esta é uma atitude tolerante. Mas eu prefiro dizer pluralista, porque pensamos que há uma pluralidade de respostas para a conduta ou para o comportamento dos homens em sociedade. A atitude intolerante muitas vezes é inconscientemente baseada nesse maniqueísmo que não tem a ver com Manes propriamente dito, mas com uma percepção muito humana de que apenas o conhecido, aquilo em que se acredita como certo e verdadeiro, merece respeito e, por conseguinte, o outro que pensa diferente precisa ser convertido ou combatido e eliminado.
EC – O senhor acha que os políticos podem usar o maniqueísmo como uma estratégia para atingir seus objetivos?

Rojo– Para criar uma oposição, uma falsa oposição, diríamos, entre uma maneira própria de pensar e a forma de pensar dos demais. É uma argumentação absolutamente redutora, e todas as simplificações acabam falseando a realidade. Há um sociólogo e filósofo muito importante, Karl Mannheim, autor da obra Ideologia e Utopia, para quem a ideologia é próprio das ideias majoritárias ou consagradas em uma sociedade determinada, enquanto que a oposição mantém outras ideias que desejam fazê-las triunfar, que é próprio das utopias, mas o próprio das utopias é converter-se em ideologia em algum momento. Então, quem combate as ideias do outro, estigmatiza e trata até de eliminar fisicamente ou de extirpar essas ideias ditas utópicas, afirmadas por um grupo minoritário pelo fato de ser minoritário, não só se comportam de maneira pouco caridosa e humanista senão que estão agindo contra o próprio funcionamento da Democracia, que tem como princípio fundamental reconhecer o direito da maioria e proteger as minorias.

EC – Neste sentido, qual a extensão dos prejuízos dessas concepções maniqueístas no comportamento social hoje?

Rojo – Produz um ensimesmamento consigo próprio e com o próprio grupo, um desconhecimento do outro, do diferente, do alter, por assim dizer, a desqualificação do outro por seu pensar distinto. Produz-se como isso uma mentalidade autoritária, que não reconhece naquele que pensa distinto um igual, senão alguém que é desqualificado e indigno de proteção e reconhecimento. É uma forma autoritária de pensar e de fazer política, de acreditar na dignidade na qual se acredita ou de não acreditar em nenhuma e pretendendo defender um ateísmo militante. Os militantes podem ser tão maniqueus como os que afirmam uma crença qualquer. Por vezes se diz que os defensores da ciência podem fazer da ciência uma crença tão intolerante como os defensores de alguma superstição. Neste sentido, me parece que a universidade e a escola em geral deveriam ser espaços de discussão constante e de pluralismo em todos os níveis. Uma escola para nossas crianças e jovens que os forme no reconhecimento do outro, daquele que pensa distinto. Penso que é bom às escolas instruir os jovens e crianças na sadia dúvida a respeito daquilo em que se acredita, porque talvez não sejam tão seguras suas certezas. Um cientista político de origem polonesa, Adam Przworski, tem um belo trabalho intitulado Amas a incerteza e serás democrático, traduzido para o português.

“Eu prefiro muito mais falar de pluralismo no lugar de tolerância. O pluralismo é justamente uma forma de reconhecer-se a incerteza a respeito do que pode ser certo ou errado. É uma posição humilde a respeito da verdade e que até pode envolver o mundo da ciência”

"Nós estamos vivendo épocas em que há um novo confessionalismo não mais religioso, senão político"

Foto: Igor Sperotto

“Nós estamos vivendo épocas em que há um novo confessionalismo não mais religioso, senão político”

Foto: Igor Sperotto

Digamos que a Democracia que foi tão dificilmente conquistada tem como princípio fundamental a incerteza de quem vai ganhar as eleições até no que diz respeito à linha política ou ao conteúdo da ação de governo mais apropriado, não há donos da verdade. Ainda que isso traga uma certa inquietação, pois é muito mais tranquilizante para nosso espírito ter um sistema político ou de crenças que nos diga o que é certo e o que é errado, mas muitas vezes essa é a tranquilidade dos cemitérios, própria das doutrinas autoritárias. Se quisermos ser democráticos temos que assumir a incerteza até mesmo daquilo em que acreditamos, e se não estamos seguros de que o que defendemos não é definitivo, temos de oferecer um espaço para aqueles que pensam diferente.

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