Foto: Igor Sperotto
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Alex morou durante cinco anos no Rio de Janeiro como correspondente da América do Sul para os jornais britânicos The Guardian e The Observer. Ao aliar sua paixão pela Matemática e o gosto por contar histórias ele chegou a um resultado que lhe deu muito prazer, ainda que o tenha tornado, segundo ele, uma figura um tanto ‘bizarra’: “Os matemáticos me acham muito estranho porque escrevo histórias, e os escritores me acham muito estranho porque entendo Matemática. Mas para mim, palavras e números não são conhecimentos conflitantes, são amigos”.
Em entrevista ao Extra Classe, Bellos revelou alguns detalhes de sua obra que o levou a viajar para a Índia, Japão, entre outros lugares inesperados. Ainda que negue ser professor, sua paixão pela Matemática o desmente: “Não existe um jeito certo de atacar um problema matemático, e é intrigante mapear as diferentes rotas que diferentes mentes tomaram para encontrar suas soluções”.
Extra Classe – Você cursou Matemática, mas diz que não é professor, como é isso?
Alex Bellos – Nunca fui professor, não sei o que acontece dentro de uma sala de aula, porque a única sala que entrei foi no Japão para fazer uma pesquisa para meu livro. Também é a questão política (sua decisão de escrever uma obra sobre Matemática), porque lá na Inglaterra o fato do povo não ter tradição de estudar Matemática já é uma polêmica, ao ponto de todo mundo estar querendo dar palpites, e muitos professores estão trabalhando no assunto para melhorar o ensino dessa disciplina no meu país. Por isso, como tem tanta gente trabalhando nessa questão, decidi não dar palpite de como os professores devem trabalhar. Quem sou eu pra dizer algo sobre isso? O que faço é apresentar informações sobre Matemática de uma forma totalmente diferente. Não estou escrevendo para ensinar aos docentes como devem ensinar ou aos estudantes como devem aprender. Só estou querendo mostrar que a Matemática está ligada a muitos outros assuntos, porque na escola ela é vista como uma coisa única, sem ligação com outros temas, ela é apresentada de uma forma totalmente abstrata. Minha obra é só entretenimento e informação, não é um livro didático.
EC – Como foi para custear as viagens e chegar até o texto final dessa grande reportagem-literária sobre o universo dos números?
Bellos – Apresentei a proposta do livro a algumas editoras e duas delas ficaram bastante interessadas, fiz um pequeno leilão para ver quem ganhava. A editora com que firmei contrato fez um adiantamento bem legal pra quem não tinha tradição de escrever sobre Matemática. Com esse dinheiro, decidi que seria muito melhor gastar o máximo possível para fazer o melhor livro possível, em vez de guardar a grana e ficar na biblioteca da minha casa, pesquisando no Google. Isso não seria fazer um bom livro. Então resolvi que cada capítulo precisava ser escrito a partir de uma viagem, só assim o leitor poderia saborear mais cada página. Afinal, todo mundo sabe que foi na Índia que inventaram o ‘zero’, todos os livros de Matemática que mencionam isso dizem sempre as mesmas coisas, e ninguém vai para a Índia pesquisar como tudo foi mesmo. Acho que é mais interessante para o leitor alguma coisa do tipo: “Cheguei no templo”…; ou: “O homem religioso disse: foi aqui que inventaram o zero!”. Isso prende mais o leitor do que uma coisa do tipo: “De acordo com tais e tais livros, a Índia…”. Para fazer um bom trabalho, você tem que fazer o melhor possível, não é só fazer um negócio que dê um bom retorno financeiro, é fazer algo que faça você ter uma vida melhor, e foi muito legal visitar esses lugares. Por isso digo que meu livro é um livro escrito por um jornalista, sou um comunicador de aulas, só que não de um jeito professoral. Existem muitos popularizadores de Ciência, mas são professores que comunicam de uma forma meio didática. Mas não escrevi uma reportagem, onde você tem que colocar tudo nos primeiros parágrafos, num livro você tem que deixar muita coisa para o final, senão a pessoa vai deixar de ler. Essa forma oposta de escrever foi um aprendizado difícil, mas eu acho que funcionou muito bem com Matemática.
EC – Tem temas que o fascinam mais, qual o encanto do zero?
Foto: Igor Sperotto
Lima – A história do zero é encantadora, só o fato de estarmos sempre usando um símbolo hindu que quer dizer ‘infinito’ – o zero – isso já faz você pensar muitas coisas. Para entender porque a Índia inventou o zero há 1,5 mil anos fui até lá para entrevistar Shankaracharya, que é semelhante ao Papa, mas como no hinduísmo não tem hierarquia, existem outros quatro com a mesma importância religiosa. Esse que entrevistei também é matemático e chefe dessa coisa chamada Matemática Védica (série de técnicas que tornam os cálculos matemáticos rápidos e eficientes), por isso achei que seria uma pessoa interessante para entrevistar. Os gregos não tinham o zero e fazer cálculo de aritmética era impossível, na verdade, a aritmética só começou a fazer parte da Matemática depois da Índia, depois do século 12 ou 13. Na época grega só havia a geometria. Foi uma coisa muito estranha meus encontros com o mestre hindu, porque como no templo não se podia falar inglês eu tinha um tradutor que deixou tudo mais complicado, pra uma pergunta que eu fazia num minuto, ele traduzia nuns 8min ou 10min, e a resposta levava mais uns dez, mas quando ele ia me dizer o que o mestre havia respondido levava só dois segundos. Foi muito estranho, fiz várias entrevistas, mas não entendi nada, e acho que ele não respondeu nada do que perguntei. Dessa experiência aprendi que você nunca vai entender o que um religioso responde sobre matemáticas, você só precisa observar quem ele é. Então fiquei só observando: ele não tem bens, e dá para outros o que recebe de alguém. Usa sempre a mesma roupa laranja, em seu quarto só tem uma cama e come todos os dias a mesma comida sem sabor. Com isso entendi que no hinduísmo ‘nada é alguma coisa’, você tem que procurar o nada, e você tem que se livrar de tudo, porque o tudo é o nada. Foi isso que a religião indiana deu para o mundo e foi nesse contexto que o zero foi inventado, é uma interpretação matemática de uma ideia religiosa.
EC – O indiano é apaixonado mesmo pelo cálculo?
Bellos – Os indianos são muito orgulhosos por terem inventado o zero e eles amam Matemática. Enquanto aprendemos a tabuada até dez, lá eles aprendem até a do 20 e antigamente era até 30. Se aqui a identidade brasileira é jogar futebol, todo mundo tem que saber jogar futebol para ser bom brasileiro. Na Índia você tem que gostar de aritmética para ser um bom indiano. Na Europa é quase tudo a mesma coisa, na Inglaterra todo mundo quer ser mito, quer ser cantor de rock, quer ser cool, na universidade francesa metade dos pesquisadores é mulher, a outra é de homens. Na Inglaterra, depois dos 18 anos você só vai encontrar homens estudando Matemática, nós somos muito atrasados nisso, nessa coisa de aceitar números.
EC – Pode relacionar a questão da cultura com o pensamento matemático?
Bellos – A Matemática é igual sempre, mas o jeito de lidar com ela é totalmente diferente conforme o lugar. Tem uma história que aconteceu no Brasil com uma pesquisadora. Ela foi para uma aldeia onde os índios entendem números e perguntou: ”Quero saber quanto é dez menos três. Você tem dez peixes e dá três peixes, com quantos peixes você fica?”. E o índio respondeu: “eu fico com 13 peixes, porque aqui na comunidade, quando a gente dá, a gente recebe em dobro. Então, se estou dando três peixes, estou recebendo seis peixes, e isso faz 16 peixes, menos os três peixes que eu dei, fiquei com 13 peixes”. Quero mostrar com isso que a Matemática é igual, mas o jeito de entender e as palavras que usamos para expressá-la vão depender da cultura, daí pode ser totalmente diferente. Os sistemas de marcação também são absolutamente diferentes em continentes diferentes. Na América do Sul se faz o quadrado e depois se coloca uma barra na diagonal do interior do cubo. Se eu mostro isso na Inglaterra, todo mundo acha engraçado, acham que não pode ser, porque lá essa marcação é feita com barrinhas enfileiradas e uma cortando todas elas.
EC – Como começaste na Matemática?
Bellos – Eu adorei Matemática desde quando era muito garoto, porque sabia aritmética, tirava boas notas e o professor gostava de mim por isso, e eu achava ótimo. Mas sempre preferi o lado mais filosófico da Matemática: O que é o infinito? O que é o número? Onde existem os números? Eu gostava de pensar sobre as formas de provar as coisas. Admirava a beleza da Matemática, uma beleza pura. Não gostava de problemas como ‘o trem vai chegar nesse horário…’ e exercícios desse tipo. Nunca gostei dessa coisa ligada à Física, da Matemática aplicada. Por isso estudei sob a ótica da Filosofia e acabei concentrando na lógica. Estudava Matemática só pelo prazer que isso me dava. Mas a maioria das coisas que coloquei no meu livro eu não sabia naquela época. Na Inglaterra, como a Matemática é muito especializada, tem vários tipos de vestibular: Matemática com estatística ou Matemática avançada, Matemática com Física. Por isso, com certeza, você vai ter professores de Matemática que não vão saber nada do que eu escrevo em determinados capítulos. No último capítulo, por exemplo, falo sobre geometria não-euclidiana e dos infinitos do (Georg) Cantor, um alemão que inventou uma nova maneira de pensar sobre o infinito. Você só estuda isso no terceiro ano da faculdade, e só se escolher ir por esse caminho, mas a maioria dos matemáticos não terão estudado esse tema na Inglaterra.
Foto: Igor Sperotto
EC – Você acha que a memorização e a construção do conhecimento são excludentes entre si na prática pedagógica?
Bellos – A memória está muito ligada à aritmética e eu só descobri de onde se tratava quando fui a um campeonato mundial de cálculo mental. Eu estava falando com os jogadores e vi que tem uns que são muito bons em memória, mas não tão bons em cálculo; assim como tem outros que são bons em cálculo, mas não tão bons em memória. Por exemplo, conheci um inglês num campeonato de cálculo mental que tinha uma memória muito fraca. Para calcular ele precisa falar os números em voz alta, senão ele não conseguia entender o problema. Se você segurasse o queixo dele, ele não conseguia calcular porque estaria impedido de usar o recurso que o ajudava a resolver a questão, é que ele não tem uma memória que o ajude a lembrar. Quando você está fazendo um cálculo mental, tem que lembrar um “monte” de processos, de espaços intermediários. Acho que memorizar e construir o conhecimento são ações complementares, porque existem várias formas de aprender Matemática ou calcular, e as pessoas têm que encontrar a estratégia que as ajudem mais. Se uma pessoa tem boa memória, vai fazer pela memória, se não tem , vai fazer de outra forma. Os japoneses, por exemplo, usam muito o ábaco, mas ninguém sabe se usar bastante o ábaco ajuda a ser um matemático melhor, mas dizem que ele ajuda na disciplina e na concentração, por isso eles ensinam o ábaco no Japão.
EC – Você fala da vantagem dos chineses com relação à Matemática, pode explicar?
Bellos – Todas as palavras em chinês para os dígitos são de uma sílaba só, isso quer dizer que você pode lembrar mais números na sua cabeça e fazer o teste, e pode lembrar todos os números que você pode dizer em dois segundos, facilmente. Então, lá na China, eles lembram oito/nove dígitos porque se fala mais rápido. Em inglês acho que só o seis e o sete, isso quer dizer que eles têm mais facilidade de armazenar números na cabeça. Nosso problema na Inglaterra é que o seven tem duas sílabas, é muito longo, three também é muito longo. Então, se mudassem todos os nomes dos números para serem curtinhos : nove, oito, … seria muito devagar. Tem que fazer com uma sílaba só, de repente melhora a aritmética (risos). No Brasil poderiam fazer uma regra para renomear os números, até porque já fizeram isso com o a edição do Acordo Ortográfico, ou seja, já tem cultura para fazer isso.
” Mas também vejo na cultura brasileira uma coisa interessante, aqui você compra tudo em dez ou 12 vezes. É só olhar para o outdoor e você encontra multiplicação, acho que isso não se vê em nenhum outro país, essa obsessão de comprar parcelado”
EC – Como a Matemática pode nos ajudar a compreender a cultura digital, a questão binária?
Bellos – Não sei nem por onde começar, porque todos os computadores são baseados no sistema binário, que é a base dois, e nós operamos em base dez. Talvez seja interessante pensar por que nós temos base dez. A base dez era mais fácil da gente aprender porque temos dez dedos, mas desde muito tempo os matemáticos estão querendo introduzir mais dois novos números com a base 12. Na base 12 talvez seja mais fácil de fazer cálculos, os computadores já usam a base dois. É interessante entender que não existe apenas o sistema decimal, mas que existe um ” monte” de bases, e toda base tem seu uso específico. Outro grande assunto da Matemática é a aleatoriedade. Ela é a base de muitas questões de estatística, como acontece nos anúncios do Google, que você precisa entender bem como funciona a aleatoriedade para ver todos os algoritmos para entender como isso funciona.
EC – Qual é a habilidade matemática do brasileiro?
Bellos – Eu acho que a Matemática está presente em formas interessantes no Brasil. Em Matemática você tem que ser esperto, você sempre tem que achar o jeitinho, Matemática é a ciência do jeitinho. Se não pode fazer uma coisa que faz sentido, mas você pode fazer tudo que você precisa para solucionar o problema, até inventar coisas, até forçar. E talvez essa jinga do brasileiro ajude na hora de fazer Matemática, eu não sei (risos). Mas também vejo na cultura brasileira uma coisa interessante, aqui você compra tudo em dez ou 12 vezes. É só olhar para o outdoor e você encontra multiplicação, acho que isso não se vê em nenhum outro país, essa obsessão de comprar parcelado. A publicidade aqui é multiplicação. Tem outra coisa que percebi aqui no Brasil. Na Inglaterra, quando vou jantar com meus amigos, eles empurram a conta pra eu fazer a divisão e ver quanto tocou pra cada um, e eu sempre tenho que dividir por três ou por quatro pessoas. Mas eu não posso fazer isso aqui, porque nos restaurantes esse valor já vem dividido. O que é coisa interessante porque já vem tudo pronto, só não sei se é uma coisa boa para o consumidor, porque já mostra e dá uma ideia do quanto que é. Talvez seja um estilo anticorrupção, onde ninguém pode te enganar, mas também é uma coisa triste porque mostra que o brasileiro não sabe dividir.