Foto: divulgação / Ed. Record
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Em 2008 publicou Filosofia em Comum – para ler junto (Record). É professora do programa de pós-graduação em Arte, Educação e História da Cultura da Universidade Mackenzie, colunista da Revista Cult e ex-participante do programa Saia Justa, do canal GNT. O lançamento do novo livro em Porto Alegre será no dia 2 de agosto e contará com a participação de Tatata Pimentel e Tânia Carvalho. Nesta entrevista, Marcia Tiburi, que também é mãe, além de criticar o mito da maternidade, explica as confusões em torno de sua personagem Helena Shopenhauer Borges (Helena S.), poeta que nasceu bastarda em Santana do Livramento, em 1932, e era descendente direta de Arthur Shopenhauer, filósofo conhecido por considerar as mulheres como “míopes intelectuais”. Helena possui até mesmo perfil no Twitter e seria objeto de um estudo (ficcional), o que rendeu matérias de jornal e interesse de acadêmicos sobre o assunto, como se fosse uma pessoa real.
Extra Classe – Como você sintetizaria para os leigos a abordagem do seu novo livro, Olho de Vidro?
Marcia Tiburi – Olho de Vidro é um livro sobre a relação entre produtores, telespectadores e televisão. Queria compreender a relação entre o olho e a tela, bem como a distância que faz parte do conceito básico do que é televisão. Olho de Vidro acaba sendo uma metáfora desta peça doméstica para a qual as pessoas olham, mas que, ao mesmo tempo, parece olhar para elas. Sendo de vidro, no entanto, este olho não vê e funciona como uma prótese de conhecimento. As pessoas acreditam que a realidade está na televisão e não fora dela, porque acreditam que a televisão lhes dá o “tempo real”. A televisão passa a ser uma espécie de calibrador das experiências em geral das pessoas e isso define um desinteresse geral e até um descaso com o que fica de fora da televisão. O que não está na televisão não está na vida − passa a ser uma verdade para muita gente. Esta é a base da sociedade visual e televisual.
EC – Compreender o telespectador?
Marcia – Assim, a intenção geral do livro é compreender a construção da subjetividade do telespectador, essa pessoa que se coloca diante de um aparelho de TV, mas também do que chamei de “telespectador selvagem” aquela pessoa que, mesmo não tendo TV em casa (como eu, por exemplo) acaba vendo televisão em lugares públicos (saguões de hotéis, aeroportos e rodoviárias, salas de espera, lanchonetes e restaurantes, no metrô ou no ônibus) e até em salas de professores em escolas. Percebi que as pessoas viam televisão mesmo que não quisessem e que era verdadeiramente impossível desligar a TV nestes lugares. Me dei conta de que a televisão era um instrumento ditatorial: se pedimos para desligá-la em qualquer desses ambientes, não temos sucesso. Fiz o teste várias vezes: pedindo para que desligassem a TV, ou baixassem seu volume ou trocassem de canal, jamais fui atendida. Conversando com as pessoas que trabalham nesses lugares sempre disse “se você não pode desligar a TV, eu não posso desligar meus olhos e ouvidos, e então, como ficamos?”. A pessoa sempre dava de ombros ou dizia “sinto muito, outros podem querer ver”. A ditadura é do “televisivo” como se não houvesse sentido em se viver fora dele.
EC – O livro foi inspirado nas reflexões a partir da sua experiência em televisão? Em que sentido?
Marcia – Há muitos anos não vejo televisão. Há alguns anos, em 2005, fui chamada a participar de um programa de televisão (Saia Justa do Canal GNT) que fiz por cinco anos, até 2010. Meu interesse pela TV teve início quando comecei a fazer TV, mas não era um interesse em assistir (tanto que não assisti, a não ser como telespectadora selvagem) e sim um interesse em entender a hipervalorização do televisivo em nossa sociedade. A televisão é uma das experiências fundamentais em nossa cultura. Isso não quer dizer que ela seja uma boa experiência. Ao contrário, pelo excesso com que é vista, ela se torna ética e cognitivamente prejudicial às pessoas. Tem o teor do vício.
EC – E a Filosofia no meio disso?
Marcia – Havia também da minha parte uma curiosidade em entender o funcionamento da produção. Olho de vidro é o livro de uma filósofa que teve uma experiência com televisão e, por isso, foi chamada a pensar no sentido desse objeto com o qual se relacionou por um certo tempo por dever de ofício. Se eu não tivesse feito este livro, a experiência televisiva teria sido bem menos interessante e pouco valiosa, a meu ver.
EC – A filosofia pode ser pop? O que a sociedade ganha com a popularização de conceitos filosóficos e o que a Filosofia perde nos eventuais processos de simplificação?
Marcia – Não entendo que seja possível uma “Filosofia Pop” como vulgarização, popularização ou simplificação. É preciso pensar no que pode significar este termo pop. Não acho que a Filosofia fique “pop” no sentido da vulgarização ou banalização, mas no sentido de se tornar algo que emancipa o cotidiano, que atingindo a experiência de cada um o emancipa. Para pensar que os intelectuais que falam de Filosofia com o grande público estão fazendo “popularização” temos que partir de um conceito de Filosofia como “história canônica do pensamento” que pode ser “transmitida” ao público pelos “iniciados”. Eu não acho que Filosofia tenha que se restringir a uma “história!” que alguns podem entender e outros não. Eu não penso que as massas sejam incapazes de entender e que sejam necessários facilitadores. Não me coloco neste lugar até porque não falo de um “ponto de vista” da história da Filosofia pura e simplesmente como muitos professores que talvez possam ser mais tímidos. É claro que a história do pensamento tem valor e deve ser estudada com dedicação e afinco, coisa que nenhum intelectual acadêmico pode deixar de fazer. Eu mesma faço isso com muito prazer, mas considero que é muito pouco. Filosofia é um poder. A Filosofia pode mais.
EC – O academicismo enclausura o pensamento?
Marcia – Quero poder pensar livremente, quero inventar conceitos e gosto de fazê-lo em diálogo com pensadores do passado e do presente, mas não gosto de fazer exegese pura e simples. Penso que este é um trabalho pouco político e pouco relevante socialmente, embora muito prazeroso. É adorável passar a vida lendo Kant ou Nietzsche e fazendo a exegese, mas é pouco. Penso que a Filosofia acadêmica brasileira cai muitas vezes no fundamentalismo: a leitura dos textos pela crença de que se revelará seu sentido. E muitos professores de Filosofia só passam isso a seus alunos. Prefiro pensar Filosofia como uma experiência de pensamento livre. Que podemos criar conceitos, que podemos criar métodos, que podemos mais do que traduzir e escrever artigos que ninguém lerá, podemos dialogar com pessoas em geral, além de nossos pares, que podemos criar e recriar espaços democráticos de encontro da Filosofia com outras áreas.
EC – Uma maneira de trazer a Filosofia para o dia a dia?
Marcia – Acabo de lançar um livro chamado Filosofia Pop: Poder e Biopoder pela editora da Revista Cult onde escrevo mensalmente. O livro é uma seleção de artigos relacionados ao tema do corpo e do poder sobre o corpo que escrevo há anos. Segundo consta os meus artigos são muito lidos e não são nada fáceis de ler. São artigos em que busco analisar questões da cultura política, da cultura popular, do mundo “pop” propriamente dito, da era digital etc., questões que atingem muitas pessoas e que não são de interesse de muitos professores preocupados apenas com os textos dos pensadores do cânone. Sinceramente, creio estar propondo algo novo do jeito que venho tratando a Filosofia como um diálogo geral com tudo e com todos sem distinção de credo, poder econômico raça ou gênero. Quando Deleuze, por exemplo, falou de “Filosofia Pop”, ele comentou a relação entre os temas essenciais e urgentes em nossa cultura. E acho que ele acertou. Agora, existem muitos pensadores franceses, alemães (não conheço um brasileiro que faça isso) que fazem uma facilitação, sim. Não gosto deles, pois tratam a Filosofia como uma mera mercadoria. São aqueles que querem traduzir a história da Filosofia para leigos. Acho isso uma bobagem, pois qualquer manual faz isso. E existem manuais há tempos, muito antes da Filosofia ter entrado na pauta antropológica e cultural atual.
EC – A exposição na mídia provocou algum nariz torcido ou desprestígio na academia? Como você vê esse tipo de preconceito?
Marcia – Acho que não, pois fui aprovada em concurso de universidade pública (USP), fui chamada a dar aulas num dos melhores cursos de pós-graduação em Filosofia do país (PUC-RS), fui aprovada no concurso da Universidade Presbiteriana Mackenzie (onde leciono atualmente) e recebi muito carinho de vários colegas com a minha relação com a TV. Claro que fofocas eu ouvi (inveja, medo, covardia?), mas como diretamente ninguém veio me criticar, penso que eram só boatos. Afinal, não vou pensar que meus colegas são covardes e incapazes de expressar suas opiniões livremente. Claro que se lerem meu livro (quem lerá?) poderão criticar e vou ficar muito feliz com isso. Há muitos professores universitários que assistem TV, que fazem TV e que gostariam de fazer TV. Há quem não goste, não curta e não faça. Quando se fala em “academia” hoje no Brasil parece que estamos falando da academia na época da semana de 22, ou antes da arte moderna… Não acho que eu tenha feito nada ousado tendo participado de uma experiência televisiva. Eu participaria de muitas outras (circo, atravessar o mundo numa jangada, dirigir caminhão, andar de balão etc.) se tivesse a oportunidade.
“O que há de mais difícil hoje em dia é o diálogo. A Filosofia pode, como experiência prática da linguagem, promover o diálogo entre instituições e pessoas”
EC – Qual é o papel do filósofo na chamada “sociedade da informação” e que forma de atuação você escolheu?
Marcia – Veja, eu não escolhi pura e simplesmente. O fato de que eu esteja presente em certa cena dos meios de comunicação é algo espontâneo. Aconteceu. Não posso dizer que simplesmente escolhi fazer TV, apenas aceitei a possibilidade, assim como não escolhi ser professora, mas aceitei a aventura. Eu nunca pensei no que poderia acontecer, mas fui aceitando possibilidades que julguei válidas. Quando falo de meios de comunicação, gosto de incluir o livro. Isso que alguns chamam “sociedade da informação” também inclui o meio chamado “livro”. Verdade que eu prefiro o livro e vejo muito mais potencial de emancipação social nos livros do que nos meios que se valem da imagem, mas nem todos os livros são emancipatórios. Autoajuda, por exemplo, é um gênero de livro que fica bem difícil de se defender. Tem programa de TV melhor do que livro de autoajuda. E agora? Sobre a Filosofia neste contexto, penso que há uma tarefa, sim, uma tarefa social. Ela diz respeito à crítica, ao esclarecimento e à produção de um debate democrático. O que há de mais difícil hoje em dia é o diálogo e, a meu ver, a Filosofia pode, como experiência prática da linguagem, promover o diálogo entre instituições e pessoas.
“A sala de aula é o melhor espaço para a experiência filosófica. A tarefa do professor é trazer conteúdo, mas também a forma, o método desta experiência que é sempre experiência de pensamento e de diálogo”
EC – Aqui no RS muitas escolas já reintroduziram a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias nas grades curriculares, mas o prazo para adaptação de todas as escolas encerra em 2012. A partir da sua experiência docente, como deve ser tratada a Filosofia no Ensino Médio, que também passa a se tornar obrigatória em todo Brasil?
Marcia – A sala de aula é, a meu ver, o melhor espaço para a experiência filosófica. A tarefa do professor é trazer conteúdo, mas também a forma, o método desta experiência que é sempre experiência de pensamento e de diálogo. O conteúdo vai desde o texto canônico, até, por exemplo, o texto do jornal onde questões centrais podem estar sendo expostas, se estende pelo filmes (clássicos ou não) e segue pelas diversas formas de arte e representação. Tudo pode ser usado numa aula de Filosofia. E é preciso provocar os alunos para que pensem, para que encontrem soluções, para que analisem argumentos, possibilidades, saídas. E para que prestem atenção no que estão pensando e fazendo quando buscam conhecimento e compreensão de suas ações. A Filosofia não é só um conteúdo do conhecimento é também aprendizado sobre a ação. Neste sentido, a Filosofia é prática e como tal é a experiência da ética, do que significa pensar sobre o que se faz.
Foto: divulgação / Ed. Record Foto: divulgação / Ed. Record
Marcia – Em poucos dos meus livros a questão de gênero é fundamental. Já fiz 18 livros (três romances, um infantil, duas teses, quatro antologias, dois diálogos e o resto são ensaios filosóficos) e eles são muito diferentes entre si. Mas dois deles, duas antologias, As Mulheres e a Filosofia e Mulheres, Filosofia ou Coisas do Gênero, a questão é “mulheres”. No Saia Justa a minha posição não podia ser diferente. Era um programa de mulheres e com nenhuma feminista. Eu me tornei muito mais feminista do que eu era com a experiência Saia Justa. Antes já tinha me dado conta do patriarcado e do machismo no mundo acadêmico. Passei, com o Saia Justa, a me sentir na obrigação moral de ser feminista. Pois, como costumo dizer, não tenho nenhuma necessidade de ser feminista, já que sou livre econômica, política, sexual e psicologicamente, mas vejo o sofrimento das mulheres que não têm as mesmas chances e possibilidades que eu e me sinto em dívida e gratidão para com as antepassadas, as heroínas, que abrindo os olhos da sociedade por meio de suas próprias práticas, me deram a chance de eu ser livre hoje. Feminismo para mim é uma questão de solidariedade. Até os homens podem ser feministas, até porque o feminismo também os liberta. Na história da Filosofia, a coisa é séria, pois os filósofos homens disseram absurdos sobre as mulheres e foram grandes machistas. A história da Filosofia sobre as mulheres merece atenção.
EC – Qual a tua posição, por exemplo, no que se refere à questão do aborto?
Marcia – Aborto é uma questão pessoal de cada mulher. No Brasil, infelizmente, ser mãe é um mito a ser desconstruído.
EC – Qual mito?
Marcia – O milenar discurso patriarcal inventou que a função das mulheres é a maternidade. Que ser mãe é algo sublime e maravilhoso. Isso podia ser antigamente, mas não é mais porque as mulheres descobriram que podiam ser diferentes disso. De qualquer modo, para muitas pessoas o sentido da existência das mulheres não se dá sem que se tornem mães. O resultado é que, se não se tornam mães, parece que cometeram um erro, um pecado. Muitas mulheres se sentem impotentes, incapazes. Outra coisa, muitas mulheres não se dão o direito de não desejarem filhos. Muitas não desejam, mas não ousam negar o discurso coletivo. Resultado: mulheres infelizes e filhos maltratados. Aliás, isso se aplica também aos homens com a diferença de que eles não são cobrados quando não têm filhos. E ninguém os vê como erros da natureza quando não procriam.
EC – Infelizmente, a mulher ainda faz parte de estatísticas alarmantes, tanto como vítima de violência doméstica, quanto de discriminação na sociedade. Qual o caminho a ser trilhado no imaginário desta mesma sociedade para modificar essas realidades?
Marcia – Não existe um caminho senão o da produção do respeito e do autorespeito. Não se desconstrói o patriarcado e toda a sua carga simbólica e imaginária de um dia para o outro. O feminismo foi a revolução que começou esta grande transformação que ainda não se concluiu e duvido que se conclua, pois a democracia que ele visa deve ser sustentada diariamente.
EC – Qual a experiência televisiva mais interessante, Saia Justa ou Café Filosófico?
Marcia – O Café Filosófico não foi exatamente uma experiência televisiva. O Café funciona assim: você dá uma aula em Campinas (SP) para pessoas que estão na sua frente em um centro cultural, o da CPFL. Alguns cinegrafistas gravam e alguém edita. Você não participa nunca da produção. Nunca entra em um estúdio, não vê roteiro, nem edição. É como dar uma aula. O primeiro que eu fiz em 2003 (e que nunca assisti, aliás, nunca assisti nenhum Café Filosófico, assim como nunca assisti nenhuma aula gravada minha em outro lugar) teve um feedback muito legal quando foi ao ar em 2004 e reprisou muitas vezes. O pessoal do Saia Justa, do GNT, me chamou por causa do Café. Com o Saia deu pra saber um pouco mais o que era televisão. E como meu livro nasceu da minha relação reflexiva a partir do fato de que eu fazia o Saia, penso que esta foi minha experiência televisiva. O Café eu faço sempre que me chamam, mas é mais uma experiência como a de sala de aula.
EC – Quem foi, como surgiu o personagem Helena Schopenhauer Borges e qual o objetivo desse “estudo”? Muita gente pensa se tratar de alguém que realmente existiu. Conte um pouco dessa história.
Marcia – Muitas pessoas pensam que Helena S. é realidade, mas ela é ficção. Quem conhece meus romances sabe disso. É uma tentativa de fazer literatura coletiva… Como deu pra ver por minha relação com a Filosofia, eu gosto dos processos coletivos, sobretudo de desmistificá-los, mas acho que o coletivo também pode produzir coisas boas. Helena S. é a heroína desta luta pela preservação da ficção, da fantasia, da imaginação literária contra a colonização da imaginação pela publicidade, enfim, por este mundo administrado. Helena já me rendeu boas histórias reais: amigos e familiares pensaram que eu tinha mesmo o material entregue por professores de Santana do Livramento. Uma amiga de lá procurou as professoras pela cidade toda. Algumas pessoas me mandaram cartas especulando sobre a existência de Helena S. Alguns também inventaram um pouco e isso me deixou muito contente pra seguir com a ideia. Sinceramente, muitas vezes eu mesma começo a acreditar na história. Atualmente continuo investigando e procurando mais vestígios da poeta que se suicidou em 1977 e que passou uns tempos presa, quais os motivos desta prisão? E ficou por uns tempos também internada em um manicômio, além de ter vivido na rua. Seria louca? Veja que eu falo da personagem como de alguém real, é isso o que confunde as pessoas. Mas o que nos importa é a obra de Helena S. São as poesias, ela deixou muita coisa escrita. E há poucos dias, olhando o material imenso deparei-me com um romance impressionante. Procurarei uma editora que tenha coragem de publicar tudo isso. O dossiê tem mais de 30 pastas. Infelizmente, nada organizadas. A minha tarefa é organizar, catalogar, classificar. Fico em dúvida porque a poesia não cabe nas teorias e eu me esforço por compreender sua lógica. É quase um trabalho curatorial, não fosse um trabalho de guardiã. Guardiã do imaginário. É assim que eu me sinto cuidando de Helena S.