Família em desconstrução
Foto: Igor Sperotto
Solteiros que querem ter filhos e criá-los sozinhos, casais que levam para a nova relação seus filhos de casamentos anteriores, parceiros homossexuais que realizam o desejo de ter filhos por meio de inseminação artificial ou de adoção, separados que exercem a paternidade nos finais de semana, casas onde as mulheres são as principais provedoras.
As mudanças de comportamento converteram os arranjos familiares do século 21 em uma espécie de jogo de armar. Hoje, cada família se configura a partir das peculiaridades dos seus integrantes e não o inverso, como ocorria em um passado não tão remoto.
Uma diversidade que torna cada vez mais obsoleta a concepção de família tradicional, inclusive porque até grupos formados por pai, mãe e filhos também tiveram que se adequar às demandas contemporâneas. A começar pela prioridade às diferenças, expectativas e valores afetivos, que se sobrepõem a preceitos ligados ao casamento enquanto mera instituição. “A família continua sendo importante na organização da sociedade, no acolhimento e crescimento das pessoas, mas precisamos ter clareza que não sabemos de quem exatamente estamos falando quando utilizamos esse termo. Por isso, deve estar sempre no plural, para que possamos incluir formatos e não excluir nem discriminar pessoas”, observa a psicóloga e pesquisadora da Universidade do Rio de Janeiro (Uerj), Anna Paula Uziel, coordenadora da Rede Parceria Civil, Conjugalidades e Homoparentalidades.
Foto: Igor Sperotto
A redução do número de filhos por casal, o aumento do número de casamentos consensuais, a perda de popularidade da união civil e religiosa, a incorporação das mulheres no mercado de trabalho e ainda o retardamento da idade limite para casar, segundo os especialistas, são alguns fatores que explicam as transformações dos núcleos familiares. Livres da pressão para que se reproduzam e da obrigação de sustentar um modelo rígido de família, as pessoas se sentem mais preparadas para empreender relações mais sólidas, priorizando a autonomia: o individualismo e a realização pessoal vêm antes das tradições. “As famílias cada vez mais se estruturam de forma diferente daquela que se acreditava ideal. A maternidade como realização da mulher e o grande apego da mãe aos filhos são fatores responsáveis por muitas neuroses e mal-estar no modelo rígido de família nuclear”, observa a psicanalista Roséli Cabistani, autora da tese Sentidos da Função Paterna (Ufrgs, 2007).
“As décadas de 60 e 70 foram fundamentais para as transformações que vemos hoje em relação à sexualidade e à família. A pílula anticoncepcional, a lei do divórcio, a entrada significativa da mulher no mercado de trabalho, as conquistas de movimentos sociais como os feministas e o hoje chamado LGBT foram alguns dos propulsores das mudanças sociais”, acrescenta Anna Paula Uziel.
A concepção de família no país sofreu uma ruptura com a Constituição de 1988, repara a pesquisadora da Uerj, que passa a dar respaldo legal para o reconhecimento, com igualdade de direitos, de diversos formatos de família. “Por outro lado, depois desse momento de conquista de direitos, os legisladores têm sido tímidos em avançar e a justiça assume um papel preponderante. Apesar de a lei não prever, desde 2005 no Brasil casais de pessoas de mesmo sexo podem registrar seus filhos no nome dos dois ou das duas”, avalia. O reconhecimento pelo STF da união estável entre pessoas do mesmo sexo foi mais um passo do Judiciário. “No entanto, é preciso reconhecer as tensões, que tendem a diminuir, mas não a acabar. Como não é lei, as decisões variam muito de comarca para comarca, mas a justiça tem se aberto ao debate sobre diferentes formas de família”, ressalta Anna Paula.
Tradições em declínio
A ruptura com os mandatos sociais representada na mudança do perfil das famílias se reflete nas estatísticas das últimas décadas. O padrão histórico de casal com filhos, predominante no país, aumentou de 52,8% em 1992 para 59,4% em 2002, mas sofreu uma redução, para 47,3%, em 2009, de acordo com o IBGE. Já o número de famílias compostas por mulheres sem cônjuge e com filhos vem crescendo desde a década de 80. O percentual de famílias que têm mulheres como referência aumentou de 15,8% em 1992 para 17,4% em 2009, assim como os casais sem filhos, que cresceram de 12,9% no começo da década de 90 para 17,4% no final dos anos 2000.
Um exemplo de novos arranjos familiares ainda não mapeado pelo IBGE é o modelo monoparental masculino, com filhos mantidos somente pelo pai. Essa configuração aparece no censo como ‘outros arranjos’. “Precisamos desenvolver instrumentos que sejam capazes de captar as mudanças. Desde o censo de 2000 se discutia como identificar casais de pessoas do mesmo sexo, que entravam na rubrica ‘agregados’. As pesquisas e seus instrumentos também precisam ser adaptados para dar conta das novas realidades”, pondera a pesquisadora da Uerj.
Para a orientadora do Programa de Pós-graduação em Família na Sociedade Contemporânea da Universidade Católica de Salvador (UCSal), Lívia Alessandra Fialho da Costa, as pesquisas mostram que as transformações ocorrem não só nos tipos de arranjos, mas também nos laços familiares. “As relações intrafamiliares mudaram sensivelmente. Mas não foi apenas a família que mudou. Os serviços do estado, a educação, a saúde, os direitos humanos também. Nos últimos 40 anos, as normas sociais sofreram uma diversificação e a família, como qualquer outra parcela da sociedade, acompanhou a complexidade dessas mudanças”.
Doutora em Antropologia Social e Etnologia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, Lívia ressalta que as transformações familiares são vividas no dia a dia e se expressam em tensões e conflitos, mas também em adequações. “Isso tudo é o movimento e o dinamismo próprio da sociedade. Essa sensação de crise por que passa a família não é um fenômeno novo. A partir dos anos 1960, por exemplo, os casamentos ‘arranjados’ passam a perder legitimidade, dando espaço às uniões fundadas na escolha, no desejo, no amor entre cônjuges. O divórcio, aliás, passa a ser possível a partir da própria evolução dos comportamentos familiares”.
Segundo Lívia, são mudanças que colocam para a sociedade o desafio de aceitação e convivência com novas formas de viver a conjugalidade. “Mulheres e homens continuam buscando o casamento ou a união consensual e a família continua contribuindo para a reprodução da sociedade”, constata.
Nessa reconfiguração das relações familiares, concorda a pesquisadora da UCSal, a valorização dos vínculos afetivos e a qualidade das relações se sobrepõem à mera manutenção da instituição família. “Existe uma tensão que marca a família na contemporaneidade: ao tempo em que é desejada – pois a vida privada é o espaço do cultivo do eu –, a família sofre com a instabilidade que a caracteriza, uma vez que sua duração depende da satisfação recíproca. Parafraseando o sociólogo francês François de Singly, não se trata somente de “estar juntos”, mas de “estar juntos e livres”. Marcada pela cultura psicológica, a família contemporânea volta-se, assim, para valores como autenticidade, independência e autonomia. A dimensão da escolha passa a ser valorizada e admitida como ideal de expressão dos desejos individuais – realizados, obviamente, dentro de normas e padrões que não devem, em princípio, contradizer as fronteiras simbólicas de determinado universo sociocultural”.
Ao contrário do que possa parecer, alerta Lívia, a opção não é pela ausência, mas pela pluralidade de normas para construir a família. “A diversificação dos arranjos marca profundamente a contemporaneidade. O modelo dominante da família composta por um casal de pais biológicos e por seus filhos vai dando espaço a outras configurações possíveis: as famílias monoparentais, unipessoais, homoafetivas e recompostas”, completa. “Eles rejeitam o nó, não o ninho. O que desejam é conciliar as vantagens da solidariedade familiar e as da liberdade individual”, resume a historiadora francesa Michelle Perrot, em artigo de 1993.
Opção pela maternidade
Foto: Igor Sperotto
Na contramão das estatísticas, que desde o final dos anos 90 apontam a redução para 1,9 a média de filhos por casal no país, Cristina Oliveira Quadros, 46 anos, e Osvaldo Peuckert, 54, têm cinco filhos. “Foi a nossa opção, estava tudo planejado desde o casamento, os filhos não vieram por acaso”, avisa ela. Mãe de Rafael, 19 anos, Felipe, 17, Débora, 16, Camila, 13, e Lívia, 11, Cristina afirma que está acostumada a enfrentar obstáculos no dia a dia em virtude do tamanho da família, incomum para os padrões de classe média.
“As instituições e a sociedade, de uma maneira geral, estão desacostumadas com as família grandes. Isso gera situações inusitadas”, revela. Para ilustrar, conta que, em 1994, após o nascimento do terceiro filho, respondeu a uma pesquisa de satisfação da maternidade do mesmo hospital onde fizera os dois partos anteriores, em 1992 e 1993, e a sequência de nascimentos com intervalos de pouco mais de um ano foi interpretada como erro pelo sistema. “A resposta à pesquisa foi rejeitada porque o intervalo reduzido entre um parto e outro foi considerado improvável”. Na hora do check in em aeroportos, já ouviu coisas do tipo “excursão pode passar direto no balcão”; ou “temos desconto para hotéis e pousadas” ao comprar roupas de cama para sete pessoas.
“Não faço compras em supermercado, mas em atacado, e se sobrar cinco panquecas do almoço isso não significa nada para a janta”, diverte-se, revelando que trabalha com desenho de joias e como tradutora. “Abri mão de tudo para ser mãe e me sinto plenamente realizada. Cada filho é diferente e o mais difícil é lidar com essas diferenças, entender que não é por ter nascido da gente que ele não precisa ser conquistado, respeitado nas suas escolhas e encaminhado para a vida de forma independente”.
Parentes assumem função de pai e mãe na família pós-moderna
Há uma inversão na realidade: é raro o aluno que tem família estruturada com pai e mãe”, relata Rosane Müller, coordenadora cultural da Escola Estadual de Ensino Fundamental Villa-Lobos, na zona Sul de Porto Alegre. “A função de pai e mãe é exercida por pessoas que são referência, que assumem e dão sustentação material e emocional para a criança. Na maioria dos casos, é a mãe ou o irmão mais velho quem exerce essa função. É a família pós-moderna”, analisa. De acordo com Luiz Fernando Oderich, presidente da ONG Brasil Sem Grades e autor do livro Os filhos da mãe, 20% da população brasileira não tem o nome do pai na carteira de identidade o que, para o autor, explica “a desestruturação da família”.
“Costumo ser muito firme, mas não é fácil tomar conta de adolescentes. A gente educa, a escola ensina, mas a rua deseduca”, queixa-se Inês da Conceição dos Santos, 66 anos, que assumiu desde a maternidade a criação dos três netos, hoje com 11, 13 e 16 anos, que ficaram órfãos de mãe quando ainda eram bebês.
Rosane explica que a escola mantém as festividades de dia das mães e dos pais, mas instituiu o dia da família e o dia da comunidade para contemplar grupos familiares chefiados individualmente por mães, pais, avós, tios ou irmãos. A coordenadora de Ensino Fundamental da Secretaria Municipal de Educação da capital, Valéria Carvalho de Leonço, ressalta que essa política visa à inserção da escola nessa nova realidade. “A família mudou e as crianças já não aceitam tudo que a escola diz, já não faz sentido aquela história de que a professora seria a “segunda mãe”. Eles são contestadores, até por conta de uma realidade da periferia em que há separações, perdas de pais e mães por envolvimento com drogas e pela violência. Quando se consegue trazer as famílias para dentro da escola essa relação muda, ambas se fortalecem, a escola deixa de ser vista como adversária”.
Ainda há preconceito
Foto: Marcelo Amaral
A atriz e professora de teatro e Educação Física Betha Medeiros, 49 anos, foi a protagonista do primeiro caso de união civil e adoção homoafetiva do país, ao formalizar em cartório o relacionamento com sua companheira, Kharla, em 2004. No ano seguinte, o casal deu entrada nos papéis para a compra de um imóvel, juntando as rendas e o FGTS de ambas, e também encaminharam a adoção de Vic, que tem o sobrenome das duas mães. Foram seis meses de entrevistas e dois anos de espera até a adoção. “Juízes de cabeça mais aberta, sem preconceitos ligados à religião, conseguem enxergar mais além e perceber coisas que outros juízes não veem. Ou não querem ver”, diz Betha. “É comum o estranhamento e o preconceito em relação a casais homossexuais, mas recebemos muitas manifestações de apoio”, relata, lembrando a reação dos servidores que encaminharam a adoção. “No dia em que fui buscar a certidão de nascimento definitiva da Vic no cartório da Tristeza, o escrivão me chamou, estendeu a mão visivelmente emocionado e disse: ‘meus parabéns e obrigado por ter escolhido nosso cartório. Este documento é histórico!’. Tanta amabilidade a gente até estranha, né?”. Betha destaca que a convivência se baseia no trinômio respeito mútuo, diálogo e companheirismo, “sem contar que com duas mães fica mais fácil dar conta das tarefas domésticas”, acrescenta. Sobre a criação de Vic, ela pondera: “fico imaginando quando surgirá a raiva, o sentimento de abandono, de perda, os questionamentos, a curiosidade sobre seu passado… O jeito é a gente respirar fundo e esperar. Sem forçar a barra. Controlando o nosso medo, a nossa insegurança. Tentando fazer tudo da forma mais tranquila possível. Se é que isso é possível”.
Dois pais, duas mães
Foto: Ana Rosalina/ Divulgação
A união estável entre companheiros do mesmo sexo foi reconhecida por unanimidade pelos ministros do STF no dia 5 de maio deste ano, estabelecendo direitos previdenciários, a bens e herança, a fazer declaração conjunta de Imposto de Renda e a adotar filhos. Sete anos antes da decisão do Supremo, a Justiça gaúcha já reconhecera não só o status de união estável a relacionamentos homoafetivos como a adoção conjunta de crianças por casais homossexuais. Sempre que o casal atender às exigências psicológicas e socioeconômicas comuns aos heterossexuais e o pedido de adoção for feito no nome dos dois, será aceito, declarou à época o juiz José Daltoé Cézar, da 2ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre. “Os avanços são inegáveis, mas percebemos uma homofobia institucionalizada. O estado tem se mostrado desorientado, despreparado em relação às uniões homoafetivas, especialmente no que diz respeito à emissão de documentos civis”, critica Ana Naiara Malavolta, articuladora estadual da Liga Brasileira de Lésbicas. “A união homoafetiva é uma opção real, mas a gente ainda apanha por namorar em público”, sintetiza.
Juntos há 16 anos, o produtor de teatro Airton de Oliveira e o técnico Marcos Buffon contam que se inscreveram em janeiro de 2009 para o processo de habilitação à adoção e, em 14 de dezembro daquele ano já estavam com a guarda provisória dos filhos adotivos, de 6 e 11 anos. “A preocupação nem era tanto com o preconceito e a discriminação que a gente sabe que existe, mas com o significado de assumir a criação de filhos, o temor de não ter tempo para eles. No entanto, a integração foi imediata, pois o desejo de ser pai fala mais alto e, inclusive, as crianças foram consultadas e concordaram em ser adotadas por um casal homoafetivo”, relata Airton.