GERAL

Justiça precária

A Defensoria Pública do RS trabalha com quadro de pessoal reduzido, falta de infraestrutura e orçamento apertado
Por Adriana Machado / Publicado em 7 de setembro de 2012
Peri Vargas de Oliveira, deficiente visual e aposentado do INSS, luta para conseguir uma máscara nasal

Foto: Igor Sperotto

Peri Vargas de Oliveira, deficiente visual e aposentado do INSS, luta para conseguir uma máscara nasal

Foto: Igor Sperotto

O sistema de Justiça no Brasil nem sempre está disponível a cidadãos de todas as classes sociais. Infelizmente, quem mais precisa ter seus direitos protegidos são os que sofrem com doenças, desemprego, fome e precariedade dos serviços públicos. Ou seja, a população em situação de vulnerabilidade, sem condições financeiras de arcar com os custos de um processo e dos honorários de um advogado.

Assim como milhares de gaúchos, Peri Vargas de Oliveira, de 45 anos, recorreu aos serviços prestados pela Defensoria Pública do Estado (DPE/RS) para tentar solucionar seu problema. Deficiente visual e aposentado do INSS, ele luta para conseguir uma máscara nasal. “Tenho apneia do sono, preciso do aparelho para poder dormir. Não tenho recursos, este é o meu único meio de socorro”, diz. Peri não está sozinho na árdua batalha por fazer valer seus direitos. O atendimento na DPE/RS cresce de 5% a 6% ao ano. No atendimento geral da Unidade Central de Ajuizamentos Cível (que abrange o Núcleo da Saúde, Direito do Consumidor, Regulamentação Fundiária e diversos), no centro de Porto Alegre, passam 240 pessoas por dia.

No final do ano, o número duplica. Conforme Relatório de Gestão 2010/2011 de outubro de 2010 a setembro de 2011, foram realizados 458.854 atendimentos à população gaúcha, 4,6 % a mais que no período anterior (outubro de 2009 a setembro de 2010). Considerando o universo de pessoas atendidas, a maior demanda ocorreu na área do Direito de Família com 167.225 atendimentos (36,44%), tendência mantida nos últimos anos. A área Cível vem a seguir com 149.621 (32,60%) atendimentos, mantendo-se praticamente inalterada em relação ao período anterior. As duas áreas juntas representam quase 70% da demanda da população gaúcha à Defensoria Pública.

Infelizmente, o quadro de pessoal não consegue acompanhar o aumento da demanda pelo serviço prestado pela instituição. Atualmente existem 359 defensores públicos em atividade para atender 164 comarcas gaúchas, ou seja, municípios em que há atuação da Justiça (juiz e promotor público). Em 30 delas, o servidor se desloca para outro local uma ou duas vezes por semana.

“Precisamos do dobro, ou seja, de 800 advogados no total atuando em todo o estado”, ressalta Luciana Pereira Kern, subdefensora pública-geral. O incremento, diz, se justifica na “enorme” demanda de ações civis públicas promovidas pelo Ministério Público e o pedido de permanência de defensores nas delegacias de polícia, principalmente nas DPPAs. “Isto para que se possa acompanhar o flagrante, garantindo os direitos do preso”.

Estruturação lenta 

Para entender o gargalo no quadro de pessoal na DPE é preciso voltar ao passado. Em maio de 1994, com base na Constituição Federal de 1988 – nascia a Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul. Desde então a instituição vem sendo estruturada. Inicialmente, contava com os serviços dos antigos assistentes superiores judiciários, vinculados à Procuradoria Geral do Estado, e também com os auxiliares da Susepe.

Quem prestava assessoria jurídica passou a ser enquadrado como defensor público. O primeiro concurso ocorreu em 1999-2000, seguido de mais outros três. Desde o início deste ano, já foram feitas 80 nomeações e, até março de 2013, serão chamados o restante dos aprovados. Hoje a instituição possui 415 cargos criados por lei. Destes sobrarão apenas cinco cargos vagos. Em contrapartida, irá ocorrer uma gradual redução do número de defensores públicos em decorrência de aposentadorias.

A subdefensora confirma a realização nos próximos meses do primeiro concurso público para suprir 400 cargos de servidores de níveis superior e médio em diversas áreas. “Com 20 anos de existência, ainda não temos um quadro efetivo de apoio administrativo. Trabalhamos com um número pequeno de cargos de confiança oriundos da Procuradoria Geral do Estado e com estagiários”, diz.
“Sem um corpo técnico ficamos com uma série de dificuldades operacionais. Precisamos de outros profissionais para que o serviço jurídico se torne mais dinâmico”, revela. Em alguns municípios, pela deficiência estrutural e de pessoal, as filas de espera aumentam. Dependendo da região, até 400 pessoas aguardam o atendimento. Para isto, a Defensoria Pública tem organizado mutirões, deslocando de dez a 20 defensores de Porto Alegre para estes locais.

A Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa expediu no primeiro semestre aproximadamente 400 ofícios com demandas de serviços jurídicos, a maioria deles encaminhados para a DPE/RS. Grande parte dos casos abrange violações dos direitos humanos. Luís Carlos Trombetta, coordenador da Comissão, aponta outro problema: “Os defensores públicos, na sua maioria jovens advogados em início de carreira, ficam sem saber quem devem atender primeiro, se a mãe, a criança ou o idoso”, opina.
Segundo Trombetta, o processo de gestão da instituição, com tantas demandas, se complica porque a carência e as necessidades crescem a cada dia. A advogada Karina Santos, também da Comissão de Cidadania da Assembleia Legislativa, acredita que, pelo fato de não ter os recursos necessários, a própria Defensoria acaba sendo um órgão público violador dos direitos humanos. “Não é que esteja se negando a atender as pessoas mais carentes, mas não sabe quando poderá fazê- -lo. E são problemas sociais sérios a serem atendidos como déficit de desenvolvimento familiar”.

Orçamento baixo 

Os entraves para a dinâmica do funcionamento da DPE/RS também esbarram em outras deficiências. Uma delas é orçamentária. “Apesar da autonomia administrativa e financeira, todos os anos lutamos para aumentar os percentuais”, diz a subdefensora. Atualmente a Defensoria Pública conta com 0,34% do orçamento geral do estado. O Ministério Público tem 2% e o Judiciário 8%.

Para o presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Henrique Nelson Calandra, investimentos são fundamentais para o aprimoramento da atividade considerada intensa e complexa. “Até bem pouco tempo, a Defensoria Pública não existia no Brasil. É necessário ter prédio, maquinários, servidores e veículos”, diz. Segundo ele, o governo precisa ter um olhar diferenciado para a instituição e uma solução mais adequada seria a possibilidade de algum tipo de arrecadação.

A esperança de estruturação dos espaços físicos da sede da DPE/RS e das suas regionais, que, na sua grande maioria, funcionam dentro dos fóruns, está na aprovação da PL 7.412/2010. O Projeto de Lei define que do montante dos rendimentos líquidos recebidos dos depósitos judiciais, 10% serão destinados à Defensoria de cada estado e do Distrito Federal. Os valores deverão ser direcionados para construção, recuperação, reforma e restauração física de prédios, entre outros.

O jornalista e sociólogo Marcos Rolim concorda com a existência de uma agenda de reformas assumida pelos governos e pela opinião pública para que as Defensorias possam ter o peso necessário para a oferta dos seus serviços. “Teremos ainda uma ou duas décadas de muita luta em torno do objetivo de assegurar o fortalecimento institucional no Brasil”, diz.

Territórios de Paz 

Defensoria presta serviços no Mathias Velho, em Canoas

Foto: Igor Sperotto

Defensoria presta serviços no Mathias Velho, em Canoas

Foto: Igor Sperotto

Independentemente de soluções imediatas, o órgão presta serviços descentralizados, como nos Núcleos de Justiça Comunitária dos Territórios de Paz Guajuviras e Grande Mathias, em Canoas.

O defensor público Marcelo Candiago, que atua no projeto, reforça que potencializar o diálogo significa promover a pacificação.“Buscamos a recomposição familiar. Em algumas situações conseguimos evitar possíveis agressões devido ao conflito”, diz.

O acolhimento também faz a diferença. Uma equipe multidisciplinar realiza uma espécie de triagem analisando se a demanda é psicológica, assistencial ou jurídica. “Precisamos entender o problema daquela comunidade. A solução construída entre as partes facilita a compreensão, é mais efetiva e duradoura”, completa.

A maior parte das demandas é de ações relacionadas à família como pensão alimentícia, investigação de paternidade, separações e divórcios. Moradora do bairro Grande Mathias, M. Soares tinha um problema de família há quase um ano. Procurou o auxílio e assegura que o serviço prestado pela Defensoria Pública é fundamental. “Temos uma acesso mais rápido a este recurso”, opina.

Brasil e América Latina – No V Congresso da Associação Interamericana de Defensorias Públicas, realizado de 13 a 19 de agosto, em Fortaleza, o presidente da Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep) e também presidente da Associação Interamericana de Defensorias Públicas (Aidef), André Castro, afirmou que existem atualmente 5,5 mil defensores, 16 mil juízes e 9 mil integrantes do Ministério Público. “Ainda há um desequilíbrio muito grande, como foi inclusive reconhecido pelo Ministério da Justiça, que prometeu lutar ao nosso lado”.

Na opinião do presidente da Aidef, o ideal é a existência de um defensor público para cada 15 mil habitantes com renda de até três salários mínimos. Mas em todo o Brasil, apenas 42,71% das comarcas disponibilizam o serviço. Somente Rio de Janeiro, Tocantins, Roraima, Mato Grosso do Sul e Distrito Federal oferecem o atendimento jurídico em 100% das comarcas.

O estado de Santa Catarina foi o último da Federação a criar a Defensoria Pública, e prevê apenas 60 defensores para todo o estado, quando deveriam ser no mínimo 280. Em Goiás, diz, a Defensoria Pública foi criada por lei em 2005 e desde 2009 se arrasta
o primeiro concurso público para defensor público, suspenso pela segunda vez.

O presidente inclui ainda a situação desfavorável existente em São Paulo. O governador Geraldo Alckmin
enviou à Assembleia Legislativa um projeto criando 400 novos cargos, atualmente são 500 defensores
em todo o estado. “O cálculo do número necessário é de pelo menos 1,8 mil defensores públicos, já que
atuam no estado 2,2 mil juízes e cerca de 1,8 mil promotores”, diz André. No Ceará, existem 415 cargos
de defensores públicos, porém somente 285 foram nomeados, ficando vagos 130 postos.

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