Igor Sperotto
Igor Sperotto
O Extra Classe conversou com o sociólogo e ergólogo francês Pierre Trinquet, que veio ao Brasil para participar do I Seminário Aberto sobre Atividade de Trabalho: uma perspectiva ergológica, na PUCRS, no dia 11 de março. O evento foi promovido pelos programas de pós-graduação em Letras da PUCRS, Linguística Aplicada da Unisinos e Educação da Ufrgs, por iniciativa de professores que utilizam a perspectiva ergológica em suas pesquisas. Doutor em Sociologia e colaborador do Instituto de Ergologia da Université de Provence, Trinquet aborda questões relativas ao trabalho a partir de uma perspectiva humanista. Segundo ele, a Ergologia é um método pluridisciplinar que tem como função perceber, compreender e transformar positivamente as relações de trabalho. O sociólogoiniciou suas observações e estudos quando ainda era trabalhador da construção civil em uma grande empresa da França. Doutorou-se em Sociologia e diplomou-se em Ergologia, participando das atividades do Instituto de Ergologia da Université de Provence desde sua criação há quase 30 anos. Hoje, realiza pesquisa e intervenções em instituições públicas e privadas na França sob o tema da saúde e da segurança no trabalho.
Extra Classe – Em que consiste a Ergologia?
Pierre Trinquet – Antes de mais nada, a Ergologia não é uma ciência em si, mas um método, uma abordagem fundamentalmente pluridisciplinar. Um método que tem por objetivo entender melhor a atividade humana, para melhorá-la. Uma coisa fundamental que estabelecemos dentro da Ergologia é que não é possível entender o trabalho sem a participação dos trabalhadores, quaisquer que sejam, em todos os níveis. Os operários têm um saber de experiência que na Ergologia é chamado de saber investido. E esse saber, construído na prática, de maneira empírica é tão importante quanto o saber cientí co das diferentes disciplinas sobre o trabalho, como Psicologia, Filoso a, Ergonomia etc.
EC – O senhor poderia nos dar um exemplo deste conhecer?
Trinquet – Um exemplo que nos vem dos nomes mais importantes da Ergonomia francesa e do mundo, Alain Wisner, que foi médico do trabalho nas fábricas de automóveis Renault. Ele tinha por objetivo reduzir o cansaço dos operários e melhorar as condições de trabalho. Em determinado momento, a empresa estava implementando muitas máquinas para automatizar a produção. Um desses robôs tinha a função especí ca de unir duas peças de metal e dar acabamento com um material que se assemelha a uma massa que cumpre o papel de uma junta (como as massas usadas para fixar vidros nas janelas), que depois são lixadas e emparelhadas para que a emenda não apareça. Antes disso, essa operação era feita por operários e era um trabalho simples e repetitivo. Os engenheiros desenvolveram a máquina a partir da observação deste trabalho. Tudo certo, ótimo funcionamento, mas no final de um ano da nova linha de produção, muitos carros eram recusados porque essa parte não ficava bem feita. Foi então que Wisner deu a ideia aos engenheiros de chamar os trabalhadores que faziam esta operação antes de serem substituídos pelos robôs. Obviamente os engenheiros, do alto de seus diplomas, não queriam ouvir o que os operários “não qualificados”, do ponto de vista deles, tinham a dizer ou que lhes dissessem o que deveriam fazer. Mas como não encontravam a origem do problema, acabaram aceitando chamar os operários. Um deles observou a máquina em funcionamento e considerou que ela, de certa forma, trabalhava bem melhor do que eles, pois nunca ficava doente. Mas, por outro lado, dependendo da qualidade da cola, da umidade do ar, temperatura e outras variantes, os trabalhadores modificavam o gesto e a pressão utilizada na mão para aplicar a massa. Ou seja, esses operários faziam o que os ergólogos chamam de gesto adaptado. Um robô não sabe fazer isso. Como resultado, a Renault chamou os operários de volta e jogaram aquelas máquinas no lixo. O princípio deste saber investido é que o trabalhador sabe por experiência o que e como deve fazer para resolver determinado problema. Onde o operário aprendeu? Quem falou? Não é sabido. Esse saber não está escrito em lugar algum, ele está gravado na cabeça e nos músculos da pessoa que faz – e que descobriu fazendo.
EC – De que forma os saberes investidos dos trabalhadores, depois de assimilados pela ciência, podem resultar em benefício daqueles que o produziram?
Trinquet – A Ergologia é uma abordagem científica. Ela não é política nem sindicalista. Tenta entender cientificamente o trabalho e, para fazer isso, analisa os lados que ficam obscuros do seu objeto de estudo. O objetivo disso, de entender o trabalho em sua complexidade, é realmente melhorar o trabalho. A Ergologia parte do princípio de que o trabalho é uma necessidade fundamental do homem e esta atividade humana deve ocorrer em boas condições. Tendo boas condições proporcionará uma boa saúde física e mental e com isso uma vida melhor em seu contexto social. Uma primeira coisa para se aproveitar esses conhecimentos foi a criação de métodos de análise do trabalho. Uma das ferramentas são os grupos de encontro do trabalho. Trata-se de um espaço onde se pode confrontar os saberes acadêmicos com os saberes de experiência, permitindo que eles dialoguem. A primeira condição para o funcionamento desses grupos é que as pessoas que participam devem ter a necessidade de resolver um problema específico. Se isso não ocorrer, elas brigam e cada um firma sua posição ao final. Se houver necessidade real de resolver, um vai escutar o outro e assim perceber uma nova perspectiva para complementar a sua. Esses são grupos de pesquisa e não espaços de debate. O objetivo é sempre resolver um problema. Se este objetivo não estiver claramente definido, não dará resultado. Nesses espaços de resolução dos problemas são necessários três polos: do saber constituído (acadêmico); do saber investido (experiência); e de organização. Muitas vezes, foi ‘‘ Fico chocado que hoje todas as decisões sobre o trabalho(…) são tomadas por pessoas que confiam e se baseiam apenas em números e tabelas de contabilidade. São leitores de colunas’’ necessário uma capacitação prévia para a formação desses grupos para colocar todos no mesmo nível e entendimento do problema. Também é necessária a presença de um ergólogo que vai trazer uma visão científica do problema, que em algum momento vai ser a única maneira de decidir e separar o quem está certo do que está errado. Cada um pode chegar com seu ponto de vista e esse saber científico vai poder resolver de uma maneira mais definitiva os problemas. Se colocarmos atores muito diferentes em uma mesma sala, engenheiros, sindicalistas, operários, fiscal do trabalho, ou seja, da direção até a operação, sem nenhuma organização prévia, haverá um confronto direto, não haverá nenhum resultado. É preciso criar condições para que os encontros sejam eficientes. Mas essas condições serão criadas no decorrer do processo. O ergólogo vai acompanhar e criar essas condições pouco a pouco.
‘‘Esse saber não está escrito em lugar algum, ele está gravado na cabeça e nos músculos da pessoa que faz – e que descobriu fazendo’’
EC – A confusão entre emprego e trabalho é muito comum, gostaria que o senhor estabelecesse a diferença entre esses dois conceitos e apontasse que problemas decorrem desta confusão?
Trinquet – São dois conceitos próximos, mas que não falam da mesma coisa. O emprego é uma questão contratual: o contrato pode ser permanente, temporário, mais ou menos precário. Porém, o contrato não diz o que vai ser a atividade de trabalho de fato. Inclusive, existem na mesma empresa pessoas com os mesmos cargos e atividades, mas que vão apresentar características distintas. Inclusive, trabalhadores precarizados e outros com maior estabilidade fazendo a mesma coisa. O emprego não nos diz o conteúdo do trabalho. Um exemplo de problema que pode acontecer a partir desta confusão é a questão da Lei das 35 horas, na França, em que uns anos atrás, durante o governo socialista, foi reduzida de 40 para 35 horas semanais a jornada para dar mais trabalho, quando na verdade era para gerar mais empregos. Os políticos que fizeram esta lei misturaram os conceitos na redação. De fato, ao se focarem na questão do emprego, se esqueceram de tratar dos conteúdos e implicações referentes ao trabalho. Em fábricas, por exemplo, o fato de passar de 40 para 35 horas por semana atrapalhou completamente o processo produtivo, porque não se pensou em como isso ia reorganizar a maneira de produzir. Se por um lado gerou mais empregos, por outro, trouxe problemas à produção, atrapalhando o trabalho dentro das empresas. O que poderia ter sido evitado. Foi por causa desta confusão entre emprego e trabalho que a Formação Profissional Continuada não deu os melhores frutos na França. Ela foi pensada como uma maneira de criar empregos, quando deveria ter sido pensada como uma maneira de melhorar o trabalho, a atividade em si.
EC – Como foi sua experiência com a Educação Profissional Continuada?
Trinquet – Eu consegui estudar em uma universidade e me tornei doutor graças à Educação Profissional Continuada. E como era sindicalista dentro da empresa, eu também cuidava da formação profissional no plano sindical.
EC – E da experiência de sindicalista a administrador do FDC?
Trinquet – Na verdade eu era administrador como sindicalista. Isso foi uma boa experiência no sentido de ter esse encontro com empresários e de entender o posicionamento deles e ainda mais porque não era uma situação conflitual, pois esses atores estavam juntos para resolver problemas de terceiros, que eram problemas de formação.
EC – Com um ambiente de austeridade na economia europeia e francesa, como está a questão do desemprego na França e na Europa?
Trinquet – O quadro é catastrófico. Este é mais um problema político do que científico. Fico chocado que hoje todas as decisões sobre o trabalho, condições de trabalho, salários e fechamento de fábricas são tomadas por pessoas que confiam e se baseiam apenas em números e tabelas de contabilidade. São leitores de colunas. Essas decisões baseadas somente em números têm um impacto muito grande sobre empresas, sobre pessoas, regiões inteiras e são tomadas por pessoas que nada sabem sobre o trabalho. Todas as mazelas do mundo do trabalho decorrem deste fato. A abordagem dessas pessoas é completamente equivocada, pois lhes falta conteúdo sobre o trabalho. Daí decorre o valor da ergologia como método para compreender o trabalho e apresentar o conteúdo de forma a qualificar as decisões sabendo o que estão fazendo. Ives Schwarz (pioneiro da ergologia), fala de decisões feitas com calculadora. Só que a calculadora nada sabe sobre pessoas ou trabalho.
EC – Quando fala de leitores de colunas refere-se a quem especificamente, gestores ou legisladores?
Trinquet – Em primeiro lugar, refiro-me aos acionistas e gestores. Porém, o que ocorre é que os políticos na maioria das vezes favorecem este ponto de vista por motivos pouco honestos. Não falo do Brasil, porque conheço pouco, mas refiro-me à França.
‘‘Fico chocado que hoje todas as decisões sobre o trabalho(…) são tomadas por pessoas que confiam e se baseiam apenas em números e tabelas de contabilidade. São leitores de colunas’’
EC – E as políticas públicas para tentar resolver essa situação de desemprego?
Trinquet – Eu trabalho com uma pesquisadora que investiga as situações de saúde no trabalho e que acabou de recusar a Legião de Honra, que é uma importante comenda, porque ela não queria receber esta condecoração de um governo que permite matar os assalariados e acabar com os empregos. Eu estou de acordo com ela, pois o que ocorre na França é que os homens políticos e o governo permitem acontecer este processo de destruição do trabalho. Fecham os olhos por diversos motivos e deixam este processo acontecer. O que aconteceu com a direita no meu país, quando estava no poder, está acontecendo com a esquerda também. Os que nos governam não são os que foram eleitos, mas sim os acionistas dos grandes grupos financeiros.
EC – Cooperativas são uma alternativa ao desemprego?
Trinquet – Sobre as cooperativas operárias, conheço um pouco da área de construção. É um modo de organização que funciona bem, mas trata-se de um sistema que está inserido dentro de um sistema maior, capitalista e liberal que segue outros princípios. Portanto, é difícil conciliar esta visão e estes princípios dentro de um sistema maior que é contrário. Que tem problemas de concorrência, de custos, enfim. Mas referindo a Teoria da Metamorfose, de Edgar Morin, as cooperativas podem influenciar o sistema maior no qual estão inseridas. O próprio Morin usa o exemplo da larva que se transforma em borboleta a partir de uma transformação que vem de dentro. Um processo inteiro de transformação que pouco a pouco se generaliza. Então a gente pode pensar que daqui a pouco essas cooperativas podem transformar o sistema capitalista liberal de dentro e funcionar ou não. Podem também desaparecer. Mas podem funcionar e criar um novo modelo de organização. O fato de elas existirem há mais de 200 anos, do ponto de vista da teoria do Morin é um bom sinal desta evolução.
EC – Muitos especialistas defendem a flexibilização das leis trabalhistas, o senhor como ex-sindicalista, como vê as teorias liberais para 06 ‘‘ O impacto é catastrófico do ponto de vista humano, social e econômico. Pessoas estão se suicidando. Em meu último livro, falo muito dos danos causados no mundo do trabalho’’ criação de novos postos de trabalho com menos direitos para os trabalhadores?
Trinquet – O que se observa desde 1789 e de outras conquistas de direitos é que houve um maior compartilhamento das riquezas, e que cada vez mais com uma diversidade de pretextos a gente perde direitos, vantagens e benefícios sociais. Com a ideia de modernizar o trabalho resultou a precarização do trabalho. São fórmulas sempre apresentadas de maneira muito positiva, mas com resultados negativos para os trabalhadores. Existe a regra de ouro que limita o déficit do estado a 3% e os poderes políticos. Isso limita muito a margem de manobra de um governo. E o que se vê hoje neste contexto de limitação e precarização do trabalho é que o PIB aumenta, mas para o benefício de poucos. O Le Monde publicou recentemente uma matéria que mostrava a multiplicação dos milionários na França e o aumento dos benefícios deles. Enquanto isso, o país vive numa crise. E o que nos pedem é para confiar nessas pessoas e nos bancos para resolverem os problemas econômicos, quando foram eles que colocaram o país nessa situação. Agora, esta é uma resposta de sindicalista e não de ergólogo.
[N.E.: *Regra de Ouro é um tratado orçamentário adotado a partir do início de 2012 por líderes europeus para reforçar a disciplina comum após a crise da dívida impondo o equilíbrio das contas. Com a “Regra de Ouro” orçamentária os países se comprometem a ter orçamentos equilibrados ou com superávit em um ciclo econômico, ou seja, chegar a médio prazo a um déficit estrutural (fora de elementos excepcionais e do serviço da dívida) de um máximo de 0,5% do PIB. Os países que tiverem uma dívida global moderada, “claramente abaixo de 60% do PIB”, terão direito a um déficit estrutural tolerado de 1%.]
Igor Sperotto Igor Sperotto
Trinquet − O impacto é catastrófico do ponto de vista humano, social e econômico. Pessoas estão se suicidando. Em meu último livro, falo muito dos danos causados no mundo do trabalho. Muitas vezes se considera que os danos nesta área se dão apenas em termos de acidente de trabalho e doenças, pois são os aspectos dos quais se tem estatísticas estabelecidas. O que é um conforto, pois existem números para explicar uma situação. Mas existe todo um contexto maior, que não aparece nas estatísticas, de dramas sociais. Existe um cenário que é muito maior de pessoas jogadas na rua, de suicídios, de famílias destruídas, aumento do crime. Na cidade onde moro, Marselha (segunda maior cidade da França), em alguns bairros o desemprego é tão alto que os jovens só tem uma alternativa, que é entrar para o mundo do crime, do tráfico de drogas, entre outras coisas. Eles sabem que vindos desses bairros eles, além de serem marcados, nunca vão conseguir empregos, aliás nem há empregos naquelas localidades, o que gera desemprego e delinquência. Trata-se de uma catástrofe humana, social e econômica, porque todas essas mazelas demoram muito a resolver.
‘‘ O impacto é catastrófico do ponto de vista humano, social e econômico. Pessoas estão se suicidando. Em meu último livro, falo muito dos danos causados no mundo do trabalho’’
EC – O senhor foi um trabalhador que ascendeu no mundo acadêmico em um período de políticas de bem-estar social. Será que hoje isso ainda seria possível neste contexto?
Trinquet – Sim, é possível e fica mais fácil essa elevação social a partir da Formação Profissional Continuada. A legislação reforça estes dispositivos porque todo mundo ganha com isso. Os empresários ganham na qualificação da mão de obra de acordo com as mudanças econômicas e tecnológicas. Isso fica bem visível quando se trata das contribuições obrigatórias das empresas, pois muitas contribuem além do 1% obrigatório indo até 7% no financiamento. Existe ganho para o Estado, pois evita uma explosão social que poderia acontecer em função dessas mudanças no mundo do trabalho e no sistema produtivo. E, principalmente, representa um ganho para os assalariados que podem melhorar seus conhecimentos e também de buscar uma elevação social. Hoje, dentro dos novos dispositivos que existem de formação profissional continuada, existe um crédito de horas de formação. Cada assalariado a cada ano tem direito a um banco de horas que ele pode acumular em até três anos. Isso é bem significativo e pode ser feito dentro do horário de trabalho. Ele sai da empresa, vai se capacitar, volta e recebe como se estivesse trabalhando, sem ruptura no contrato. No meu caso, eu tinha um interesse muito grande para pesquisa e para a capacitação, o que continuo fazendo hoje com prazer e sem nenhum ganho, pois o faço de maneira desinteressada, motivada pelo desejo de compartilhar e produzir experiências. Um outro dispositivo que facilita ainda mais esta capacitação é o de validação da experiência. Quando eu entrei na universidade, isto ainda não existia. Hoje existe uma lei que permite que ela receba um diploma pela experiência profissional dela.
EC – O senhor tem acompanhado a política econômica brasileira e distribuição de renda. Como essas iniciativas são vistas lá fora?
Trinquet – Não me sinto autorizado a dar minha opinião como francês sobre o contexto brasileiro. Isso não seria ergológico. Seria colonialista da minha parte.
EC – Mas a ideia é que o senhor apenas compare as opções para enfrentar a crise econômica global dos últimos anos, cujas soluções brasileiras são diametralmente opostas às europeias? Não seria uma opinião, mas uma impressão apenas.
Trinquet – Mas no Brasil não há crise econômica (risos). Agora são vocês que nos emprestam dinheiro. (mais risos)