“…ocupam o Legislativo, invadem o Executivo e cultivam o Judiciário”
Foto: Paulo Barreto/Ipea/divulgação
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Extra Classe – Por que vivemos um “momento histórico” no que se refere à questão indígena?
Alceu Luís Castilho – Por causa da ofensiva ruralista contra as demarcações de terras, com aval do governo federal, e pela reação dos indígenas, em vários pontos do país, a essa política. É um momento de redefinição do lugar deles em nosso território, até agora para pior, e de exposição do tema como há muito não se via. Considero também emblemático que a morte de Oziel Gabriel, da etnia Terena, em Sidrolândia (MS), tenha ocorrido nas terras de um político, o ex-deputado estadual Ricardo Bacha, que já foi candidato a governador em 1998.
EC – Quais são as implicações eleitorais dos conflitos no Mato Grosso do Sul?
Castilho – Em nível nacional é difícil prever. Depende da exposição midiática, e de como os candidatos explorarão o tema. Não é uma situação confortável para uma presidente que quer se reeleger, por isso a abertura recente de diálogo (se será eficaz são outros quinhentos) com os indígenas. No nível local, todos os candidatos ao governo do MS devem ser ruralistas, eles devem disputar o voto em cima de discursos mais ou menos refratários aos direitos desses povos.
EC – Como se dá a partidarização do debate em torno desta questão e o quanto se perde em compreensão dos aspectos históricos e sociais por conta disso?
Castilho – A oposição à direita não está falando muito do tema, em termos de lideranças partidárias. Até por não verem nada de errado na movimentação dos fazendeiros. Os políticos assumidamente ruralistas, dispersos em vários partidos, esses falam, e muito. Eles tendem a preservar Dilma Rousseff, pois ela tem defendido os interesses do agronegócio, mas atacam a Funai. É uma estratégia para barrar as demarcações. O debate é pobre, com palavras-de-ordem rasteiras e ampla manipulação de dados sobre os indígenas. A senadora Kátia Abreu fala abertamente na mentira sobre índios “paraguaios”, e fica por isso mesmo. Mais do que perda de compreensão, trata-se de uma agressão à história do país.
EC – Lideranças rurais afirmam que “vai morrer mais gente”. Por onde passaria uma saída para o problema e que políticas seriam necessárias para o seu enfrentamento?
Castilho – A questão agrária, por definição, presume o conflito. Pois há disputa entre grupos, classes sociais, o território não está disponível para todos. A questão indígena segue a mesma lógica, com suas especificidades. De um ponto de vista republicano, democrático, a solução em relação à questão indígena passa pela demarcação de terras, como previsto na Constituição. No caso dos camponeses e posseiros, não há como fugir da reforma agrária.
EC – Por que um problema que tem centenas de anos é insolúvel em pleno século 21?
Castilho – Porque as elites se perpetuam no poder e se expandem no território brasileiro, sem distribuição de terras e de riquezas. Esse território segue sendo pilhado e/ou ocupado de modo desordenado, com agressões sistemáticas ao meio ambiente (desmatamento, envenenamento de comida pelos agrotóxicos etc.) e desrespeito aos direitos elementares de camponeses, indígenas, quilombolas.
EC – Como deve ser entendido o índio do século 21 e por que não é?
Castilho – Imaginam que o índio deva se vestir e se comportar como no século 15. Como se os descendentes de europeus se vestissem e se comportassem como naquele século. Isso decorre de um analfabetismo antropológico explícito. O professor José Ribamar Bessa Freire, da Uerj, já desconstruiu esses argumentos de forma brilhante, numa crônica veiculada em seu blog. Os indígenas interagem com os brancos, e vice-versa. Quem acha que eles perdem sua cultura com isso, necessariamente, está desinformado em relação ao cotidiano e à cosmologia dos povos indígenas.
EC – Como o senhor vê a posição do governo com relação aos protestos contra as obras para a construção de hidrelétricas, termelétricas e outras obras do PAC?
Castilho – Em relação à questão agrária e questão indígena, o governo Dilma Rousseff tem representado um retrocesso. E não somente por conta da imposição dessas obras. A posição é autoritária, seja em relação a indígenas, seja em relação aos trabalhadores ou outros grupos afetados pelas obras. Existe um projeto desenvolvimentista que segue sendo míope em relação à riqueza e diversidade cultural e étnica do país. Agora, o fato de estar pior que em governos anteriores não significa que outros governos fossem progressistas em relação ao tema. Apenas piorou.
EC – Em seu livro, o senhor afirma que 1,2% do território nacional, 4,4 milhões de hectares são controlados por políticos. Como se dá esta distribuição, quem são estes políticos, em que outras atividades ligadas à terra eles atuam e como defendem seus interesses?
Castilho – Essa porcentagem se refere ao total de terras declaradas, segundo o IBGE, 355 milhões de hectares, não ao total do território brasileiro. A distribuição se dá por todo o território brasileiro. Mas há uma concentração maior no Centro-Oeste. Vale observar que políticos de todo o país têm muita terra na Amazônia e no Cerrado, em particular nas fronteiras agrícolas, inclusive em municípios que fazem parte do Arco do Desmatamento. As atividades são várias: pecuária (muito comum), agricultura, mineração, usinas, moinhos, madeireiras. Eles defendem seus interesses sistematicamente, e não só no Congresso. Ali eles apenas ganham mais visibilidade. Escrevo no início do livro que os proprietários de terra no Brasil ocupam o Legislativo, invadem o Executivo, cultivam o Judiciário.
EC – Mas não são apenas os partidos de direita. Quem constitui a esquerda latifundiária no Brasil?
Castilho – O movimento ruralista é suprapartidário. Políticos de quase todos os partidos têm muita terra. O livro levantou dados de 2008 e 2010, entre políticos eleitos (de prefeitos e vice- -prefeitos a governadores e senadores), e constatou que políticos do PSDB e PMDB são os que possuem mais hectares. Seguidos por PR, DEM, PP, PTB, PDT. Note-se que este último é, originalmente, de esquerda. E que os dois primeiros são filhos do MDB, e não da Arena. Mas há também políticos latifundiários no PT, PSB, PPS e no PV. Voltando ao Mato Grosso do Sul, observemos que o pré-candidato do PT ao governo é o senador Delcídio Amaral, que, em 2006, declarou 4.147 hectares. Mas nem sempre o ruralista é proprietário. Caso típico: Aldo Rebelo (PCdoB). Este mesmo partido já teve um latifundiário em seus quadros, o ex-senador Leomar Quintanilha. O PT, que tem deputados ligados ao MST, tem também um deputado na Bahia que faz parte, ativamente, da Frente Parlamentar da Agropecuária.
EC – Políticos de quais partidos lideram o controle de terras, agronegócios e minério no país?
Castilho – Em relação a empresas do agronegócio, alguns políticos são bem mais ricos que outros, e desequilibram a balança para seus partidos. É o caso do senador Blairo Maggi (PR-MT), um dos maiores produtores de soja do mundo. O deputado alagoano João Lyra (PSD-AL), usineiro, também é muito rico. Mas o PSD não entrou no meu levantamento, pois ainda não havia sido criado. E ele foi criado para abrigar exatamente a direita que queria apoiar o governo. Não posso apresentar números, nesse caso, mas posso dizer que, pelo que já levantei em relação à eleição de 2012, ele disputa palmo a palmo com PSDB e PMDB a condição de partido com mais proprietários de terras no Brasil. No caso das mineradoras, a lógica é a mesma, alguns políticos desequilibram a balança. Joaquim Reis, eleito em 2008 pelo PPS em Pompéu (MG), tem o direito de explorar ardósia em 500 mil hectares. E não estou errando o número: é o tamanho da Palestina.
EC – O senhor afirma que mais do que bancadas ruralistas nos legislativos existe um sistema ruralista? Como ele funciona e se articula?
Castilho – Essa foi a conclusão a que cheguei no livro. Essa lógica do arame farpado (privatista, portanto) começa nas prefeituras e câmaras municipais, na esfera local, numa relação muito particular dos políticos com os proprietários de terra, e vai-se expandindo, em espiral, para as demais esferas – e demais poderes. É uma teia patrimonialista e coronelista que ganha na bancada ruralista do Congresso sua expressão mais emblemática. Mas se trata de um modelo de apropriação do território brasileiro perpetuado pelos políticos, que não enxergam conflito de interesse em relação ao singelo fato de que eles mesmos são proprietários de terra, gado, empresas agropecuárias.
EC – Quem são os políticos que estão por trás dos principais conflitos de terra no Brasil?
Castilho – Vou inverter a proposição e dizer que, por trás de boa parte dos principais conflitos de terra no Brasil, é muito fácil achar um político. Proponho até como método de análise dos conflitos. Quando não é um político o proprietário, este tem relação muitíssimo próxima com algum deles. Posso citar alguns casos mais emblemáticos, além daquele de Sidrolândia (MS). Como o do deputado Paulo Cesar Quartiero, que montou um verdadeiro arsenal de guerra em Roraima, em defesa dos arrozeiros, e contra os indígenas. A parte final do livro traz uma extensa lista de políticos envolvidos em crimes de trabalho escravo, ameaça a camponeses, sem-terra. Mas ninguém chama esses senhores de “vândalos”, não é mesmo? Há uma tolerância da mídia em relação a esses senhores – pois ela mesma é ruralista.
EC – E como ficam o MST e os movimentos ambientalistas no meio disso?
Castilho – São a parte mais frágil. Lutam contra esses 513 anos de destruição do ambiente e de violação de direitos, e lutam contra essa parcialidade midiática. Esta se manifesta ora pelo silêncio, ora pela cobertura enviesada dos fatos. Note-se que o MST repete, em suas sucessivas ocupações de fazendas da Cutrale, que a empresa grilou terras públicas. Isso com dados do Ministério Público. Mas só se fala em “invasão” de movimentos sociais, como se fossem estes os ilegais. Ora, boa parte do território brasileiro foi e é grilada, há um grande cinismo no discurso da legalidade. Os ambientalistas têm uma simpatia um pouco maior da grande imprensa, mas também um espaço muito pequeno. Em ambos os casos há utilização de imprensa alternativa e das redes sociais para a divulgação de dados essenciais para se entender o país e o modo como se transfigura seu território.
EC – Como, a partir de falsos debates amplificados pela mídia e redes sociais, o Brasil vai sendo empurrado para debaixo do tapete?
Castilho – O país é empurrado para debaixo do tapete não só pela proliferação de falsos debates, mas pela omissão e pela promoção de debates irrelevantes. Há uma overdose midiática de bobagens. No caso da questão agrária há, sim, uma amplificação do discurso dos ruralistas, que, como vimos, é enviesado, seja em relação a indígenas, a quilombolas ou sem-terra. Além disso, não são explorados temas fundamentais em nossa sociedade, como os próprios conflitos de terra, a face venenosa de nossa agricultura, a improdutividade brutal de nossa pecuária (metade das terras é improdutiva), a reforma agrária e a grilagem, entre outros.
EC – Como surgiu o apelido “Griladão” para o Brasil?
Castilho – Por causa do sucesso da palavra “mensalão”. Escândalos políticos, como sabemos, não começaram nem terminaram nesse esquema eleitoral ocorrido durante o governo petista. E é bastante ingenuidade achar que foi o maior escândalo da história do Brasil. Longe disso. Apenas foi mais midiático, com especial atenção dada por alguns procuradores-gerais e ministros do STF. Foi divulgado recentemente que a grilagem no Piauí levou a um prejuízo bilionário para os cofres públicos. E estou falando só do Piauí. A grilagem é tema fundador do território brasileiro, não se pode pensar o Brasil sem a dimensão do roubo de terras. Por isso insisto em chamar o Brasil de Griladão – para ver se os leitores se dão conta de que esse é um escândalo maior e mais estrutural que outros com mais ibope.
EC – Por que se engana quem pensa que essas bancadas atuam apenas em questões referentes à terra, pois também há forte influência nas decisões que impactam no mundo do trabalho?
Castilho – Sim, há a questão trabalhista, por exemplo. Os políticos apoiaram a PEC do Trabalho Escravo somente “para eleitor ver”, pois sentaram em sua consolidação com discussões eternas sobre a definição do termo. E o livro traz dezenas de casos de políticos já envolvidos em denúncias de trabalho escravo. Contei mais de 100 mil hectares de terras nas mãos desses políticos. Mas há outras leis, claro, relativas a direitos trabalhistas, na cidade e no campo, e não tenham dúvidas que os políticos se movimentam em defesa do capital, e não do trabalho. Cabe notar também que o campesinato tem uma lógica própria, com trabalho familiar, sem venda direta da mão-de-obra. Na medida em que não se estimula a reforma agrária, se reprime essa opção que pode ser parcialmente libertadora – e se aumenta o exército de reserva no campo e na cidade.
EC – Grande parte dos casos documentados pela Anistia Internacional decorrem pela disputa pela terra, em países como Brasil, Colômbia e Honduras, não raro ligados a projetos de desenvolvimento de grande escala comandados por empresas privadas. Qual o saldo desses episódios?
Castilho – Somos um dos países mais desiguais do mundo, e um dos que têm mais conflitos no campo. Nosso projeto de nação é excludente, beneficia poucos, e esse desenvolvimentismo é apenas uma das expressões desse descaso para com a maior parte da população. A questão agrária embute uma sucessão de escândalos, com violência específica, corrupção específica, mas não chega como deveria às páginas dos jornais. Como consequência, a maior parte da população é alienada em relação a temas essenciais para se entender a sociedade brasileira. Inclusive sua face urbana.
Marcello Casal/ABr Marcello Casal/ABr
Castilho – Sobre a mobilização, era imprevisível na velocidade e escala com que aconteceu. Mas lembro que o geógrafo Milton Santos já vislumbrava isso, esse fenômeno urbano, quando a internet nem era tão acessada ainda no Brasil. A cobertura midiática dos protestos sempre está a um passo atrás do movimento. Ou vários. Porque os jornais só cobrem a ponta do iceberg social, não têm interesse em reportar o que acontece abaixo da superfície – nas periferias, nos movimentos sociais, nos ônibus e trens. A manchete de hoje (21/6) da Folha e Estadão, por exemplo, sobre 1 milhão nas ruas, deveria ser a manchete de ontem. Já se sabia que essa cifra seria ultrapassada. E 1 milhão seria notícia até na Índia. Hoje o uso do verbo no presente, nas manchetes, ganha contornos quase cômicos, já que, com a internet, os fatos relatados costumam ter acontecido a anos-luz de distância. O que não ocorreria se os jornais adotassem uma postura mais contemporânea, um olhar do século 21 para os fatos.Isso em termos de notícia. Em termos opinativos, a imprensa procurou pautar a população. Com razoável eficácia, aliás, Veja e Rede Globo à frente, induzindo a uma discussão despolitizada, à direita, com a “corrupção” genérica e temas um tanto extraterrestres para a maioria, como a PEC–37. A se observar que a guinada da Folha na quinta-feira 13, após aquela extrema violência policial em São Paulo, não deve ter ocorrido só pela violência contra seus repórteres. Dois dias antes um repórter do jornal tinha sido preso, mas isso não impediu que as manchetes bradassem contra o “vandalismo”, e não contra a polícia. Ocorre que, entre um dia e outro, o Datafolha constatou que a maioria da população era a favor dos protestos.Vale observar a hipocrisia, o discurso de conveniência dos jornais em relação a protestos. A Paulista era vista como um lugar a ser preservado de manifestações, com a desculpa surrada de que ali há muitos hospitais. Como se manifestantes não fossem dar passagem a uma ambulância. Isso é puro cinismo: não querem manifestação ali porque é um símbolo da cidade, causa mais impacto. Não gostam de manifestação e ponto: jornais defendem os interesses das elites. Quando os protestos são convenientes nenhum jornal se lembra desse argumento.
“Não é possível entender a política no Brasil sem entender a questão agrária e a conexão entre os dois temas”
EC – E o viés autoritário de algumas manifestações?
Castilho – A mobilização em si foi inicialmente positiva. Mas como não era prevista nem pelos organizadores não tinha demandas à altura do tamanho dos atos. E isso pode ter sido decisivo para a incorporação (mais destrutiva do que construtiva) pela direita. O problema é que não existe jogo-treino nesse campo. Se houver outra mobilização grande talvez as pautas estejam mais bem definidas, mas a do setor conservador também estará. E este joga em casa, com a vantagem da torcida midiática. Preocupam-me o golpismo, explícito, na última edição de Veja (que propõe abertamente outras instituições), e o fascismo, expresso de forma violenta por militantes de direita – organizados ou não – que rechaçaram os militantes de partidos de esquerda, centrais sindicais, MST, Ubes e até gente que estava apenas com a camisa vermelha. O gigante que acordou gazeteou aulas de história, como se disse, e quando ia às aulas ficava fazendo bullying.
EC – O seu próximo livro tem previsão de conclusão para quando e o que pode ser dito sobre ele?
Castilho – Estou tocando mais de um projeto. Em princípio, só devo lançar o próximo daqui a dois anos, mas pode haver mudança de planos. A maioria dos temas passa pela questão agrária, e em pelo menos um deles voltarei a falar diretamente de políticos. Não é possível entender a política no Brasil sem entender a questão agrária, e a conexão entre os dois temas.