O tráfico humano nasce das fraturas sociais
Cedaw/divulgação
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Com 12 anos de atuação como coordenadora de pesquisas junto ao Instituto Brasileiro de Inovações pró-Sociedade Saudável Centro-Oeste (Ibiss/CO), a assistente social Estela Scandola foi eleita, no final de outubro, como representante da Rede Feminista de Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, para integrar o Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conatrap). Instituído em fevereiro deste ano, o Comitê está vinculado ao Ministério da Justiça e articula a atuação dos órgãos e entidades públicas e privadas no enfrentamento ao tráfico humano. Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Estela é gestora na Escola de Saúde Pública, professora da ESP/MS e atua na formação de pesquisadores em direitos humanos: “Enfrentar o tráfico de pessoas equivale a combater o modelo de desenvolvimento baseado nas fraturas econômicas, raciais, ambientais que assolam nosso país, que é origem, destino e passagem de pessoas traficadas”, alerta nesta entrevista.
Extra Classe – Que condições socioeconômicas favorecem o tráfico e como ele se caracteriza?
Estela Scandola – O tráfico de pessoas se caracteriza fundamentalmente pela transformação de pessoas em mercadoria, ou seja, é quando, além de ser explorado na sua força de trabalho, alguém ganha financeiramente no processo de aliciamento, transporte, alojamento e exploração do trabalho. A pessoa é destituída da sua condição humana e se torna fonte de ganho de outras pessoas. O tráfico acontece em todos os lugares e se acentua com a mundialização do capital. O que está relacionado com o tráfico não é a pobreza, mas a quebra econômica.
EC – Como equacionar o conflito entre tráfico, prostituição e imigração?
Estela – Frequentemente o tráfico de pessoas é confundido com a prostituição. Na atualidade, o mercado sexual é muito diverso e, na grande maioria, não ocorreu tráfico para que houvesse o trabalho nesse mercado. O que tem ocorrido é que a visão moralizante da sexualidade das mulheres e homens que estão no mercado sexual nega, na maioria das vezes, a possibilidade de autonomia desses trabalhadores e os vê como incapazes de definir seus destinos. Em grande parte, há exploração do trabalho como ocorre em outras cadeias produtivas, mas não significa que tenha havido tráfico. No entanto, não se pode negar que também no mercado sexual pode ocorrer tráfico para suprir demandas, por exemplo, das grandes obras de infraestrutura, como ocorreu com Belo Monte, situação em que tivemos operações da polícia que retirou mulheres das boates e, depois de conhecer melhor a situação, foram descobertos casos de tráfico humano, mas também de mulheres migrantes que tinham ido trabalhar naquela região.
EC – O que torna os migrantes vulneráveis ao tráfico?
Estela − A migração é um tema que tem diferentes interfaces com o tráfico de pessoas. De um lado, há governos e políticas proibicionistas da migração, que interferem diretamente no tráfico de pessoas, ou seja, ao proibir a migração ou dificultar o exercício de direitos humanos de migrantes, os joga diretamente numa rede de “protetores” que podem explorá-los e até colocá-los em situação de tráfico, na medida em que aumentam suas vulnerabilidades. Uma das questões centrais nesse tripé tráfico-migração-prostituição é considerar o direito de todos à migração. Não pode ser o tipo de trabalho o definidor do direito de migrar. Assim, a migração é direito, precisa ser garantida a sua segurança por parte dos Estados Nacionais, de forma que os migrantes, homens e mulheres, tenham as vulnerabilidades financeiras, culturais, especialmente da língua, minimizadas e, com isso, não caiam nas redes de tráfico de pessoas.
EC – Quais são os mitos e verdades sobre o tráfico de mulheres?
Estela − Uma das questões mais importantes sobre os mitos do tráfico é considerá-lo como sendo aquele que ocorre com as pessoas saindo do Brasil. O Brasil atualmente é destino de pessoas traficadas, assim como o tráfico também ocorre internamente no nosso território nacional. O outro mito é considerar que toda trabalhadora do mercado sexual foi traficada. Isso não é, nem de longe, a verdade. Há muitas pessoas trabalhadoras desse mercado de trabalho que são autônomas e outras tantas que vivem em condições de trabalho difíceis e até degradantes, mas isso não significa que foram traficadas.
EC – De onde vêm, o que mostram e por que não são confiáveis as estatísticas que entidades e veículos de comunicação costumam usar para embasar denúncias?
Estela − Um dos problemas dos números que se apresentam sobre o tráfico de pessoas é que sua exorbitância nos impacta de tal maneira que parece ser um problema que não é possível ser resolvido. É evidente que na mundialização do capital, com o acirramento das desigualdades de classes dividindo o mundo entre poucos ricos e tantos pobres e miseráveis, há um processo crescente de tráfico de pessoas. O outro problema dos números é que diferentes agências da ONU, como também o Bureau dos Estados Unidos, chamam para si os anúncios mundiais de quantas pessoas são traficadas, as condições e a classificação dos países pelo número de traficados e capacidade de enfrentamento. Todos esses números não têm a divulgação do método de coleta de dados como também o envolvimento transparente de outras formas de olhar a realidade. É comum um país ser classificado pelos EUA como não atuante no enfrentamento ao tráfico, por exemplo, por fiscalizar de forma mais dura os migrantes, ou ao colocar numa região de conflito armado uma porcentagem de pessoas como sendo traficadas. Então, ao olharmos os números divulgados pelas agências internacionais ou multilaterais, é fundamental questioná-los, visando compreender que visões de mundo estão sedimentando esses dados. Na Copa do Mundo, por exemplo, foi noticiado que “milhares de prostitutas” tinham sido traficadas para a Alemanha. Isso não é verdade! Grande parte era migrante e ponto.
EC – O Brasil é efetivo no combate ao tráfico de pessoas?
Estela − O enfrentamento precisa ser eficaz, indo à raiz dos problemas, ou seja, porque há tráfico de pessoas. Isso significa combater o modelo de desenvolvimento baseado nas fraturas econômicas, raciais, ambientais que assolam o nosso país. O Brasil é um país de origem, destino e de passagem de pessoas que vivenciam situações de tráfico. Quando há uma grande obra, quando não se demarcam as terras indígenas, quando colocam a visão criminal sobreposta à garantia de direitos das pessoas, aí o tráfico de pessoas é maximizado. O Brasil só se propôs a enfrentar o tráfico a partir do Protocolo de Palermo (2004/2005), muito embora já se soubesse da sua existência no país. Temos sete anos de Política Nacional e dois Planos Nacionais, sendo o primeiro em 2008. Significa que há uma postura formal de enfrentar o tráfico, mas não avançamos para as reais causas do problema. Um dos entraves, sem dúvida, é conseguirmos avançar sobre os financiadores e a responsabilidade deles sobre o tráfico. Quando o BNDES financia uma destilaria, uma hidrelétrica, é preciso considerar os impactos que esses “empreendimentos” causam e isso, até hoje, são apenas ações de maquiagem. A prevenção por meio de campanhas é importante, mas as políticas públicas precisam assumir o seu papel. O Sistema Único de Assistência Social (Suas) com sua grande capilaridade com as famílias mais empobrecidas até o momento não pautou essa temática com seus Centros de Referência de Assistência Social (Cras) e o que conheço dos centros de referências especializados (Creas) ainda não atendem… As operações policiais de retirada de pessoas das situações de cárcere, na sua maioria, ainda não têm ligação com as outras políticas. Então, os desafios são imensos e, infelizmente, muito maiores do que o que avançamos até agora, que é quase nada, se considerarmos o tamanho da problemática.
EC – O Diagnóstico sobre Tráfico de Pessoas nas Áreas de Fronteira no Brasil, produzido pelo Ministério da Justiça, UNODC e Centro Internacional de Desenvolvimento de Políticas de Migração mostra que 475 pessoas, adolescentes e mulheres na maioria, foram traficadas de 2005 a 2011. O que ele sinaliza?
Estela − A pesquisa realizada é muito importante e se for proporcionado o encontro com outras pesquisas feitas nas fronteiras, como aquela coordenada pela Associação Brasileira de Defesa da Mulher da Infância e da Juventude (Asbrad) e pelo Instituto Brasileiro de Inovações pró-Sociedade Saudável Centro-Oeste (Ibiss/CO), teremos retratos cada vez mais aproximados com a realidade. É importante compreender que o tráfico de pessoas ainda é muito invisível, e considerar o tráfico interno como também de pessoas que estão sendo traficadas para o Brasil nos aproxima mais do real. Todas as pesquisas confirmam que as regiões de fronteiras sempre foram historicamente desprestigiadas pelas políticas públicas brasileiras sendo que, especialmente, foram alvo das políticas de segurança e vistas como áreas de perigo e de um senso comum muito ruim, que é ser “terra de ninguém”. No entanto, as fronteiras têm um contingente importante de população que faz o encontro com as pessoas dos demais países e constituem-se em um território especial e muito rico de possibilidades. Costumo afirmar que as fronteiras são compreendidas como o encontro quando falamos de cultura e de consumo; por outro lado, são compreendidas como limite quando é para a garantia de direitos das pessoas desses territórios. Para os gestores da economia e os donos do capital, a fronteira é compreendida como lhes convêm. Neste caso, as cadeias produtivas vão se valer das fronteiras tanto para impedir a migração para o trabalho, quanto para se favorecer naquilo que for mais lucrativo. O tráfico de pessoas está nesse contexto contraditório.
EC – Qual é o perfil das pessoas traficadas?
Estela − Elas são escolhidas de acordo com a demanda, ou seja, se serão homens ou mulheres, quem define será o mercado de trabalho. Para o corte da cana, homens; para a construção civil, homens jovens; para o mercado sexual, mulheres e travestis e, dentro deste, se as mulheres serão negras ou loiras, também dependerá do mercado. O 180 (disque-denúncia) está dirigido ao público feminino, assim, é mais número de tráfico de mulheres; se olharmos os dados da Comissão Pastoral da Terra sobre trabalho escravo, teremos mais homens vitimados, ou seja, os bancos de dados são bastante dirigidos a determinados grupos. Daqui a pouco teremos, por certo, algum relatório do Estado brasileiro juntando os diferentes dados.
EC – De que forma a culpabilização das vítimas contribui para legitimar o tráfico?
Estela − Há uma tendência de estudar caso a caso do tráfico, ou seja, individualizar a situação de tráfico e, a partir da pessoa, indivíduo, encontrar as vulnerabilidades naquela pessoa. Se considerarmos que as vulnerabilidades são de ordem econômica, racial, étnica, de gênero, geração, orientação e identidade de gênero, compreendemos que as vulnerabilidades são sociohistoricamente construídas. Nesse raciocínio, a atenção individual vai compreender essa pessoa como um ser social que está inserido numa realidade que precisa ter intervenção coletiva. Caso isso não seja compreendido, então, os agentes das políticas públicas ficam procurando “o erro” da pessoa em situação de tráfico que a levou àquela situação. Às vezes, perguntam: por que foi para outro país se tinha emprego aqui? Como se deixou enganar? Como não tinha informação? Como pode ser tão bobo? Além disso, ainda há os valores morais que culpabilizam a prostituição como causadora do tráfico, e aí, ao invés de garantir os direitos das trabalhadoras sexuais, condicionam esses direitos à sua saída do trabalho prostitucional. Isso significa que elas não são atendidas.
EC – Abordagens como a da telenovela Salve Jorge, da Rede Globo, contribuem para esclarecer e conscientizar sobre o tráfico ou apenas reforçam estereótipos?
Estela − A novela deu maior visibilidade ao tema do tráfico e ainda temos muita gente que assiste às novelas. No entanto, uma das questões centrais que me fazem questionar a novela é que ela reforçou a ideia do tráfico internacional de mulheres, saindo do Brasil para o exterior ao invés de dar a mesma importância para o tráfico interno de mulheres e meninas e ao fato de que o Brasil é também destino. Nesse aspecto específico, a novela reforçou esta invisibilidade. O outro aspecto importante é que não considerou que as finalidades para as quais se traficam mulheres são muito diversas e não apenas para a finalidade de suprir o mercado sexual. Nas grandes obras de infraestrutura brasileiras temos um mercado sexual imenso e, mesmo considerando que a maioria dos trabalhadores e trabalhadoras sexuais pode ter migrado, há casos de tráfico que estão ocorrendo em solo brasileiro. Isso é um problema nosso e precisa ser enfrentado!
EC – As grandes obras e eventos representam oportunidades para o tráfico?
Estela − Não acredito que devamos satanizar os eventos e as obras de infraestrutura como causadoras do tráfico. Elas podem se constituir em ampliação de oportunidades de trabalho para muita gente. No entanto, é preciso questionar se determinado evento é prioridade na atual realidade brasileira, se a obra de infraestrutura é importante. Quando priorizamos hidrelétricas em detrimento de outras formas de energia limpa, há que se considerar os riscos ambientais e sociais e, além disso, se essa obra é realmente eficaz para produzir a energia que precisamos. Quem vai se beneficiar? A riqueza gerada será distribuída ou concentrada?
EC – O que significa responsabilização ampliada?
Estela − No processo de planejamento, construção e mesmo usufruto dos bens dessa grande obra ou do grande evento, como foram planejadas e efetivadas as condicionantes ambientais e sociais para que não haja impactos negativos? Os financiadores previram a responsabilidades de todos os envolvidos? Responsabilidade ampliada é isso, todos os envolvidos são responsáveis também pelos impactos negativos e isso precisa ser efetivado. No caso de tráfico de pessoas, inclusive os financiadores têm responsabilidade porque não exigiram ações que pudessem eliminar os riscos. No Brasil, o BNDES é muito resistente e quase um muro de impossibilidades tanto na transparência dos seus financiamentos quanto na exigência de condicionalidades para eliminação dos riscos ambientais e sociais. O desenvolvimento virou um dogma que somos sempre impelidos a não questionar, sob o risco de sermos contra o Brasil, é muito ruim isso para criarmos outras formas de enfrentamento das raízes da questão social que produz tráfico de pessoas.
EC – Por que há uma recomendação da ONU para que o Brasil intensifique o enfrentamento ao tráfico de mulheres em 2014?
Estela − O Brasil deve fazer o relatório de cumprimento do Comitê para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw) periodicamente. Em 2012, fez um relatório, mas o tema do tráfico não foi suficientemente tratado, ou seja, deixou muito a desejar. Durante a 51ª Sessão, nós da sociedade civil fizemos um grande trabalho e a maioria do que pautamos como sendo problemas do não enfrentamento ao tráfico de pessoas retornou como recomendações e aí, como foi frágil mesmo a participação do governo brasileiro, o Cedaw marcou um novo prazo para (re)fazer o relatório e avançar no cumprimento das metas, e os assuntos que o Brasil necessita postar novas informações são tráfico e saúde da mulher.
“Quando há uma grande obra, quando não se demarcam as terras indígenas, quando a visão criminal se sobrepõe à garantia de direitos, aí o tráfico é maximizado”
EC – A senhora afirma que as ações repressivas colocam em risco a vida de vítimas do tráfico humano e de suas famílias. Por quê?
Estela – A maioria das ações investigativas tem nas pessoas em situação de tráfico uma visão muito de “libertação” e, a partir dessa visão messiânica, não são previstas ações de atendimento integral às pessoas, ou seja, depois de preso o “algoz”, não há previsão de ações junto com a assistência social, saúde, trabalho, educação. A Polícia Federal, em nome das atividades investigativas e para cumprir a prova, coloca em risco a vida das pessoas. É preciso que as políticas de caráter repressivo sejam articuladas com as políticas protetivas e construtoras de autonomia, cidadania. No último levantamento do qual participei, os homens, por exemplo, retirados do trabalho escravo, um ano depois tinham sua vida nas mesmas condições do período de “libertação”. Isso significa que em nada adiantou a operação, ela só significou cumprir as metas institucionais e dar visibilidade ao problema do trabalho escravo. No caso da prostituição, a situação é ainda pior, ou seja, cada vez que a polícia entra nas boates, nas whiskerias sem prever o atendimento, a escuta qualificada das mulheres ou travestis, o que tem ocorrido é que fazem um estardalhaço com a operação: as pessoas são expostas nos meios de comunicação, correm riscos de vida e, às vezes, nem eram traficadas, pode ser até casos em que as mulheres autonomamente estavam naquele local. A vida das pessoas fica totalmente invadida e, em algumas situações, o impacto das operações de libertação piora a vida delas.
EC – Por que a identificação de rotas do tráfico é improdutiva?
Estela – Cada vez que uma rota é identificada, ela muda, ou seja, ficar contanto e dando visibilidade às rotas não é uma estratégia eficaz. A divulgação das rotas só faz com que elas mudem. As rotas só deveriam servir para compreendermos como os territórios de origem das pessoas traficadas estão falhando nas atividades de prevenção. Se as pessoas forem informadas e até participarem de atividades para aprenderem a viajar de forma mais segura e como acessar seus direitos, elas terão mais chance de não serem traficadas.