Lavanderia Futebol Clube
Foto: Igor Sperotto
Foto: Igor Sperotto
Na noite de 5 de fevereiro, quarta-feira, o clima no Rio Grande do Sul estava sufocante. Devido a mais uma onda de calor, a temperatura na primeira semana do mês ficou vários dias acima dos 40Cº. No céu, nada de chuva. À noite, sem vento, a sensação térmica facilmente passava dos 35Cº. Pela sexta rodada da primeira fase do Gauchão, 25 abnegados saíram de suas casas e pagaram um ingresso entre R$ 15 e R$ 30 para ver o empate de 1 a 1 entre Cruzeiro e Esportivo no estádio Antônio Vieira Ramos – o Vieirão – em Gravataí. A renda bruta do espetáculo foi de R$ 575 e o prejuízo, superior a R$ 4 mil, pago pela Federação Gaúcha de Futebol (FGF). Era o fundo do poço de um torneio que teve média de público inferior a 1,5 mil torcedores e dois em cada três jogos com menos de mil testemunhas nas arquibancadas. Das 120 partidas disputadas na fase classificatória, 26 deram prejuízo financeiro – mais de 20% do total.
O jogo em questão registrou o pior público do campeonato nos dois meses de disputa da fase classificatória, onde 16 clubes brigaram por oito vagas para a fase decisiva. E, longe de representar uma exceção, o cenário desolador se repetiu à exaustão pelos estádios brasileiros no primeiro trimestre de 2014 – ano de Copa do Mundo. O fenômeno, que já havia sido registrado na temporada passada, mostra basicamente duas coisas: 1) o futebol não encanta mais os torcedores, seja pelo preço dos ingressos, pela desorganização do calendário ou pelo excesso de jogos ou torneios e 2) mesmo sem plateia, os clubes continuam esbanjando dinheiro e movimentando cifras milionárias para colocar de pé um
negócio de alto risco.
Mas, apesar da penúria de público, cada uma das 16 equipes do torneio recebeu R$ 1,2 milhão para jogar o Campeonato Gaúcho– recursos garantidos pelo patrocínio de uma grande montadora de automóveis, a General Motors (GM), e pelos direitos de televisão, assegurados pela RBS até 2016, através do sistema pay-per-view(PPV) e televisão aberta. Além disso, a empresa de telefonia Embratel repassou R$ 960 mil aos seis clubes mais bem-colocados no torneio passado a título de incentivo. A conta para bancar o monstrengo fecha em mais de R$ 20 milhões, excluindo os custos dos clubes.
Motivação dos investimentos é um mistério
O que leva essas empresas a investirem num mau negócio continua sendo um mistério. A GM não fala oficialmente sobre a estratégia de patrocínio, que envolve 22 torneios regionais do país desde o ano passado com a marca Chevrolet – o contrato de naming rights foi firmado por três temporadas. Internamente, porém, o tema é colocado na categoria dos “assuntos negativos” – um eufemismo para não carimbar a experiência como desastrosa. “É um problemão, pois os resultados [financeiros] não vieram e há um compromisso público que não pode ser desfeito sob pena de haver ainda mais danos à imagem da empresa. Mas é certo que deu e continuará dando prejuízo”, reconheceu uma fonte de dentro da montadora, que não quer se identificar.
O retorno da GM deveria vir em forma de exposição de marca nas transmissões dos jogos – especialmente na TV aberta. Mas a caixa-preta e a lei do silêncio são a regra no mercado do futebol. Estima–se que o número de assinantes do PPV no Gauchão de 2014 tenha alcançado 170 mil contratos, o que renderia por volta de R$ 8,5 milhões ao mês – ou,
no acumulado de 60 dias do torneio, cerca de R$ 17 milhões. Pouco para um investimento dessa magnitude. O valor não paga o orçamento do produto, que ainda tem custos de transmissão, taxas, impostos. A licenciada da Coca-Cola no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina patrocinou o certame em 2011 e 2012, mas diante do retorno pífio de mídia se afastou da FGF no ano passado. A parceria, na época, chegou a ser tratada como um novo marco para o marketing esportivo no Brasil. Não foi. Se cada vez mais se revela um mau negócio do ponto de vista mercadológico, com pouco público nas arquibancadas e interesse limitado nas transmissões de TV, a regra não parece valer para os investidores que atuam como patrocinadores de clubes e atletas. O presidente da FGF, Francisco Novelletto, disse que se trata de uma tendência mundial derivada da televisão, que leva o futebol em doses cada vez maiores para a casa do torcedor. “O sujeito vai sair de casa com frio ou calor extremos para ver um jogo que passa ao vivo no aparelho da sala, onde tem ar-condicionado, cervejinha gelada e todo o conforto de casa? Correndo o risco de ser assaltado ou ter o carro arranhado? Claro que não. A torcida, no futebol brasileiro, vai
acabar”, sentencia.
Preços irracionais dos jogadores estão no centro das fraudes
Os times amadores, especialmente no Brasil, são a principal porta de entrada para as práticas criminosas. O Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi), do qual o Brasil é signatário, apontou no seu último relatório três áreas de vulnerabilidade: 1) é fácil penetrar nesse mercado, já que ele lida com “agentes” que são também torcedores ou cartolas de clubes de futebol; 2) a rede de operadores do negócio é cada vez mais complexa, com uma infinidade de partes interessadas que vão de grandes investidores a caçadores de talentos; e 3) a administração ainda amadora de boa parte das transações, o que facilita a ocorrência de atividades fraudulentas.
O Gafi foi estabelecido pelo G7 em 1989 com o objetivo, já naquela época, de “gerar vontade política” à implementação de medidas efetivas no combate à lavagem de dinheiro internacional. O órgão estima que US$ 2 trilhões sejam reinseridos por ano na economia mundial – do qual a fraude no futebol gera uma parte ínfima, inferior a 2%. Mesmo assim, o tema causa apreensão. Aliado aos riscos potenciais, o principal fator de fraude no futebol, segundo os investigadores da Gafi, tem nome: os “preços irracionais” dos atletas. É por aí, segundo o delegado da Polícia Federal Márcio Adriano Anselmo, que a ilegalidade prospera. Por exemplo: só a venda do centroavante Leandro Damião, do Internacional ao Santos, no final de 2013, movimentou R$ 42 milhões, mais uma “comissão” de R$ 8 milhões (ou 20%) paga para a Doyen Sports pelo empréstimo de capital ao clube paulista. Foi a maior transação comercial entre clubes do futebol brasileiro. Há cinco anos, o Internacional havia pagado R$ 300 mil por 70% dos direitos federativos do então atacante Leandrão, vinculado ao Atlético de Ibirama (SC).
Supervalorização de atletas é prática recorrente
No interior do Rio Grande do Sul, o jovem atacante Samuel Rosa Gonçalves, 23, passou pelo mesmo processo de supervalorização identificado pela Gafi – com a desvantagem de que não se tornou uma celebridade. Descoberto pelo olheiro Eldonir Marchezan em 2006 nos campinhos da Sociedade Esportiva São Borja, Samuel deverá ser alvo de uma disputa judicial envolvendo direitos federativos entre seu antigo procurador e o Fluminense (RJ), que o negociou no final do ano passado por R$ 11 milhões ao Los Angeles Galaxy (EUA).
Arte de Fábio Alves (D3 Comunicação), sobre a foto de Los Angeles Galaxy / Divulgação
Arte de Fábio Alves (D3 Comunicação), sobre a foto de Los Angeles Galaxy / Divulgação
Marchezan, que também presidiu o clube amador de São Borja, nunca viu um tostão do negócio. Antes de se transferir para o Rio, onde fez um bom Campeonato Brasileiro em 2013, o jogador foi “encubado” no São José de Porto Alegre e teve uma passagem apagada pelo Inter B, que liberou o atleta apesar de uma carta de empréstimo do São José fixar em 50% os direitos federativos de Samuel junto ao clube da zona norte. “Tenho uma procuração irrevogável assinada pelo Samuel que me garante direitos de transação, mas nunca recebi nada pelas negociações envolvendo o jogador. Vou acionar os empresários dele na Justiça porque 20% desse negócio pertencem ao São Borja. Levei um balãozinho desse pessoal”, descreveu Marchezan.
O atleta morou com a família num terreno cedido pelo clube e se formou jogando peladas no campo que a agremiação mantém na zona central de São Borja. Marchezan conta que toda a família de Samuel foi beneficiada pelo acordo. Segundo o olheiro e cartola, era “gente muito, mas muito pobre”. O empresário de Samuel é Gerson Oldenburg, o “Gauchinho” – que substituiu Novelletto como “investidor” do Esporte Clube São José. Marchezan conta que repassou o jogador para o presidente da FGF em 2008 para, como declarou na época, “jogar no Caxias”. Mas acabou indo mesmo para o Zequinha, clube da zona norte de Porto Alegre que tem servido desde 2009 como berçário de atletas representados por Novelletto e Gauchinho. A promessa de pagar R$ 30 mil ao olheiro por conta da formação do atleta nunca foi cumprida.
“Ele (Novelletto) se aproveita da sua relação oficial com os clubes, como presidente da Federação, para tirar proveito e se adonar de jogadores promissores”, acusa Marchezan. Samuel é sobrinho do ex-jogador Zé Alcino, que nos anos de 1990 também causou problemas a Marchezan por conta de suas transferências controversas. Na época, em 1995, o passe do atacante estava fixado em R$ 300 mil, mas o jogador acabou parando no Internacional por empréstimo estipulado em R$ 120 mil. O dinheiro nunca foi pago, o que fez o então presidente da Sociedade Esportiva São Borja negociá-lo com o rival Grêmio. Comprado, o valor demorou mais de um ano para chegar às mãos de Marchezan. Quem pagou metade do passe foi o empresário Celso Rigo, um dos maiores plantadores de arroz da região.
Dinheiro público para subsidiar ingressos
Foto: Igor Sperotto Foto: Igor Sperotto
Francisco Novelletto tem uma solução mágica para contornar esse impasse: dinheiro público. Segundo o dirigente, nos estádios do Nordeste há bastante torcida nos estádios porque os governos estaduais estimulam a presença de torcedores com a troca de ingressos por notas fiscais. Em Pernambuco, de acordo com o presidente da Federação, são 18 mil ingressos por rodada. Novelletto critica a apatia do Rio Grande do Sul e diz que “aqui o Estado não permite nada” em termos de incentivo ao esporte.
De fato, em Pernambuco o programa Todos com a Nota, instituído em 2007, permite que uma nota fiscal de compra no valor mínimo de R$ 100 seja trocada por um ingresso para qualquer jogo do campeonato regional ou dos nacionais das séries A e B. Em 2013 foram mais de 800 mil ingressos trocados, beneficiando especialmente os três grandes clubes locais.
Este ano, só a média do Santa Cruz chegou a 7 mil bilhetes por jogo do Estadual – o que significa mais que o dobro da média de público do clube. Mesmo assim, os estádios seguem com baixa frequência: média de 5 mil pessoas nos jogos de fevereiro e março. Na Paraíba o incentivo virou lei estadual, e em Goiás a experiência também vem sendo adotada desde 2013. Em Manaus, a prefeitura financia dez clubes que disputam o Estadual com R$ 500 mil. A confusão entre dinheiro público e recursos privados é um vício antigo dos times de futebol do país, agravado com a afluência crescente de empresários que ajudam a transformar o esporte num negócio milionário – e suspeito.
Atletas-mirins rendem milhões aos investidores
No São José, Novelletto investia cerca de R$ 30 mil mensais nas categorias de base do clube. Mesmo sem nunca ter presidido a agremiação, era tido como o mandachuva do local. No final do ano passado, o dirigente acabou se afastando do clube para levar adiante seu sonho de presidir a Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Mas deixou o sócio “Gauchinho” no seu lugar. O valor atual – R$ 600 mil por ano – pode parecer exagerado, mas os negócios compensam. Duas promessas do Zequinha, representados pela dupla Novelletto/“Gauchinho”, valem juntos US$ 15 milhões, segundo o clube.
Foto: Igor Sperotto
Marlon, 20, emprestado ao Fluminense até 2017, tem multa rescisória de US$ 5 milhões – 80% dos direitos federativos são do São José. Já o volante Felipe Guedes Martins, 21, está avaliado em US$ 10 milhões segundo a direção do clube. Dos 15 jogadores que passaram pelas peneiras e já têm contratos profissionais com o clube, “três ou quatro” são empresariados pelos sócios de acordo com a direção do São José. Na verdade, o número é maior: por contrato, Oldenburg, que também representa o técnico
Renato Gaúcho, tem 25% dos direitos de toda a base do São José, que envolve cerca de 400 garotos. Uma pequena parte desses atletas-mirins, é verdade, vai vingar. Os ganhos gerados com as transações para mercados estrangeiros, especialmente Leste Europeu, Europa e Estados Unidos, justificam o negócio.
Gérson “Gauchinho” Oldenburg mora no Rio de Janeiro e tem um escritório num dos endereços nobres da zona sul, em Ipanema. Mas não atende telefones e nem responde a e-mails. Seu “sócio”, Francisco Novelletto, que classifica os empresários do futebol como um “bando de urubus”, sai em defesa do amigo: “tem muito safado aí que tem 50% e até 70%
dos direitos de jogadores. Ou seja, estão matando os clubes. O “Gauchinho” não. Ele coloca dinheiro no São José, ajuda a pagar as contas. É um dos poucos honestos no mercado”.