Foto: Émile Patrício Foto: Émile Patrício
O tema é a base dos estudos do jornalista, mestre em Ciências da Informação e doutorando da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Ruleandson do Carmo. Ele pesquisou o preconceito no ambiente virtual a partir das publicações e comportamento dos usuários em diferentes plataformas digitais como o Lattes, blogs e as comunidades Facebook, Twittere Orkut. “Essa é uma nova forma de expressar um preconceito que é mais simbólico do que o expresso no mundo físico”, afirma.
Apesar de ser apresentada como um ambiente democrático que dá espaço e voz a quem nunca teve, e que de fato ela faz, de acordo com o pesquisador, a internet também acaba por replicar e ampliar comportamentos do mundo físico, sejam eles bons ou ruins. “O problema é achar que a internet seria perfeita, ou que simplesmente ter um blog e reclamar de algo vai fazer com o que o mundo mude, a questão é mais complexa”, explica Ruleandson.
O pesquisador define o preconceito digital ao explicar o pensamento de quem antes dominava a rede e agora se vê cercado por usuários vindos da nova classe média brasileira: “você pode até acessar a internet, mas não deixou de ser pobre e de ser pior do que eu”.
Extra Classe − A internet sempre foi anunciada como um espaço virtual igualitário e democrático onde todos têm vez e voz. Ela é de fato? Quais os limites e o que é mito nessa democracia?
Ruleandson do Carmo − Se você compara a internet com outras mídias, como rádio, televisão e os jornais e revistas impressos, ela é bem mais democrática e participativa, de fato. O cidadão comum não consegue criar facilmente um canal de TV, ou uma emissora de rádio, ou até mesmo um jornal ou revista impressos de grande circulação para expor suas ideias e pensamentos. Entretanto, qualquer cidadão com acesso à internet, independentemente de ser em casa ou no trabalho, pode criar um blog e dizer a todos o que pensa. A internet dá sim voz a todos que podem acessá-la, mas penso que isso traz algumas ilusões.
EC − Quais os limites e o que é mito nessa democracia?
Ruleandson − Se você acompanha os tópicos mais discutidos por brasileiros no Twitter, por exemplo, em geral eles se relacionam a artistas da grande mídia, a capítulos de novelas, filmes e jogos esportivos sendo transmitidos pela televisão. A mídia tradicional ainda tem grande força, grande impacto e a internet, por vezes, traz debates em torno do que a grande mídia torna visível ao público. Além disso, muitos pensam que ter um blog significa que o mundo todo te lê, mas não! Um blog pode ser acessado e lido pelo mundo inteiro, mas isso não quer dizer que ele é ou será lido por todos. Inegavelmente muitos movimentos se mobilizam e só ocorrem por causa da internet, mas isso não significa que todo mundo vai te ler ou o mundo inteiro vai saber que você existe só porque criou um blog para dizer aquilo que não poderia dizer nas mídias tradicionais.
EC − Onde nasce o preconceito na internet?
Ruleandson − Penso que da mesma forma que no mundo físico, ele nasce da falta de informação, do medo daquilo que não se conhece a fundo. A ideia de que todos tem voz na internet fez com que muitos pensassem que não haveria preconceito no espaço virtual, mas ele existe, principalmente porque se todos podem dizer o que pensam na internet os preconceituosos também vão poder e dizem. Umavez ouvi que isso é que era democracia, o fato de até o preconceituoso poder se expressar. Não sei… Talvez seja, mas em um meio com tantas informações o preconceito deveria ser menor. Se o que não falta na internet é justamente informação, não há motivos para alguém se acomodar em meio ao preconceito, a expressão da falta de informação.
EC − Podemos dizer que o ambiente virtual expõe um preconceito que vive mascarado no meio físico? Por quê?
Ruleandson − Em muitos casos, sim. A internet torna visível e registra o que as pessoas pensam, inclusive o preconceito delas. Se alguém visse, por exemplo, um casal homossexual passando na rua, talvez ficasse calado pensando contra ou fizesse uma cara feia, mas quando alguém posta a foto de um beijo gay ou coisa do tipo em uma rede social, a pessoa pode não deixar passar em branco e comentar algo homofóbico. Como as pessoas parecem ter uma ansiedade por dizer o que pensam, o que fazem, ao postarem fotos e comentários nos sites, elas acabam, por vezes, registrando também o preconceito delas. Foi o caso daquela professora que postou a foto comentando sobre como os aeroportos estavam popularizados. Talvez, antes, ela só mostrasse a pessoa que ela julgou estar mal vestida e ser pobre e fizesse comentários entre amigos e fim. Com a internet, ela quis tirar a foto e registrar o que pensou. Assim, muitos que a achavam uma mulher mente aberta passaram a ver como ela era preconceituosa. A internet registra e mostra quem somos e por vezes quem nem nós sabemos que somos.
Foto: Igor Sperotto
Foto: Igor Sperotto
EC − Após a decadência da rede social que foi muito popular no Brasil, a migração de usuários do Orkut (definidos como massa pobre por outros internautas) para novos espaços digitais trouxe à tona o preconceito?
Ruleandson − Quando o Orkut começou, em 2004, ele tinha como maioria de usuários os sujeitos de classes mais afortunadas, por nenhum motivo em específico, mas porque eram os mais ricos que tinham, no período, mais acesso à internet. Com isso, ter Orkut, na época, significava ser da elite virtual, ser moderno. O Orkut era um sinal de distinção social. Com o passar do tempo, o acesso à internet se popularizou no Brasil e o Orkut também. Como resultado, os menos afortunados também passaram a criar perfis nessa rede, que deixou de ser um sinal de que alguém pertencia a uma classe de privilégios. Dessa forma, muitos usuários foram abandonando o site e criaram perfis em espaços usados pela elite da internet, os usuários mais avançados. O Orkut se tornou uma espécie de ambiente introdutório às redes sociais no Brasil, grande parte dos sujeitos teve um primeiro contato com as redes acessando o Orkut, por isso, quando as classes menos favorecidas começaram a usar o site e se tornaram a maioria dentro do Orkut, as classes mais afortunadas já usavam outros sites e passaram a classificar o Orkut como site de pobres.
EC − Por que eles não são bem-vindos nesses novos espaços?
Ruleandson − Os usuários do Orkut não eram bem-vindos em outras redes porque a presença deles faria com que o site não fosse mais um sinal distintivo, deixasse de ser algo quase que “exclusivo” à elite. Isso ficou claro quando o Instagram (rede social de fotos) deixou de ser exclusivo aos usuários do iPhone e se popularizou. A partir disso, surgiram movimentos contrários ao que chamaram de orkutização do Instagram: como usuários de celulares com sistema operacional Android, muito mais baratos do que um iPhone, também poderiam postar fotos no aplicativo, o Instagram deixaria de ser um sinal de distinção da elite e, de fato, deixou de ser.
EC − O que é a orkutização e que sentido ela tem hoje?
Ruleandson – A orkutização é a popularização de algo, é quando o que era exclusivo aos ricos se torna acessível aos pobres. Começou como a orkutização do Twitter, quando usuários do Orkut começaram a usar o microblog, porém hoje se tornou a popularização de diversas coisas, inclusive produtos e serviços. Ela tem o sentido, na sociedade brasileira, de que as classes mais afortunadas estão incomodadas com ascensão social dos menos favorecidos no Brasil. Os ricos veem os pobres com celulares, viajando de avião, com acesso aos mesmos espaços e se incomodam, se amedrontam.
EC – Quem é essa “massa pobre” que é alvo da segregação digital?
Ruleandson − Acredito que sejam os membros da nova classe média brasileira, a classe que ascendeu socialmente nos últimos anos. São aqueles que não nasceram em famílias ricas e que hoje começam a ter as mesmas possibilidades de acesso a ferramentas, serviços e recursos antes restritos aos ricos no Brasil. São aqueles que somente agora tem celular e podem contar e mostrar tudo isso na internet.
EC − Como o senhor avalia o acirramento entre classes sociais e o discurso pautado pelo preconceito no cenário eleitoral de 2014?
Ruleandson − Não avaliei esta questão em minha pesquisa e não me arrisco a opinar.
EC − A internet serve também ao campo de exercício de ódios pré-existentes, mas que não tinham espaço para expressão ou trata-se de um novo fenômeno provocado pelas novas mídias?
Ruleandson − Entendo que a internet apenas permite que as pessoas digam o que elas ensavam, que talvez antes não tinham onde dizer e camuflavam seus preconceitos. Não vejo como um novo fenômeno, analiso como uma nova forma de expressar um preconceito que é mais simbólico do que o expresso no mundo físico.
EC − O senhor analisou a popularização do currículo Lattes, uma plataforma científica e até certo ponto elitizada. O que significou a entrada de pessoas “comuns” neste ambiente?
Ruleandson − Os grupos sociais buscam a distinção, buscam mostrar que são superiores a outros. Na comunidade acadêmica e científica também é assim. O Lattes antes era um sinal distintivo, só tinha Lattes quem era um grande pesquisador, uma referência na área em que atua: os mestres e doutores. Lembro que a busca principal só pesquisava por doutores, se você quisesse encontrar mestres tinham que usar a busca avançada e, então, marcar a opção devida. Hoje, estudantes de graduação criam perfis no Lattes, seja porque ouviram falar da plataforma seja porque foram obrigados para receberem a bolsa do estágio. Com isso, alguns membros da comunidade científica se incomodaram ao perceberem que o Lattes não era mais um sinal distintivo, e é por isso que circulam na internet algumas piadas e ridicularizações de perfis de graduandos no Lattes. Percebi que tais brincadeiras em geral são feitas por pós-graduandos, que precisam se aproximar dos grandes nomes de uma área e mostrar que estão distantes dos graduandos e dizer a eles: “quem são vocês para terem um Lattes”?
EC −O senhor define no meio digital dois ambientes que reproduzem o meio físico: a zona sul, para os ricos, e a zona norte, para os pobres. O que são de fato esses espaços?
Ruleandson − Essa definição foi feita no meu primeiro estudo do tema, no qual havia uma separação criada pelos internautas dizendo que o Orkut era o site dos pobres e o Twitter e o Facebook seriam sites para ricos. Encontrei ainda neste estudo de 2009 sites como o Elysiant que permite apenas a entrada de pessoas com alto poder aquisitivo, pois os milionários não queriam, na época, se misturar ao Orkut, ou seja, o site de pobres. O que eu questionava no estudo é se a internet viria, com o tempo, a reproduzir uma divisão social comum em diversas cidades do Brasil e ter espaços para ricos, a zona sul, e espaços para pobres, a zona norte. Mas isso é algo que só o tempo dirá.
Foto: Émile Patrício Foto: Émile Patrício
Ruleandson − Para os sujeitos, popular, de mau gosto é, em geral, publicar animações, correntes de orações ou de brincadeiras, escrever errado, qualquer coisa que se faça o dia todo. Os sujeitos classificam essas práticas como sendo populares, no sentido de serem práticas comuns à orkutização. Além disso, se um sujeito posta fotos de um churrasco, de um almoço popular ou de uma casa com a parede sem reboco ele também será ridicularizado, por, de fato, expressar uma pobreza material. Há diversas páginas no Facebook voltadas a isso, a ridicularizar pobres que postam fotos de seu dia a dia na internet. Quem ridiculariza está revoltado com o acesso dos pobres ao que ele achava que deveria acessar com exclusividade, é uma forma de dizer: “você pode até acessar a internet, mas não deixou de ser pobre e de ser pior do que eu”.
EC − Em suas pesquisas, você diz que pelo potencial democrático, a internet chegou a ser definida como “meio essencial de expressão e organização dos movimentos sociais”. O meio digital tem cumprido esse papel que lhe foi atribuído?
Ruleandson − Se olharmos as manifestações ocorridas no Brasil em 2013, sim. A internet tem sim um potencial de reunir grupos sociais interessados em causas que lhes afetam, o que não quer dizer que não haja preconceito na internet. O problema é achar que a internet seria perfeita, ou que simplesmente ter um blog e reclamar de algo vai fazer com o que o mundo mude, a questão é mais complexa.
EC − Nas manifestações que tomaram o país em junho de 2013, os jovens traziam cartazes que diziam “saímos do Facebook”, respondendo a acusação de que essa geração se manifestava apenas nas redes sociais. Na sua opinião, existe um engajamento político nas redes sociais que reflete na vida real?
Ruleandson − Com certeza, mas há o outro lado também. Presenciei vários amigos que só foram às manifestações para tirar foto e postar nas redes sociais. As manifestações viraram uma espécie de souvenir. Não era importante manifestar apenas, era importante registrar e postar no seu perfil no Facebook. A internet também levanta engajamentos que, por vezes, podem ser só modismos. Este ano, as mobilizações já não tiveram grande força. Os jovens pareciam estar mais envolvidos com a troca de figurinhas do álbum da Copa.
EC − A presidente Dilma anunciou em julho o lançamento de seu WhatsApp. Ela está presente em diversas redes sociais e se manifesta com frequência sobre assuntos que antes não eram tratados pelos gerentes da nação. Esse é o futuro dos políticos, uma presença ativa na internet mesmo fora dos períodos de campanha?
Ruleandson − Não estudei essa questão, mas acredito que sim, os políticos vão marcar presença em qualquer espaço no qual tanto possam pedir votos quanto possam atender e responder à população.
EC − Dilma também é uma das figuras mais comentadas na rede pela sua representação com o perfil político/humorístico, não gerido por ela, o Dilma Bolada. Esta página, apesar de não oficial, já teve discussões políticas sérias com candidatos reais à presidência. Qual será o tom das eleições 2014 na internet? Podemos esperar embates fortes no meio digital?
Ruleandson − Novamente, essa questão das eleições e da política não é um tema que eu estudo, mas espero que a internet ajude o cidadão a votar.