Ensino superior e concentração de capital
Foto esquerda: Igor Sperotto / Fotodireita: Rafael Matsunaga/Arquivo/Fotos Públicas
O pesquisador Wilson Mesquita de Almeida investiga a privatização e a concentração de capital no ensino superior. Ele aborda o tema em seu recente livro Prouni e o ensino superior privado lucrativo em São Paulo: uma análise sociológica, publicado com apoio da Fapesp. Apesar do título, o autor amplia sua análise para além das fronteiras paulistas ao afirmar que o universo do ensino superior privado brasileiro transita de pequenas faculdades isoladas para grandes universidades, até chegar aos fundos de investimento, com ações altamente cotadas na Bolsa de Valores. “São instituições voltadas para obter lucro com a educação. Fato bem diferente do que ocorre nos países desenvolvidos, onde não houve estímulo estatal para a existência de empresários donos de universidades”, pontua. Wilson é doutor e mestre em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo, bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, professor adjunto da Universidade Federal do ABC (UFABC).
Extra Classe – De que forma ocorreu o crescimento do ensino superior privado no Brasil a partir do Regime Militar?
Wilson Mesquita de Almeida – O segundo capítulo do meu livro é dedicado à emergência, ao desenvolvimento e, agora, com a entrada dos fundos de investimento, à consolidação do que designo como ensino superior privado lucrativo. Ele emerge no bojo da Reforma Universitária de 1968. Já a partir de 1970, passa a ter a hegemonia das vagas na graduação brasileira. Esse setor existe em outros países, mas não obteve, tal como aqui no Brasil, estímulos e incentivos para se desenvolver e tornar-se dominante. É inexpressivo nos países capitalistas mais centrais, inclusive nos EUA. Nos EUA as universidades privadas são consideradas instituições públicas não estatais. Cobram mensalidades, mas o dinheiro obtido não vai para o bolso do dono como aqui no Brasil, mesmo porque não existe lá, com peso, a figura do proprietário particular. Por isso, ex-alunos ricos dessas instituições fazem doações expressivas para as faculdades, pois eles sabem que o dinheiro será reinvestido na universidade. Em nosso país, toda a sociedade brasileira que produz dá dinheiro para o setor privado lucrativo. Por meio de dois mecanismos o crescimento foi realizado: isenção de impostos e financiamento por meio do chamado, na época, “crédito educativo” que, a partir de 1999, tornou-se o Fies. Dentre outros participantes, o crédito educativo foi idealizado pelo ex-ministro do regime militar, Jarbas Passarinho. É preciso dizer que o problema não é ter universidade privada. O problema é ter universidade privada com dono, com lógica pautada em extrair lucro vendendo ensino superior de qualidade duvidosa, geralmente para alunos de baixa renda. Eis a consequência socialmente perversa.
EC – Qual o tamanho da concentração de capital na educação superior no Brasil e quais fatores levam a isso?
Almeida – As universidades ligadas aos grandes grupos educacionais – controlados pelos fundos de investimento – dispõem de poder financeiro para comprar universidades grandes, médias e pequenas, concentrando o mercado. Nada diferente do que ocorre no capitalismo brasileiro, geralmente cartelizado ou monopolizado. Resultado disso: a proporção caminha em direção a quase 80% das vagas da graduação brasileira sendo oriundas do setor privado, já que esse setor é formado em sua quase totalidade por instituições lucrativas, composto por uma minoria de instituições comunitárias e fundações privadas, com caráter público. Os fatores que levaram a tal concentração foram os incentivos já ditos e a fraca regulação até hoje existente. Isso possibilitou essa alta concentração favorável aos interesses dos empresários de ensino em detrimento de se pensar em alternativas mais frutíferas de desenvolver um sistema amplo, diversificado e com predominância pública, caminho que os países social e economicamente mais avançados do mundo seguiram. Basta ver a questão do controle.
EC – Como funciona a fiscalização?
Almeida – Na prática, não houve e não há controle efetivo por parte do MEC. As universidades lucrativas deitam e rolam. Fraudes nos sistemas de avaliação, não cumprimento de regras estabelecidas, superexploração de professores, cada vez mais com valor baixíssimo pago pela hora-aula, dentre inúmeras outras. Qualquer punição, se ocorrer, leva dois mandatos presidenciais! A Constituição brasileira de 1988 tentou regular esta situação, e instituiu a lei que condicionava a isenção de impostos àquelas universidades particulares que investissem o lucro obtido em sua própria infraestrutura, a fim de garantir a qualidade do ensino ofertado. Entretanto, a nova lei foi pouco efetiva por conta de uma série de fraudes e subterfúgios, onde as faculdades particulares simulavam falsos investimentos. Esta situação perdurou durante os anos 1990, e se agravou no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, quando na gestão do então ministro da Educação, Paulo Renato, houve um grande incentivo para a explosão de vagas nas universidades privadas. A grande expansão provocou outro problema para estas instituições: o alto número de inadimplência e evasão dos alunos levou as empresas de ensino superior privado a chegar a uma situação financeira crítica no início dos anos 2000. Neste contexto, já no governo Lula, nasceu o Prouni. Com a intenção primeira de salvar estas empresas. Ou seja, da ditadura e passando por todos os governos democráticos até aqui, esse setor continua dando as cartas.
Foto: divulgação/FDSBC
EC – Como o senhor avalia e quais são os incentivos oferecidos pelo governo brasileiro para o crescimento do ensino superior privado e seus reflexos na educação nacional?
Almeida – Os incentivos continuam na figura do Fundo de Financiamento do Ensino Superior (Fies) e, com o advento do Programa Universidade para Todos (ProUni), em 2005, por meio de isenções fiscais para as instituições participantes do programa, bem como outros programas de perdão de dívidas em troco de algumas poucas vagas. Estes últimos são menos discutidos e cobertos pela imprensa em geral e, no entanto, já passaram como pauta do Congresso Nacional. Sobretudo o Fies, é um escândalo. Transferência de dinheiro público para grandes grupos educacionais que hoje estão lucrando fácil, sem risco algum, com ações na Bolsa de Valores. Criado na ditadura como crédito educativo, ideia do ex-ministro Jarbas Passarinho para contemplar, naquela época, a classe média que apoiava o regime, financiando o ensino superior privado lucrativo que então ganhava corpo, já deveria ser redirecionado para desenvolver o acesso e a permanência do estudante no ensino público há muito tempo, coisa que os governos democráticos ainda não fizeram. São recursos bilionários, obtidos com receita das loterias e do orçamento do MEC, que precisariam ser redirecionados para investimentos no acesso e na permanência de jovens de baixa renda no ensino superior. Com essa mudança, não haveria mais bolsistas parciais no ProUni que ainda pagam parte da mensalidade com recursos do governo via Fies, enchendo o cofre dos empresários e fundos de investimentos. Diga-se de passagem, a proposta original do ProUni feita pelo Fernando Haddad era somente ter bolsistas integrais. Ela foi derrubada pelo lobby dos empresários de ensino. No meu ponto de vista, esse dinheiro do Fies seria mais bem-utilizado no apoio aos cursinhos pré-vestibulares comunitários já existentes por todo o Brasil, sob coordenação das universidades públicas e privadas não lucrativas, os quais seriam como centros de aprendizagem e de cultura para estudantes de baixa renda Brasil afora, dado o nível precário de ensino da rede pública básica atual.
EC – Como?
Almeida – Eles poderiam tentar as vagas das universidades públicas, das faculdades tecnológicas, do ProUni restrito às privadas não lucrativas, escolas técnicas ou mesmo prestar concursos públicos, fazer cursos supletivos, cursos de reforço escolar, preparação para primeiro emprego, enfim, uma série de combinações possíveis. Além disso, parte dos recursos deveria ser investida na permanência desse aluno que chega, por mérito, ao ensino superior. Teriam bolsa-permanência com valor competitivo, para que, tal como o estudante de classe média, possa se dedicar ao curso e, depois, dar um alto retorno para a sociedade, melhorando a rede pública, gerando inovação, sendo um profissional bem-qualificado. É necessário cuidar da permanência do bolsista do ProUni, dos cotistas, dos estudantes que entram por meio de bônus – caso das universidades estaduais paulistas USP e Unicamp. Articular uma série de ações para que ele possa, de fato, fazer um curso superior consistente. Esse ponto, inclusive, foi ressaltado por muitos dos meus pesquisados, o fato de muitas universidades privadas participantes não tratarem o bolsista do ProUni como um verdadeiro aluno, não levar em conta suas peculiaridades. No livro há diversos depoimentos sobre isso.
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“… essa lógica imediatista do lucro máximo começa a penetrar nas instituições públicas – estatais e não estatais, comunitárias e confessionais”
EC – Até que ponto este modelo educacional que vê educação como produto e estudantes como clientes contamina todo um sistema educacional com sua lógica focada no lucro?
Almeida – É um processo perverso! O impacto é brutal sobre todo o sistema de ensino. A principal questão é a lógica subjacente que esse caráter puramente mercantil traz para os profissionais docentes, para os alunos, para o professor de licenciatura que é formado lá e, também, fato central, essa lógica imediatista do lucro máximo começa a penetrar nas instituições públicas – estatais e não estatais, comunitárias e confessionais. Por isso, enfatizo, começa a contaminar toda a estrutura educacional. Outro elemento que favorece a propagação dessa lógica é, como sempre, os ditos “intelectuais” que trazem os discursos de sustentação ideológica do setor privado no ensino superior. Como sempre, devidamente pagos e protegidos pelos empresários do ensino para propagandear e passar um verniz “científico” em teses que não se sustentam. São os tais “consultores e gestores”, outra face desse setor privado que também abordo no livro. Como resultado, parâmetros totalmente alheios à educação, ao saber, ao desenvolvimento, à inovação, à criatividade, passam a predominar. Vejamos. Esse sistema privado lucrativo quer obter retorno rápido. Hoje, rapidíssimo, na velocidade alucinante das cotações da Bolsa de Valores. Ao contrário da fala de um investidor presente no livro, para mim educação não deve ser tratada como um produto qualquer, como se vendesse “tomate” em um supermercado, segundo ele. Esse pessoal só está pensando na valorização do capital e pouco se lixando para o país, é a triste realidade. Por isso que a sociedade e o governo federal têm que, o quanto antes, acabar com essa festa de dinheiro fácil, com risco zero, para “falsos empreendedores”. Eles adoram “correr risco” com dinheiro do povo brasileiro. Assim é legal ser empreendedor não? Se vendo educação como um produto qualquer, para que eu possa maximizar meu lucro, tenho, inevitavelmente, de reduzir custos. Quais são esses custos que são reduzidos pelos empresários de ensino? Professor bem-qualificado, com experiência em pesquisa, ensino e extensão. Se pretendo ganhar dinheiro com venda de educação superior, não posso fazer um vestibular decente, pois, se o fizer, estarei afastando grande parte dos alunos que pagarão as mensalidades. Assim, há redução de investimentos justamente no essencial para a qualidade de ensino. Por isso os países mais avançados fogem disso. Nesses países, o ensino superior ou é público ou é público não estatal em sua maioria. Não é privado lucrativo, com dono de universidade ganhando muito dinheiro à custa dos que pagam muitos impostos no Brasil, principalmente a classe média e a parte mais pobre e numerosa. Há uma contradição insolúvel entre combinar lucro e educação superior no Brasil. A lógica das ações é de resultado trimestral. Essa lógica econômica não se dá bem com qualidade de ensino. É como água com óleo. Não dá para misturar.
EC – Por quê?
Almeida – Educação não gera resultado no curtíssimo prazo. Ainda mais em nosso país, com desigualdades seculares.Logo, já contaminou e ainda contamina nosso sistema educacional. Exemplos concretos: vejam os efeitos pedagógicos e as consequências para o trabalho docente. Com o domínio dos fundos de investimento e abertura de ações na Bolsa de Valores, há um processo paulatino de atração de novos investidores que exigem, cada vez mais, resultados financeiros acima da média e no curto prazo. A dinâmica oscilante das ações negociadas vira o parâmetro central. Baixou o preço da ação, pulo fora, menos valorização da empresa-universidade. O valuation, valor da empresa, é a diretriz. Não há milagre a fazer, pois os custos e despesas precisam ser equacionados para possibilitar a redução de preços do produto que se vende, visando à “maximização do valor ao acionista”, como prega a teoria econômica que embasa o mercado de ações. Os efeitos são claros: quem dirige agora é profissional de mercado, já que não importa o produto à venda, a lógica mercantil é a mesma; a remuneração desses profissionais é variável, ou seja, quanto menos despesas e mais lucros atingirem, maiores bônus e salários obtidos, trazendo mais pressão para os profissionais docentes que ficam; simplificação, padronização e pasteurização dos conteúdos didáticos, que passam a ser os mesmos para todas as unidades – o mesmo “livro” é usado para todos os cursos, de forma indistinta, pois vale a pena comprar em grande escala firmando parcerias com editoras e gráficas.