GERAL

Ensino superior e concentração de capital

Por Grazieli Gotardo / Publicado em 8 de março de 2016
IES com salas de aula lotadas invariavelmente são as mesmas com ações negociadas na Bovespa

Foto esquerda: Igor Sperotto / Fotodireita: Rafael Matsunaga/Arquivo/Fotos Públicas

IES com salas de aula lotadas invariavelmente são as mesmas com ações negociadas na Bovespa

Foto esquerda: Igor Sperotto / Fotodireita: Rafael Matsunaga/Arquivo/Fotos Públicas

O pesquisador Wilson Mesquita de Almeida investiga a privatização e a concentração de capital no ensino superior. Ele aborda o tema em seu recente livro Prouni e o ensino superior privado lucrativo em São Paulo: uma análise sociológica, publicado com apoio da Fapesp. Apesar do título, o autor amplia sua análise para além das fronteiras paulistas ao afirmar que o universo do ensino superior privado brasileiro transita de pequenas faculdades isoladas para grandes universidades, até chegar aos fundos de investimento, com ações altamente cotadas na Bolsa de Valores. “São instituições voltadas para obter lucro com a educação. Fato bem diferente do que ocorre nos países desenvolvidos, onde não houve estímulo estatal para a existência de empresários donos de universidades”, pontua. Wilson é doutor e mestre em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo, bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, professor adjunto da Universidade Federal do ABC (UFABC).

Extra Classe – De que forma ocorreu o crescimento do ensino superior privado no Brasil a par­tir do Regime Militar?
Wilson Mesquita de Almeida
– O segundo capítulo do meu livro é dedicado à emergência, ao desen­volvimento e, agora, com a entrada dos fundos de investimento, à con­solidação do que designo como en­sino superior privado lucrativo. Ele emerge no bojo da Reforma Univer­sitária de 1968. Já a partir de 1970, passa a ter a hegemonia das va­gas na graduação brasileira. Esse setor existe em outros países, mas não obteve, tal como aqui no Bra­sil, estímulos e incentivos para se desenvolver e tornar-se dominante. É inexpressivo nos países capita­listas mais centrais, inclusive nos EUA. Nos EUA as universidades privadas são consideradas institui­ções públicas não estatais. Cobram mensalidades, mas o dinheiro ob­tido não vai para o bolso do dono como aqui no Brasil, mesmo porque não existe lá, com peso, a figura do proprietário particular. Por isso, ex­-alunos ricos dessas instituições fazem doações expressivas para as faculdades, pois eles sabem que o dinheiro será reinvestido na uni­versidade. Em nosso país, toda a sociedade brasileira que produz dá dinheiro para o setor privado lucra­tivo. Por meio de dois mecanismos o crescimento foi realizado: isen­ção de impostos e financiamento por meio do chamado, na época, “crédito educativo” que, a partir de 1999, tornou-se o Fies. Dentre outros participantes, o crédito educativo foi idealizado pelo ex-ministro do regime militar, Jarbas Passarinho. É preciso dizer que o problema não é ter universidade privada. O pro­blema é ter universidade privada com dono, com lógica pautada em extrair lucro vendendo ensino supe­rior de qualidade duvidosa, geral­mente para alunos de baixa renda. Eis a consequência socialmente perversa.

EC – Qual o tamanho da con­centração de capital na educa­ção superior no Brasil e quais fatores levam a isso?
Almeida – As universidades li­gadas aos grandes grupos educa­cionais – controlados pelos fundos de investimento – dispõem de po­der financeiro para comprar uni­versidades grandes, médias e pe­quenas, concentrando o mercado. Nada diferente do que ocorre no capitalismo brasileiro, geralmente cartelizado ou monopolizado. Re­sultado disso: a proporção cami­nha em direção a quase 80% das vagas da graduação brasileira sendo oriundas do setor privado, já que esse setor é formado em sua quase totalidade por instituições lucrativas, composto por uma mi­noria de instituições comunitárias e fundações privadas, com caráter público. Os fatores que levaram a tal concentração foram os incen­tivos já ditos e a fraca regulação até hoje existente. Isso possibilitou essa alta concentração favorável aos interesses dos empresários de ensino em detrimento de se pen­sar em alternativas mais frutíferas de desenvolver um sistema amplo, diversificado e com predominân­cia pública, caminho que os paí­ses social e economicamente mais avançados do mundo seguiram. Basta ver a questão do controle.

EC – Como funciona a fiscali­zação?
Almeida – Na prática, não hou­ve e não há controle efetivo por parte do MEC. As universidades lucrativas deitam e rolam. Fraudes nos sistemas de avaliação, não cumprimento de regras estabe­lecidas, superexploração de pro­fessores, cada vez mais com valor baixíssimo pago pela hora-aula, dentre inúmeras outras. Qualquer punição, se ocorrer, leva dois man­datos presidenciais! A Constituição brasileira de 1988 tentou regular esta situação, e instituiu a lei que condicionava a isenção de impos­tos àquelas universidades particu­lares que investissem o lucro obtido em sua própria infraestrutura, a fim de garantir a qualidade do ensino ofertado. Entretanto, a nova lei foi pouco efetiva por conta de uma sé­rie de fraudes e subterfúgios, onde as faculdades particulares simu­lavam falsos investimentos. Esta situação perdurou durante os anos 1990, e se agravou no governo do presidente Fernando Henrique Car­doso, quando na gestão do então ministro da Educação, Paulo Rena­to, houve um grande incentivo para a explosão de vagas nas universi­dades privadas. A grande expan­são provocou outro problema para estas instituições: o alto número de inadimplência e evasão dos alunos levou as empresas de ensino supe­rior privado a chegar a uma situa­ção financeira crítica no início dos anos 2000. Neste contexto, já no go­verno Lula, nasceu o Prouni. Com a intenção primeira de salvar estas empresas. Ou seja, da ditadura e passando por todos os governos democráticos até aqui, esse setor continua dando as cartas.

Wilson Mesquita de Almeida, pesquisador

Foto: divulgação/FDSBC

Wilson Mesquita de Almeida, pesquisador

Foto: divulgação/FDSBC

EC – Como o senhor avalia e quais são os incentivos ofereci­dos pelo governo brasileiro para o crescimento do ensino superior privado e seus reflexos na educa­ção nacional?
Almeida – Os incentivos con­tinuam na figura do Fundo de Fi­nanciamento do Ensino Superior (Fies) e, com o advento do Progra­ma Universidade para Todos (ProUni), em 2005, por meio de isenções fiscais para as instituições participantes do pro­grama, bem como outros programas de perdão de dívidas em troco de algumas poucas vagas. Estes últimos são menos discutidos e cobertos pela imprensa em geral e, no entanto, já passaram como pauta do Congresso Nacional. Sobretudo o Fies, é um escân­dalo. Transferência de dinheiro público para grandes grupos educacionais que hoje estão lucrando fácil, sem risco al­gum, com ações na Bolsa de Valores. Criado na ditadura como crédito educativo, ideia do ex-ministro Jar­bas Passarinho para contemplar, naquela época, a classe média que apoiava o regime, financian­do o ensino superior privado lu­crativo que então ganhava corpo, já deveria ser redirecionado para desenvolver o acesso e a perma­nência do estudante no ensino pú­blico há muito tempo, coisa que os governos democráticos ainda não fizeram. São recursos bilionários, obtidos com receita das loterias e do orçamento do MEC, que preci­sariam ser redirecionados para investimentos no acesso e na per­manência de jovens de baixa ren­da no ensino superior. Com essa mudança, não haveria mais bol­sistas parciais no ProUni que ain­da pagam parte da mensalidade com recursos do governo via Fies, enchendo o cofre dos empresários e fundos de investimentos. Diga­-se de passagem, a proposta origi­nal do ProUni feita pelo Fernando Haddad era somente ter bolsistas integrais. Ela foi derrubada pelo lobby dos empresários de ensino. No meu ponto de vista, esse dinhei­ro do Fies seria mais bem-utilizado no apoio aos cursinhos pré-vesti­bulares comunitários já existentes por todo o Brasil, sob coordena­ção das universidades públicas e privadas não lucrativas, os quais seriam como centros de aprendiza­gem e de cultura para estudantes de baixa renda Brasil afora, dado o nível precário de ensino da rede pública básica atual.

EC – Como?
Almeida – Eles poderiam tentar as vagas das universidades públi­cas, das faculdades tecnológicas, do ProUni restrito às privadas não lucrativas, escolas técnicas ou mes­mo prestar concursos públicos, fa­zer cursos supletivos, cursos de re­forço escolar, preparação para pri­meiro emprego, enfim, uma série de combinações possíveis. Além dis­so, parte dos recursos deveria ser investida na permanência desse aluno que chega, por mérito, ao en­sino superior. Teriam bolsa-perma­nência com valor competitivo, para que, tal como o estudante de classe média, possa se dedicar ao curso e, depois, dar um alto retorno para a sociedade, melhorando a rede pú­blica, gerando inovação, sendo um profissional bem-qualificado. É ne­cessário cuidar da permanência do bolsista do ProUni, dos cotistas, dos estudantes que entram por meio de bônus – caso das universidades es­taduais paulistas USP e Unicamp. Articular uma série de ações para que ele possa, de fato, fazer um cur­so superior consistente. Esse ponto, inclusive, foi ressaltado por muitos dos meus pesquisados, o fato de muitas universidades privadas par­ticipantes não tratarem o bolsista do ProUni como um verdadeiro alu­no, não levar em conta suas pecu­liaridades. No livro há diversos de­poimentos sobre isso.

"... essa lógica imediatista do lucro máximo começa a penetrar nas instituições públicas – estatais e não estatais, comunitárias e confessionais"

Imagem: reprodução

Imagem: reprodução

“… essa lógica imediatista do lucro máximo começa a penetrar nas instituições públicas – estatais e não estatais, comunitárias e confessionais”

EC – Até que ponto este mode­lo educacional que vê educação como produto e estudantes como clientes contamina todo um siste­ma educacional com sua lógica focada no lucro?
Almeida – É um processo per­verso! O impacto é brutal sobre todo o sistema de ensino. A princi­pal questão é a lógica subjacente que esse caráter puramente mer­cantil traz para os profissionais docentes, para os alunos, para o professor de licenciatura que é for­mado lá e, também, fato central, essa lógica imediatista do lucro máximo começa a penetrar nas instituições públicas – estatais e não estatais, comunitárias e con­fessionais. Por isso, enfatizo, co­meça a contaminar toda a estru­tura educacional. Outro elemento que favorece a propagação dessa lógica é, como sempre, os ditos “in­telectuais” que trazem os discur­sos de sustentação ideológica do setor privado no ensino superior. Como sempre, devidamente pa­gos e protegidos pelos empresá­rios do ensino para propagandear e passar um verniz “científico” em teses que não se sustentam. São os tais “consultores e gestores”, outra face desse setor privado que também abordo no livro. Como resultado, parâmetros totalmen­te alheios à educação, ao saber, ao desenvolvimento, à inovação, à criatividade, passam a predo­minar. Vejamos. Esse sistema pri­vado lucrativo quer obter retorno rápido. Hoje, rapidíssimo, na ve­locidade alucinante das cotações da Bolsa de Valores. Ao contrário da fala de um investidor presente no livro, para mim educação não deve ser tratada como um produ­to qualquer, como se vendesse “tomate” em um supermercado, segundo ele. Esse pessoal só está pensando na valorização do capi­tal e pouco se lixando para o país, é a triste realidade. Por isso que a sociedade e o governo federal têm que, o quanto antes, acabar com essa festa de dinheiro fácil, com risco zero, para “falsos empreen­dedores”. Eles adoram “correr ris­co” com dinheiro do povo brasilei­ro. Assim é legal ser empreende­dor não? Se vendo educação como um produto qualquer, para que eu possa maximizar meu lucro, tenho, inevitavelmente, de reduzir custos. Quais são esses custos que são reduzidos pelos empresários de ensino? Professor bem-qualifica­do, com experiência em pesquisa, ensino e extensão. Se pretendo ganhar dinheiro com venda de educação superior, não posso fa­zer um vestibular decente, pois, se o fizer, estarei afastando grande parte dos alunos que pagarão as mensalidades. Assim, há redução de investimentos justamente no essencial para a qualidade de en­sino. Por isso os países mais avan­çados fogem disso. Nesses países, o ensino superior ou é público ou é público não estatal em sua maio­ria. Não é privado lucrativo, com dono de universidade ganhando muito dinheiro à custa dos que pagam muitos impostos no Brasil, principalmente a classe média e a parte mais pobre e numerosa. Há uma contradição insolúvel entre combinar lucro e educação supe­rior no Brasil. A lógica das ações é de resultado trimestral. Essa lógi­ca econômica não se dá bem com qualidade de ensino. É como água com óleo. Não dá para misturar.

EC – Por quê?
Almeida – Educação não gera resultado no curtíssimo prazo. Ain­da mais em nosso país, com desi­gualdades seculares.Logo, já con­taminou e ainda contamina nosso sistema educacional. Exemplos concretos: vejam os efeitos peda­gógicos e as consequências para o trabalho docente. Com o domí­nio dos fundos de investimento e abertura de ações na Bolsa de Va­lores, há um processo paulatino de atração de novos investidores que exigem, cada vez mais, resultados financeiros acima da média e no curto prazo. A dinâmica oscilante das ações negociadas vira o pa­râmetro central. Baixou o preço da ação, pulo fora, menos valorização da empresa-universidade. O valu­ation, valor da empresa, é a dire­triz. Não há milagre a fazer, pois os custos e despesas precisam ser equacionados para possibilitar a redução de preços do produto que se vende, visando à “maximiza­ção do valor ao acionista”, como prega a teoria econômica que em­basa o mercado de ações. Os efei­tos são claros: quem dirige agora é profissional de mercado, já que não importa o produto à venda, a lógica mercantil é a mesma; a remuneração desses profissionais é variável, ou seja, quanto menos despesas e mais lucros atingirem, maiores bônus e salários obtidos, trazendo mais pressão para os profissionais docentes que ficam; simplificação, padronização e pasteurização dos conteúdos di­dáticos, que passam a ser os mes­mos para todas as unidades – o mesmo “livro” é usado para todos os cursos, de forma indistinta, pois vale a pena comprar em grande escala firmando parcerias com editoras e gráficas.

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