Foto: Igor Sperotto
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Vencedor do Prêmio Nobel da Paz de 1980 por ter atuado na resistência pacífica às ditaduras na América Latina, o ativista argentino Adolfo Pérez Esquivel esteve no Brasil para denunciar o que considera um “golpe de Estado brando” contra Dilma Rousseff. O objetivo, acredita, é restabelecer as políticas neoliberais que haviam sido interrompidas pelos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) desde a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002. Esquivel esteve com a presidente em Brasília – “a vi muito serena e disposta à luta” – e no Senado Federal, onde seu curto discurso provocou constrangimento na oposição, que solicitou a retirada oficial da fala dos registros da Casa. “É censura, o que demonstra que eles têm medo da verdade”, bradou, em Porto Alegre, onde durante três dias participou de debates sobre direitos humanos, visitou assentamentos agrícolas e discursou do alto de um caminhão no Dia do Trabalhador, no Parque da Redenção. O Extra Classe esteve com Esquivel em duas oportunidades, em uma conversa rápida antes de sua fala no 1º de maio e, mais tarde, no hotel onde estava hospedado, quando pode aprofundar sua conclusão: é preciso criar um novo pacto social na humanidade, que amplie as ferramentas de participação da sociedade na política, estimule acordos de desenvolvimento regionais e estabeleça uma política de diálogo e respeito entre seres humanos e “a mãe terra”.
Extra Classe – O senhor tem dito que o processo de impeachment no Brasil se assemelha ao que foi feito em Honduras, em 2009, com Manuel Zelaya, e em 2012, no Paraguai, com Fernando Lugo. O que o leva a esta conclusão?
Adolfo Pérez Esquivel – Vimos que na América Latina já não é necessário colocar o exército na rua para dar um golpe de Estado, é o que chamo de um golpe brando. Se trata de gerar um conflito e depois tirar do governo mandatários que não estão de acordo com o modelo neoliberal. Em Honduras e no Paraguai foi utilizada a mesma metodologia que estão utilizando no Brasil: criar desprestígio, desconfiança, fazer ataques – contando com a cumplicidade parlamentar, com os juízes. Além disso, houve a salvaguarda dos grandes meios de comunicação, a imprensa, as grandes corporações e aí é onde avançam. Nunca pensamos que o objetivo seguinte seria o Brasil. É assombroso.
EC – Por que surpreende que o Brasil seja o alvo do momento?
Esquivel – Porque é um país com uma grande força social e institucional. E porque Dilma não pode ser acusada de corrupta. Levantaram como problema um ato que teve como base o que haviam feito os governos que a antecederam (as pedaladas fiscais, expediente utilizado frequentemente no Poder Executivo). Foi uma forma de gerar desconfiança no governo e então começou um ataque frontal. Isto se baseia também na crise econômica internacional que repercute no governo Dilma, mas foi necessária a cumplicidade do poder judicial, político, empresarial e, logicamente, dos meios de comunicação para que o processo avançasse.
EC – Como vê a hipótese de convocação de eleições diretas?
Esquivel – A presidente Dilma vai ter que lutar pelo seu direito a governar, que é o direito do povo, antes de falar de eleições antecipadas. Senão, serviria para justificar esse golpe. Neste momento é preciso lutar pelo direito constitucional e pela liberdade da população. E ela está muito bem, serena e disposta à luta.
EC – Por ocorrer no Brasil, um país de proporções continentais, esse golpe brando pode ter uma transcendência que os casos hondurenho e paraguaio não tiveram?
Esquivel – Já tem essa transcendência. O Brasil é um país líder, com uma grande população e desenvolvimento. Claro que vai ter impacto no resto do continente e até em nível mundial porque coloca em evidência que o modelo neoliberal quer impor a todo o custo suas políticas.
EC – E o impacto interno, qual será?
Esquivel – Vai mudar a política do país, já estão anunciando privatizações, perda de benefícios sociais e restrições à liberdade do cidadão. Por isso é importante que o povo brasileiro – e também o povo latino- -americano – se organize para uma resistência dentro da ordem, porque está em perigo a democracia, que vai ser mais formal que real.
EC – Pode haver recrudescimento do autoritarismo?
Esquivel – Sim.
EC – A direita está retornando ao poder na América Latina, não apenas através de golpes brandos, mas também via eleições diretas – como na Argentina ou no Peru, onde é possível a vitória da filha de Fujimori. Como vê esse panorama?
Esquivel – É complexo, muito difícil. Esse retorno da direita está se dando praticamente em todo o continente e é preocupante porque muita gente que não tem análise política profunda vota naqueles que melhor se vendem através dos meios de comunicação. Por exemplo, uma das bandeiras do (presidente argentino Mauricio) Macri era pobreza zero, mas em quatro meses de governo ele gerou 1,4 milhão de pobres a mais no país, segundo o Observatório Social da Universidade Católica Argentina. Isso além dos que já havia! Há mais desemprego, com 100 mil trabalhadores postos na rua. Macri privilegiou as grandes empresas, as mineradoras e os latifundiários, permitindo que ganhem milhões de dólares a mais que antes eram investidos em obras sociais. Ele também reduziu o orçamento das universidades, da educação. O neoliberalismo fala da política da partilha, defende que os ricos ganhem mais para depois compartilhar com os pobres. Mas essa é uma política de dependência, fome e marginalidade, e os povos, hoje, reclamam direito ao trabalho, à saúde, à educação, a uma vida digna. E, à diferença de outra época, hoje os pobres têm consciência de classe e de política.
EC – Mas essa consciência não está sendo suficiente, pelo jeito…
Esquivel – Cada vez creio menos nessas democracias representativas em que votamos e depois ficamos em um estado de indefinição por quatro ou seis anos. Em uma democracia participativa, poderiam ser propostos plebiscitos e consultas populares para cassar mandatos que não correspondam aos desígnios do povo. Não é certo que o povo governa através de seus representantes, porque os representantes fazem o que querem (no poder) e não o que devem.
EC – Aqui no Brasil a esquerda criticou políticas de Dilma Rousseff que iam na direção contrária do proposto originalmente.
Esquivel – Dilma se encontrou em uma situação mundial de crise profunda, não somente econômica, mas sociológica, como na Europa e nos Estados Unidos. Há um aumento de conflitos e guerras no Oriente Médio. Olhando para isso se pode ver as dificuldades: não somos independentes (na América Latina), os preços (das commodities) no mercado internacional quem coloca são os países centrais. Foi um erro não ter articulado políticas de integração latino-americana… Em algum momento, (o ex-presidente da Venezuela) Hugo Chávez propôs a fundação do Banco do Sul, mas ficou no papel. Esta tentativa de destituição de Dilma também é consequência deste problema, se tivéssemos uma base própria econômica, soberania econômica e política poderia ser diferente.
EC – Mas houve iniciativas para a criação de alternativas, o Banco dos Brics é o exemplo maior…
Esquivel – Acho que não, essa é uma das disciplinas pendentes, como fortalecer o Mercosul, a Unasul (União de Nações Sul-americanas), a Celac (Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos) como instâncias regionais. O continente não funciona de maneira uniforme, cada país tem suas maneiras, é difícil. Inclusive, caso se concretize o golpe no Brasil, vamos ver qual será a reação dessas instituições, porque existe uma norma de não reconhecimento a governos que surjam de um golpe de Estado.
Foto: Igor Sperotto
EC – A esquerda tem a sua parcela de responsabilidade nessa derrocada? Esquivel – Sim, o kirchnerismo cometeu muitos erros, o governo atual se encontra praticamente sem recursos e precisa aumentar a dívida externa. Mas a primeira coisa que fez foi pagar a dívida externa aos fundos abutres. Quer dizer, privilegia o capital financeiro sobre a vida do povo. Temos erros, mas é preciso avaliar o que se fez em benefício do povo, e os erros é preciso corrigir. Ninguém é dono da verdade.
EC – No Brasil, que erros podem ter levado à capitulação do governo do PT? Esquivel – O PT chega ao poder por meio de alianças, não só com a esquerda, mas com setores que têm um interesse político, são alianças políticas. Creio que as esquerdas trabalharam muito sobre a conjuntura e talvez tenha faltado criatividade em projetar a médio e longo prazos, a buscar novas alianças.
EC – Vê alguma semelhança entre este momento e a ascensão das ditaduras militares no continente nos anos 1960, 1970 e 1980?
Esquivel – São momentos históricos distintos, mas há objetivos semelhantes. Naquele momento, os Estados Unidos vinham pautando a polarização Leste-Oeste, que só termina com a queda do Muro de Berlim e a desintegração da União Soviética. Havia um eixo central, um inimigo em comum, que era o comunismo, representado pela União Soviética, os países do Leste. Os Estados Unidos utilizaram as forças armadas latino-americanas para impor as políticas neoliberais e isto teve um alto custo. Mais recentemente, governos progressistas de esquerda começaram a assentar bases de independência – Venezuela, Brasil, Argentina, Equador, Uruguai – e a articular certos acordos regionais, mas sem incluir outros países como Peru, Colômbia ou a América Central. Frente a isso, os Estados Unidos começam a fortalecer suas bases militares em todo o continente. Em Honduras está a base militar norte- -americana em Palmarola. Manuel Zelaya não era um homem de esquerda, era um empresário. Mas quando viu a situação do país, começou a ter propostas de modificação do sistema.
EC – Apesar disso, não usaram o aparato militar para se contrapor à ascensão da esquerda.
Esquivel – Tanto com Zelaya como com Fernando Lugo foram aplicadas políticas experimentais, experiências-piloto desses golpes de Estado brandos, porque as Forças Armadas estavam tão desprestigiadas que já não era possível utilizá-las para derrocar governos. Além do mais, não havia mais a hipótese do conflito Leste-Oeste. O que iria justificar? E com essa política (de golpes brandos) foram avançando, conseguiram destituir governos, a metodologia deu resultados.
EC – Essa organização das for- ças conservadoras tem suas consequências, mas não é algo formal…
Esquivel – Eu creio que sim, são projetos bem organizados e pensados. Não está em jogo gostar ou não de Dilma, mas uma política estruturada para privatizar as empresas do Estado. O que mais me preocupa dentro dessas políticas é onde ficam os setores menos favorecidos da sociedade – favelados, camponeses, povos indígenas. Se a democracia não é para todos, não tem futuro, é preciso rever muito os conteúdos.
EC – É uma preocupação sua em geral, não só com o Brasil?
Esquivel – Tenho pensado que, assim como Rousseau propôs no século 18 um contrato social que fez nascer as democracias em que vivemos, hoje precisamos propor um novo pacto em nível de humanidade. O mundo mudou, não podemos seguir amarrados a ideias que a própria vida atual supera.
EC – Quais seriam as bases desse novo contrato social? Esquivel – A redefinição do sistema, que o povo não delegue todo o poder a quem os representa, mas que seja protagonista, podendo revogar os mandatos daqueles que não cumprem com o que se decidiu nas eleições. Esse seria um eixo. O outro, a articulação e a proposta de integração regional, porque o mundo vai se consolidando em blocos. Vemos isso na Ásia, Europa e até nos Estados Unidos que buscam aliados permanentemente. Afinal, precisam se proteger uns aos outros frente aos embates. O importante seria desenvolver políticas regionais frente a desafios internacionais, porque um país sozinho não pode sair da crise.
EC – Participação ativa da população na política e associação econômica? Esquivel – Também é preciso ter muito clara a cultura do diálogo e dos bens e recursos naturais, porque os modelos neoliberais levam à destruição. É preciso restabelecer o equilíbrio entre as necessidades do ser humano e a mãe terra. O outro eixo desse novo contrato social seria a cultura de paz, do respeito e da convivência na diversidade, não na uniformidade. Se não soubermos conviver, terminaremos nos autodestruindo. O resultado é a própria forma como trabalhamos.
EC – Como assim?
Esquivel – Acabo de chegar do México e lá a violência contra mulheres é aterradora, há mais de 1,5 mil feminicídios em Cuidad Juárez. Mas como reverter essa situação se temos a violência na mente e no coração? Não podemos mudar isso porque estamos colhendo o que plantamos. Então é preciso começar a pensar um novo pacto social.
EC – E há alguma experiência que possa servir de modelo?
Esquivel – Sim, há! Eu visitei um assentamento agrícola que fica a 45 quilômetros de Porto Alegre, em Nova Santa Rita, que é muito interessante: tem escolas, sistemas cooperativos, moradia. Lá os camponeses já estão promovendo uma mudança social profunda em todas as ordens. Isso é positivo para a sociedade, quer dizer, são novos paradigmas sociais, estão construindo novos paradigmas. Já estão fazendo, em pequena escala, de vida comunitária, de economia solidária, de propostas educativas. Nós plantamos aqui.