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O déficit não existe

Por Flávia Bemfica / Publicado em 10 de novembro de 2016

O déficit não existe

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Auditora fiscal aposentada da Receita Federal, graduada em Administração e em Ciências Contábeis com MBA em Administração Tributária, Maria Lucia Fattorelli é atualmente uma referência nas discussões sobre a crise financeira no Brasil, a relação da dívida pública com a economia e as projeções que podem ser feitas a partir das medidas que vêm sendo ventiladas pelo governo de Michel Temer (PMDB). Desde o ano 2000, Fatorelli é a coordenadora nacional do movimento Auditoria Cidadã da Dívida, que tem por objetivo divulgar informações e promover ações a respeito do endividamento público brasileiro, da necessidade de transparência no orçamento fiscal e da realização de uma auditoria completa nas dívidas da União, estados e municípios. Com uma série de publicações sobre os temas, Fattorelli vem de uma trajetória de engajamento de questionamento sobre o endividamento público, no Brasil e em outros países. Entre 2003 e 2005, ela presidiu o Unafisco Sindical – Sindicato dos Auditores Fiscais da Receita Federal. De 2007 a 2008, integrou a Comissão de Auditoria Integral da Dívida Pública do Equador (CAIC). Entre 2009 e 2010 foi assessora técnica da CPI da Dívida Pública na Câmara dos Deputados. Em 2014 concorreu, pelo PSol do Distrito Federal, a uma vaga na Câmara dos Deputados. E, em 2015, integrou, a convite da presidente do parlamento grego, o Comitê da Verdade sobre a Dívida Pública da Grécia, instituído para realizar uma auditoria da dívida grega. Confira abaixo os principais trechos da entrevista que ela concedeu ao Extra Classe.

Extra Classe – O país vive um momento em que são anunciadas diferentes medidas (PEC dos gastos, reforma da Previdência, reforma trabalhista, reforma do ensino) abrigadas sob a justificativa de que há a necessidade de um ajuste. Este ajuste é necessário? Ele corrigirá distorções hoje existentes?
Maria Lucia Fattorelli – O ajuste que o governo propõe é cortar mais ainda nos gastos sociais para que sobre mais dinheiro para pagar esta dívida pública, que não resistiria a uma auditoria. A sociedade brasileira está tendo a opção de seguir concordando com tudo isso, de seguir dizendo que em um dos países mais ricos do planeta (nossa realidade é de abundância, mas aceitamos viver em um cenário de escassez) não há dinheiro para nada e existe este descaso com os direitos humanos e sociais. São milhões de brasileiros empurrados para a exclusão e a miséria. É um escândalo, porque, repito, somos um dos países mais ricos do mundo. E a responsabilidade é de todos. Quem se omite, quem não pratica a cidadania, quem não se importa em conhecer as questões do país está se omitindo, e também é responsável.

EC – A senhora acredita que o governo conseguirá implementar as mudanças?
Fattorelli – Não há mobilização social suficiente para barrar. Só mudaremos de rumo com uma grande mobilização social consciente. Caso contrário, desde sempre, este país é um país dominado por interesses financeiros, que financiam todas as campanhas políticas. Todas. Ou através dos próprios bancos, ou através de grandes empresas. Isto faz com que todos os níveis do setor público fiquem subservientes a estes interesses. Enquanto isto não mudar, enquanto o povo continuar acomodado, seguirá acontecendo. Se quem está pagando a conta não se importa, não se mobiliza, quem está ganhando é que vai mudar a situação? É evidente que todo mundo se preocupa com a gestão do dinheiro público. Todo mundo quer uma boa gestão. Agora, a proposta de corte, qual é? O que vai cortar? Vai cortar onde há abuso ou vai cortar direitos sociais? Pelo que estamos vendo, a proposta é cortar direitos sociais e não os abusos. O discurso de controle do gasto público acaba ganhando a opinião pública, porque é lógico que ninguém é a favor de descontrole do gasto. Mas é necessário responder onde serão os cortes. A população é a favor de cortes nos investimentos da educação? É claro que é contra. Na saúde? Claro que todo mundo é contra. É necessário mostrar onde é gasto o nosso dinheiro. Porque não é possível que continuemos pagando dívidas decorrentes de fraudes, de ilegalidades e de ilegitimidades, às custas da vida das pessoas.

EC –  O argumento do atual governo é de que o ajuste é necessário para fazer arrefecer a crise econômica.
Fattorelli – A crise no Brasil, o que provocou? Temos safras recordes todos os anos, não houve nenhuma peste, nenhuma calamidade para impactar a economia do país. Como é que fica esta crise? Ela é uma crise provocada, relacionada ao ciclo do dinheiro virtual. As atuais medidas: quem tinha alguma dúvida sobre sua motivação, quando lê a exposição de motivos do Projeto de Lei Complementar (PLP) 257 e da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241 não tem mais como ter dúvidas, porque está escrito com todas as letras. Querem empurrar também a independência do Banco Central (BC), que nada mais é do que a privatização do BC. Por quê? Porque aí fica mais fácil, há menos controle ainda. Com a independência, o Banco Central  passa a funcionar como se fosse privado. Meia dúzia de pessoas assume e arrebenta com o país. Observe o lucro dos bancos. Eles não estão tendo prejuízos. A indústria caiu, o comércio caiu, o desemprego é recorde, o PIB do país encolheu. E o lucro dos bancos? Foi maior do que o de 2014. Foi mais do que isso: eles fizeram uma provisão de R$ 133 bilhões. É evidente que está havendo uma transferência de recursos para o setor. Então, a sociedade tem a opção de continuar batendo palmas para isso ou deixar as diferenças de lado e entender onde está o nosso dinheiro. Nossa tarefa é fazer a grande maioria que somos enxergar isso. Enquanto nos dividimos, eles morrem de rir, nadam de braçada e multiplicam seus lucros a cada ano.

EC – As manifestações de rua, contudo, arrefeceram…
Fattorelli – Muitas vezes as mobilizações acontecem por interesses particulares de uma categoria ou de um setor. Vimos isso nas manifestações. As bandeiras eram ‘Fora Dilma’ e ‘Fica Dilma’, ‘Fora Temer’ e ‘Fica Temer’. Eu pergunto aos milhões que estavam no ‘Fora Dilma’. Dilma saiu. O que mudou? Enquanto estivermos acreditando em salvador da pátria e quem chegar ao poder chegar financiado, é uma ilusão. Enquanto o povo não acordar, a crise só vai piorar, seja lá o governo que assumir. Porque, se não enfrentar o problema, não haverá mudança. E os governantes só vão fazer isso se houver uma grande mobilização social consciente. Não é com massa de manobra não. É preciso juntar todo mundo e enxergar o país. Com uma auditoria ampla da dívida se colocaria em xeque quem é o inimigo.

O déficit não existe

Foto: Arquivo pessoal/divulgação

Não há mobilização social suficiente para barrar. Só mudaremos de rumo com uma grande mobilização social consciente

Foto: Arquivo pessoal/divulgação

EC – A Auditoria Cidadã da Dívida, que a senhora coordena, apontou uma diferença nas contas do governo referentes ao ano passado. Por ela, teriam sobrado R$ 480 bilhões. É isso?
Fattorelli – Sim, sobraram R$ 480 bilhões. O déficit, na verdade, não existe, ele está no pagamento dos juros abusivos. Havia dinheiro em caixa. Suspeitamos que este montante tenha ido para o swap cambial e outras coisas que não possuem nem rubrica para especificar. E aí colocam este quadro de crise e de cortes, corte em questões de servidores, reforma da Previdência, desmonte da Previdência, fica todo mundo louco, e ninguém lembra que existe meio trilhão lá e precisamos saber para onde foi. O Tribunal de Contas da União (TCU) admitiu que houve emissão excessiva de títulos. A Controladoria Geral da União (CGU) informou que quem deveria responder era o Tesouro. E o Tesouro pediu prorrogação de prazo alegando que o questionamento era genérico.

EC – A Auditoria Cidadã da Dívida também aponta que grande parte do que tem sido registrado como amortização da dívida na verdade corresponde a pagamento de juros com emissão de novos títulos. Como isto ocorre na prática?
Fattorelli – É como se fosse uma atualização monetária paralela da dívida. O montante da atualização é abatido do valor dos juros. Então o que sobra de juros é só o que ultrapassa essa atualização, que, registre-se, é feita pelo IGPI, que é o maior índice de ajuste. Então só a parcelazinha que sobra da atualização é que é informada como juros. E toda a parcela da atualização de fato é informada como se fosse amortização. Atualizou, é como se aquilo virasse dívida. Sendo que não existe fundamento para você atualizar a dívida. A remuneração da dívida são juros.

EC – Isso é feito mensalmente? Tanto na dívida da União como na dos estados?
Fattorelli – Sim, mensalmente, na União e nos estados.

EC – Então a dívida, nestes moldes, não terminaria nunca?
Fattorelli – Exatamente.

EC – A senhora poderia explicar melhor como a dívida pública no Brasil se multiplica?
Fattorelli – Hoje, por exemplo, há geração de dívida totalmente sem contrapartida nas operações de mercado aberto e no swap cambial. Mecanismos que o Banco Central utiliza. Abordamos isto em um artigo intitulado O Banco Central está suicidando o Brasil. Há todo um histórico da dívida que atualmente está abrindo espaço para novos esquemas, sofisticados, com utilização de empresas paralelas, sociedades anônimas, em um processo de geração de dívidas para estados e municípios. Há cessão de créditos de dívida ativa a terceiros, a emissão de papéis financeiros com garantia de estados e municípios. Esses papéis contam com a garantia do poder público e são remunerados, ou seja, têm a mesma natureza de títulos da dívida pública. Na prática, o crédito referente à dívida ativa se transforma em obrigação refletida em dívida pública, com ganhos para empresas e bancos que fazem a intermediação. Em Belo Horizonte, por exemplo, fizemos uma grande investigação. Lá, foi criada a PBH Ativos S.A., que emitiu debêntures oferecendo juros equivalentes ao IPCA mais 11%. O BTG Pactual, que intermediou a operação, comprou todas as debêntures, com desconto. Essas debêntures têm garantia da prefeitura. Elas já nascem como dívida pública. E a Constituição proíbe estados e municípios de emitirem títulos. É uma operação escandalosa. Quem sai ganhando com tudo isso? Os bancos, única e exclusivamente. No estado de Minas foi implantada operação semelhante, com a Minas Gerais Participações (MGi). No estado de São Paulo foi criada a Companhia Paulista de Securitização (CPSEC). Suas operações têm sido coordenadas pelo Banco Fator.

EC – Há um levantamento de quantos estados e prefeituras já fazem isso?
Fattorelli – Só sabemos que a cada dia surgem mais. É algo que se espalha como praga. Há empresas de consultoria ganhando muito dinheiro com isso. E, se não conseguirmos barrar, isso vai arrebentar com as finanças, vai acabar com o setor público no Brasil. Na minha opinião, é caso de polícia. Fazem autorizações de Câmaras de Vereadores, no caso de prefeituras, e de Assembleias Legislativas, no caso dos governos. No estado do Rio Grande do Sul foi feito. Na prefeitura de Porto Alegre também. Encaminhamos inclusive representação ao Ministério Público sobre esta questão. O caso mais antigo de que temos notícia no Brasil data de 2009. É o do estado de São Paulo. E tudo é feito na surdina.

EC – Há um descontrole?
Fattorelli – São emissões que já nascem como dívida, são obrigações financeiras. Depois o discurso é a gastança, que tem que cortar no atendimento à saúde, nos direitos da Previdência. Que gastança? Por isso que falamos que a dívida é um esquema. É um capitalismo financeirizado. Dívida é uma coisa que todo mundo tem. E todos fazem questão de pagar. Esse capitalismo financeirizado, operado pelos bancos, foi muito esperto de escolher a dívida. Porque, quando fala em dívida, todo mundo pensa: tem que pagar. Só que é preciso perguntar que dívida é essa. Por isso defendemos uma auditoria generalizada e não puramente contábil, burocrática. Queremos uma auditoria integral, que abarque toda essa conjuntura, essa correlação com o modelo econômico.

EC – No caso dos estados, a renegociação das dívidas feita recentemente com o governo do presidente Michel Temer (PMDB) altera a situação ou vai aumentar os montantes?
Fattorelli – Mais uma vez, ao invés de haver um enfrentamento do problema, ele foi adiado, e de forma onerosa. O que houve foi simplesmente uma suspensão temporária do pagamento. É claro que vão ser cobrados os juros, os encargos, e por isso é oneroso. Não é uma carência gratuita. É uma suspensão que vai tornar mais oneroso ainda o pagamento. A solução seria verificar porque os estados, apesar de terem cumprido os acordos rigorosamente desde o final da década de 1990 e pago mais de duas vezes o montante refinanciado, chegaram nesta condição atual.  Apesar de terem entregue o seu patrimônio, inclusive os bancos estaduais, que, com raríssimas exceções, foram privatizados (se não me engano apenas três em todo o Brasil não foram). Então, por que devem ainda mais de três vezes o valor refinanciado? Fica evidente que os encargos financeiros cobrados pela União são elevadíssimos. Que, lá na origem, essas dívidas já foram impactadas pelo passivo dos bancos. Todos os bancos, mesmo os que não foram privatizados, tiveram seus passivos transferidos como dívida pública dos estados. Então, por exemplo, no RS, o Banrisul não foi privatizado. Mas uma parte do passivo do Banrisul virou dívida pública. No estado do Paraná a dívida era R$ 473 milhões. E o valor refinanciado foi de R$ 5,6 bilhões. Por causa do passivo do Banestado. Isso tudo virou dívida. No caso de Minas Gerais, um terço do valor refinanciado era passivo dos bancos privatizados. O que chamamos de enfrentar o problema é fazer uma auditoria integral. É voltar lá na origem e ver o que é mesmo dívida. O que o Estado recebeu e o que é obrigado a pagar. Quais os mecanismos financeiros. O que é passivo de banco que foi empurrado para a dívida pública. E o que são encargos abusivos impostos. Refazer. Ou vamos ficar perpetuando o erro, empurrando para a frente e comprometendo todas as gerações.

EC – Na negociação de agora os estados precisam também se adequar ao corte de gastos estabelecido pela PEC 241 e suspender ações que tenham movido junto ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Fattorelli – Sim, suspende todas as ações e o Estado precisa abrir mão de qualquer discussão judicial. Olha o absurdo. Por que precisa abrir mão de discussões judiciais? Porque sabem que, se forem a fundo, vão encontrar inúmeras ilegalidades, inconstitucionalidades e abusos, que terão que ser revistos. Por um lado, proíbe ações judiciais. Por outro, obriga ao congelamento dos gastos reais. Cabe à cidadania se organizar e exigir a revisão disto. Claro que os governadores estão preocupados é com os seus mandatos. Por exemplo: suspendem o pagamento das parcelas durante seis meses. Resultado: fazem bonito perante a sociedade e têm apoio para as eleições municipais.

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