Foto: Igor Sperotto
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Em seu novo livro A formação de jovens violentos – Estudo sobre a etiologia da violência extrema (Appris Editora, 285 páginas), o sociólogo Marcos Rolim busca respostas para a origem da violência praticada por jovens que estão apartados da sociedade por conta dos crimes extremos que cometeram. A pesquisa contou com entrevistas em profundidade com jovens detentos e em medidas socioeducativas e aponta para questões preocupantes. A principal delas é que o estado virou o grande organizador do crime sem se dar conta do papel que exerce. O principal motivo passa pela evasão escolar precoce, que deixa esses jovens vulneráveis ao assédio do tráfico em suas comunidades, onde são treinados e socializados. Depois, esses jovens vão parar na Fase, para cumprir medidas socioeducativas, ou nos presídios, que acabam sendo a graduação e pós-graduação no crime, pois é lá que se organizam as facções criminosas que mandam nas ruas. A chave do problema estaria na educação, mas a realidade que se apresenta é de uma rede pública incapaz de manter esse jovem na escola por mais tempo do que os anos iniciais. Rolim é jornalista, sociólogo, professor no Centro Universitário Metodista e consultor em segurança pública e direitos humanos.
Extra Classe – Você está lançando um livro sobre a origem do jovem que pratica atos de violência extrema. Como chegou ao livro e ao tema?
Marcos Rolim – O tema da violência é um tema que me acompanha há décadas. Trata-se de um assunto que eu estudo, leio, acompanho, trabalho. Principalmente na prevenção à violência, tema a que me dedico há bastante tempo. Mas, nessa trajetória de estudar o assunto e de pesquisar sobre esses temas me deparei com um problema específico que me chamou muito a atenção dentre tantos outros. Trata-se de um problema básico, um tipo especial de violência, que é a violência extrema, aquela praticada numa circunstância sem qualquer motivação direta, como, por exemplo, sem a provocação por parte da vítima. O sujeito vai praticar um assalto, a vítima não reage e este sujeito executa a vítima ainda assim. Ou seja, existem outras situações de violência que se consegue entender o que aconteceu, mas nesses casos parece gratuito, porém, aparentemente existe uma predisposição. Esse tema não é objeto de estudo na criminologia. Não se estuda esse recorte. Muitas vezes é tratado como algo ligado a uma maldade preexistente e acaba caindo numa simplificação e, no maniqueísmo, até por uma dificuldade de compreensão. E eu queria compreender isso. Então, o mote da pesquisa é esse, entender a violência extrema, que é um recorte pouco ou não estudado.
EC – O objeto desse estudo são menores de idade ou jovens de uma maneira geral?
Rolim – A princípio, o recorte são jovens, tanto cumprindo medida socioeducativa, como do sistema prisional adulto.
EC – São universos que não trocam muita informação nem cruzam dados, inclusive.
Rolim – Sim, esses arquivos não dialogam e esse é um dos grandes problemas quando se pretende traçar políticas de segurança e prevenção.
EC – Mas, voltando para a sua pesquisa…
Rolim – Uns vinte anos atrás fiquei muito impressionado com uma linha de pesquisa de um jornalista que apresentava o trabalho de um criminólogo norte-americano chamado Lonnie Athens. Esse cara estudou presos no corredor da morte, condenados e aguardando a execução de suas sentenças. Ele, portanto, entrevista dezenas de prisioneiros sobre suas histórias de vida. Foram entrevistas longas e em profundidade. O mesmo método que eu usei na minha com os jovens da Fase, todos eles envolvidos com atos de extrema violência. Ao fazer essas entrevistas ele identifica no grupo de condenados à morte um certo padrão de brutalização da infância. Foram criminosos que, quando crianças e adolescentes, passaram por uma sucessão de cenas de violência, de violentização, que é o nome da teoria dele.
EC – E o que é essa violentização?
Rolim – Só para deixar bem claro, isso é de onde eu parti. Minha pesquisa vai confirmar em parte isso, mas vai apresentar coisas diferentes. Para Lonnie Athens, essas pessoas que são especialmente capazes de praticar cenas de violência extrema, absurdas, são resultado de uma experiência social que começa na infância, em geral na figura do pai, padrasto, que espanca, que humilha e que depois vai ensinando esse jovem a ser ele próprio violento. Coisas como: tem de bater primeiro antes que te batam. Quando o garoto briga com alguém e ele bate é elogiado. Ele vai percebendo que na medida em que ele for violento, mais respeito ele adquire e mais valorização ele terá naquele núcleo.
Foto: Igor Sperotto
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EC – Com a ausência da figura masculina paterna, ela é substituída por outra figura na comunidade?Rolim – Esse é o tema que a pesquisa vai mostrar depois. O que o cruzamento estatístico permite afirmar é o seguinte: há uma dinâmica perversa em curso nas cidades brasileiras, que envolve evasão escolar muito precoce. Esses guris saem muito jovens da escola. Pobres todos. Fracassam na escola, que não consegue atraí-los e permanecer com eles. Ou seja, não cria vínculos. E, ao ficarem em sua comunidade sem trabalho e sem escola, semialfabetizados, eles se aproximam dos grupos armados que recrutam esses jovens, primeiro para serviços básicos do tráfico, em que são socializados nos valores da violência, quando alguém lhes dá uma arma.
EC – O papel socializador da escola acaba sendo substituído pelo crime?
Rolim – Sim. Esse papel de socialização é feito por outra escola, uma escola do crime. Ali, onde a escola está excluindo, o crime acolhe. Essa é a dinâmica. Essa relação chamada treinamento violento responde por mais de 54% da disposição violenta dos jovens. Mais da metade do problema está aí. Existem outros fatores associados, mas o central é esse. Se a pesquisa estiver correta, óbvio que ela precisa ser testada com um número maior de jovens em outras cidades brasileiras. Mas a relação estatística é muito forte e significativa. Tenho a impressão de que encontramos uma coisa que é muito expressiva como fenômeno social. Se confirmou algo que até agora não se deu a devida importância. Se a pesquisa estiver correta, é impossível falar sobre a redução da violência no Brasil sem abordar o tema da evasão escolar. Esse passa a ser um tema central. A pesquisa indica claramente isso. Não é nem uma opinião minha e nem é o que eu achava. Eu imaginava, inspirado no Athens, que o problema central estava na violência contra a criança. Minha hipótese era a de que o cara que está matando na rua é o cara que apanhou em casa. E essa tese não foi confirmada. Então, a pesquisa confirma uma parte da teoria do Athens, que é a parte do treinamento violento. É um dos estágios dessa violentização, mas não confirma o primeiro, que é o da violência contra a criança como sendo um fator importante para esse fenômeno.
EC – Mas existem, paralelo a isso, políticas equivocadas de segurança pública, principalmente a de repressão às drogas?
Rolim – Evidente, porque esses grupos armados se organizam no mercado ilícito de drogas, e só se organizam e só há grupos armados porque as drogas são ilegais. Se elas fossem vendidas em farmácias, não haveria tráfico. Isso é subproduto de uma política proibicionista. Aliás, o tráfico é filho do proibicionismo. É o proibicionismo quem cria o tráfico!
EC – Há um capítulo do seu livro que diz que a polícia é sócia do tráfico.
Rolim – A primeira parte da minha pesquisa foi qualitativa, em que comparei dois grupos de jovens: 17 jovens internos da Fase, cumprindo medida de privação da liberdade por atos infracionais especialmente graves e com 11 amigos desses jovens que consegui encontrar, que não se envolveram com o crime. Um grupo de jovens matadores, capazes de praticar atos de extrema violência e outro composto por jovens trabalhadores que estão estudando. Essa é a primeira parte da pesquisa. Depois tem a parte quantitativa, mas daí é outra conversa. Realizando entrevistas em profundidade com esses dois grupos de jovens, se percebe que as histórias que eles vão contando dão conta de muitas associações. Uma delas é a associação deles com a polícia ou com as polícias. O que todos os jovens da Fase relatam é que todos eles tiveram envolvimento com a polícia militar e com a polícia civil antes de irem parar na Fase e todos eles têm histórias de corrupção para contar. Lá na ponta do sistema, eles pagavam policiais para não serem presos, o chamado pedágio. Isso, tanto com a polícia militar quanto com a polícia civil. Há um relato de um jovem que é especialmente grave.
Foto: Igor Sperotto / Arquivo Extra Classe
Foto: Igor Sperotto / Arquivo Extra Classe
EC – Explique melhor o pedágio pago aos policiais.
Rolim – A polícia aborda o traficante e vai na boca semanalmente receber seu dinheiro. Óbvio que isso não envolve todos os policiais, mas o número dos que fazem já não é um número pequeno. Aquela visão de que é um desvio de conduta, uma maçã podre. O que a pesquisa sugere é que o cesto está podre. Então temos algo grave aí. Uma das histórias dá conta do seguinte: o rapaz estava numa esquina vendendo drogas na vila; chegam os policiais que ele não conhecia. Ele é pego em flagrante com arma e várias pedras de crack. Os caras prendem, algemam e colocam ele dentro da viatura com quatro policiais. Ele começa a ser conduzido até a delegacia mais próxima. No meio da viagem toca o telefone. É o patrão da boca ligando de charqueadas, na Pasc, onde cumpre pena. “Vocês prenderam meu guri, não é para isso que a gente paga vocês”, diz o traficante. O policial na viatura responde que não sabia, desliga o telefone e retorna para o local onde havia prendido o rapaz e o devolve com as drogas e a arma. Só faltou pedirem desculpas pela prisão. Uma cena dessas é sinal de que alguma coisa de grave está acontecendo. Isso me deixa muito preocupado. A Polícia Militar, muito especialmente, no passado, sempre teve problemas de violência, abuso de autoridade aqui e ali, mas a corrupção não era uma coisa disseminada. Quando tinha um caso de corrupção, rapidamente a estrutura da Brigada expelia esse cara. Existia uma hierarquia muito presente e com um controle muito maior. Os mecanismos de disciplina, hierarquia e controle foram afrouxados com o tempo e se perdeu o controle da ponta. Os oficiais não sabem o que está acontecendo na ponta, porque eles não têm mais o acompanhamento diário. Então, muitos desses soldados estão soltos. Tem bons profissionais, que estão se esforçando, mas existe um grupo, e a discussão é qual o tamanho desse grupo, que é sócio do negócio. São sócios do tráfico.
EC – E será que não existe uma profundidade dessa sociedade na hierarquia mais alta também?
Rolim – Não tem como saber. Isso é difícil de especular, porque a pesquisa é feita na ponta, com quem atua na ponta do tráfico que fala dos policiais, que também atuam na ponta. Mas é possível que sim. Um dos grandes problemas do tráfico de drogas, que em geral não é tematizado na mídia, é o potencial corrosivo que tem nas instituições. No Brasil, a gente já tem bancadas de deputados inteiras eleitas pelo tráfico. O Rio de Janeiro já comprovou isso na CPI das Milícias. A Assembleia Legislativa do Rio já teve deputados bancados e eleitos pelo tráfico. Existem juízes na folha de pagamento do tráfico. Há magistrados agenciados e pagos regiamente pelo tráfico. Evidente que tem muitos policiais e muita gente de governo trabalhando para o tráfico. Então, quando se movimenta um volume muito grande de recursos e isso se faz à margem da lei, por ser uma economia clandestina, isso tem um potencial corrosivo do estado. É um drama que o Brasil está vivendo. Hoje o tema da segurança pública está muito em torno do tráfico.
EC – É um capital que já é caixa 2 na sua origem e se presta a financiar também a política.
Rolim – Sim. Enorme. E o Brasil está vivendo esse drama por conta de uma política antidrogas equivocada.
EC – Até que ponto foi possível aprofundar o estudo para aferir a influência da escola na prevenção da violência e de apontar algum caminho para enfrentamento dessa realidade?
Rolim – A primeira coisa é o seguinte: existe a possibilidade, e os gestores públicos deveriam assumir isso como prioridade, de se desenvolver projetos para disputar cada um dos jovens na escola com o tráfico. Ou seja, nenhuma criança ou jovem fora da escola, especialmente no caso dos homens. Pois isso tem uma repercussão direta na segurança pública. As meninas acabam saindo da escola por outros motivos, especialmente quando engravidam precocemente. No caso dos meninos, o tema central é esta possibilidade de, ao saírem da escola, se vincularem ao crime organizado.
EC – Tem uma coisa de status também desse jovem envolvido com o tráfico na comunidade.
Rolim – Esse jovem que não é nada, que é pobre e está marginalizado. Não tem autoria e não é reconhecido em lugar nenhum, que não existe, é um fantasma social, no momento em que ele entra para o tráfico de drogas ele passa a ser alguém. Passa a ter um valor. Ele passa a ser reconhecido pelos seus pares. Ele passa a impor respeito aos demais porque ele tem uma arma na cintura. Ele tem o dinheiro que o pai dele nunca teve. Ele passa a ser cortejado pelas meninas, que passam também a disputar essa figura, porque também representa status para elas. Ou seja, esse guri vira alguém. Ele se enche de poder. O tema da disputa desses jovens com o tráfico é um tema central. São raríssimos os municípios no Brasil que possuem programas para disputar esses jovens com o tráfico. Canoas tem um exemplo muito interessante. O município desenvolveu uma política de segurança e um dos projetos que acho mais interessantes que eles têm lá se chama Todo Jovem Conta. Eles conseguem, via guarda municipal, fazer uma abordagem dos guardas com as escolas, com as direções. Identificam jovens em situação de risco ou que tenham mais dificuldade de trato. As famílias desses jovens passam a ser acompanhadas pelo pessoal da prefeitura na área da saúde, assistência social, e uma série de mecanismos que vão permitindo chegar no problema que o jovem vai enfrentando. Aí se consegue abarcar a situação desse menino como uma situação para ser resolvida, sem que ele sequer saiba que está sendo selecionado.
EC – Mas com a mudança de gestão esse projeto pode ser descontinuado.
Rolim – Não se sabe se esse projeto terá continuidade com a próxima administração, mas Canoas conseguiu, com essa abordagem, abrir um caminho que é muito frutífero, e que é um desafio para a escola, que é não perder esse jovem. Às vezes eles saem da escola por motivos completamente banais.
EC – Antes você falava do comparativo entre os dois grupos de jovens da mesma origem…
Rolim – Ao final das entrevistas em profundidade com esses grupos de 17 jovens privados de liberdade na Fase, vários deles respondiam por mais de um homicídio, um deles, que respondia por dois homicídios, durante a entrevista assumiu pelo menos sete. O detalhe é que as conversas foram todas gravadas. Claro que na transcrição a gente toma o cuidado de não usar os nomes para que essa pessoa não seja identificada. Mas as histórias estão ali e elas são impressionantes. Dão conta de uma guerra em que eles estão matando e morrendo.
EC – Uma guerra circunstancial?
Rolim – Um dos principais contrastes entre os grupos de jovens estudados com esse perfil mais agravado e o grupo de amigos de infância que eles me indicaram, que não se envolveram com o crime, foi de que todos esses 17 meninos saíram da escola precocemente, aos 11 ou 12 anos, em média. E todos os 11 que eu consegui encontrar, que não partiram para o crime, continuavam estudando com 19 ou 20 anos. Também pobres, se atrasaram nos estudos e não concluíram o ensino médio. Outros já haviam concluído, mas seguiam batalhando para tentar entrar em alguma universidade. Mas todos eles estavam vinculados a alguma perspectiva educacional e se mantiveram longe do crime. Enquanto os demais perderam essa perspectiva muito cedo.
EC – Na pesquisa encontrou algum jovem pressionado a abandonar os estudos para ingressar no tráfico?
Rolim – Não, nada nesse sentido. É possível que aconteça, mas não houve nenhum caso no grupo que entrevistei. A dinâmica que eu encontrei foi uma dinâmica quase que sistêmica, pois acontece naturalmente. Isso é impressionante também, porque muitas vezes se comenta aqui fora, mesmo sem dados ou estudos sobre isso, que o problema do jovem que entra para o crime é a família desestruturada, porque não tem pai nem mãe, o que não é bem verdade. Grande parte desses meninos tem pai e mãe. Alguns não têm pai, mas sabem quem é o pai. Muitos deles tiveram relações em casa bem sólidas no que se refere a cuidados e honestidade. Alguns dizem o seguinte, quando começaram a entrar no tráfico: “pô, comecei a ganhar dinheiro e quero ajudar minha mãe em casa, mas não tenho como explicar o dinheiro”. Sabem que o pai e a mãe nunca aceitariam isso. Então, montavam uma estratégia, de combinar com uma irmã que trabalhava para assumir o dinheiro. Então, o tema não está só na família. A família é só uma parte. Mas há um momento da adolescência em que a relação deles com os seus pares é determinante. Eles enfrentam uma dupla negação: não são mais crianças e também não são adultos. Ou seja, ele não é duas vezes. Mas então o que ele é? Ele está à procura da sua identidade e precisa muito dos seus pares, do grupo. E os adolescentes se organizam em tribos, sempre horizontalmente. A família pode ser muito legal. O jovem pode ser muito bem-educado. Mas lá pelos 11 ou 12 anos, se ele entrar num grupo que não seja legal, esse grupo vai puxar esse adolescente. Então, o tema dos amigos, o tema da relação de proximidade, do pertencimento, é fundamental, porque é ali que ele identifica o seu grupo e sua própria identidade. Ele vai ser diferente do pai e da mãe porque ele quer ser alguém. É justamente por isso que a escola é decisiva para os adolescentes. Em última instância, a escola é o principal vínculo que ele tem. Ele rompeu simbolicamente o vínculo com o pai e com mãe e ainda não construiu os vínculos do mundo adulto. Ele não tem emprego, ele não tem filho, ele não casou. Ele está muito solto. Essa é a razão pela qual o adolescente transgride a norma com maior facilidade. Ele está solto no mundo. Já o adulto tem uma série de vínculos que o detêm.
EC – Com essa descoberta que se começa a fazer e diante do atual cenário político, dos rumos do país e das políticas educacionais que estão aí, qual o teu nível de otimismo?
Rolim – Uma das coisas que são muito dolorosas nesse tipo de trabalho é que quanto mais a gente vai conhecendo essas dinâmicas sociais, essas realidades que são pouco conhecidas no Brasil, por conta de que existe pouca pesquisa nessa área, a gente vai se dando conta do abismo que separa esse conhecimento da gestão pública. Os gestores públicos, especialmente na área da segurança, em geral eles não conhecem o tema. Eles respondem sempre reativamente aos fatos. São síndicos de um incêndio permanente, sempre atrás da última chama para apagar, produzindo factoides para a mídia para dar respostas ao clamor da população, no intuito de dizer que algo está sendo feito. Vivem o drama de enxugar gelo com as polícias, que não sabem a rigor o que fazer. O gestor público, como todos os governos, é parte desse mesmo non sense. Eles estão batendo cabeça. Eu acho isso apavorante.
EC – Há perspectiva?
Rolim – Você olha para frente e vislumbra quantos anos de gestão pública no Brasil teremos no futuro sem uma política efetiva de segurança pública e sem política educacional. Aí temos uma reforma de ensino médio por decreto, por pacotes, sem discussão prévia com ninguém. São temas que deixam a gente muito desanimado. Fico muito desesperançoso. Não se consegue enxergar ali adiante a possibilidade de uma virada nesse jogo. O Brasil precisa de uma ampla reforma política, mas também de uma ampla reforma cultural. A gente precisa valorizar cada vez mais as evidências. Precisa trabalhar com diagnósticos para medir o que está acontecendo, trabalhar como os países da modernidade trabalham, respeitando a ciência. Chegamos ao cúmulo, no Brasil, de apresentar Proposta de Emenda à Constituição da redução da maioridade penal sem nenhum argumento favorável da redução, mas com duas citações bíblicas a favor. Então, quando um país chega a esse ponto… O Congresso devia ter recusado a emenda por ser inepta. Não é possível que se apresente uma proposta de mudança à Constituição que não tenha um fundamento. E isso vira uma coisa tradicional e comum. A segurança pública é um caos. A gente está vivendo uma situação de muita violência, de muita criminalidade e, a rigor, o estado brasileiro não sabe o que fazer.
EC – Mas o estado sabe entender as razões da violência, consegue entender o que está acontecendo ou nem isso?
Rolim – É difícil responder. Não sei em que medida há um entendimento. Há pessoas que ocupam funções públicas importantes e que percebem a gravidade do problema, mas elas se sentem incapazes de alterar o quadro institucional, de fazer as reformas necessárias para resolver os problemas. Hoje, no Brasil, precisaríamos de um a política de segurança pública que tivesse a coragem de dizer o seguinte: o que estamos fazendo? Estamos prendendo aleatoriamente milhares e milhares de jovens traficantes. É um erro gravíssimo. O gestor tem de dizer isso para a população: que está errado. Mas está errado por quê? Se eu prendo jovens na periferia envolvidos com drogas, traficantes, usuários ou ambos, muitos são presos como se fossem traficantes, mas são usuários. Esse tipo de prisão não produz nenhum efeito no combate ao tráfico, porque essa mão de obra é rapidamente reposta. Mas o efeito disso é desagregador na segurança pública. Por que eu superloto os presídios e, ao superlotar os presídios com esses jovens, o estado organiza esse pessoal em facções criminosas. Então, o guri que estava na ponta, no seu embolamento, vendendo drogas, agora está dentro do Presídio Central e vai passar alguns anos ali e faz parte de uma facção prisional. Quando ele sair do presídio, ele não vai ser mais só um traficante. Ele, nas ruas, vai ter de assaltar para mandar dinheiro para a facção. Quem faz isso é o estado. O estado virou o grande organizador do crime sem se dar conta do que está fazendo. Como se discute isso com a sociedade, com as polícias e com o Congresso?
EC – As penitenciárias se transformaram nas universidades do crime organizado?
Rolim – É universidade e pós-graduação. E é pós-graduação mesmo, não é figura de linguagem. O sujeito que se iniciou no crime vai ter ali sua especialização e, portanto, condições de ser muito mais danoso para a sociedade do que era antes de entrar na prisão.
EC – Vivemos uma realidade que já vem de muitos anos de sucateamento progressivo do ensino estadual público, que é justamente quem disputa esses jovens ou deveria disputar nas periferias.
Rolim – E a tendência é que isso piore, porque a crise da educação não tem data para acabar, tanto quanto a gente consegue olhar para frente a gente só vê o quadro piorando.
EC – Dá para dizer que se piorar a educação aumenta a criminalidade?
Rolim – Sem dúvida. Tem pesquisas nos Estados Unidos que mostram que o corte das prisões americanas é o final do ensino médio. O sujeito concluiu o ensino médio, não vai mais preso ou dificilmente vai preso. Significa que o cara tem uma formação média, maior condição de empregabilidade, maior mercado de trabalho. Uma parte vai entrar no ensino superior, mas conseguiu passar um grau da criminalidade. Concluindo o segundo grau, dificilmente ele será alcançado pela dinâmica prisional. No Brasil, o ponto de corte é o ensino fundamental. O cara concluiu o ensino fundamental. Então, a relação de educação e prisão no Brasil é muito mais pronunciada do que nos EUA. Se a gente conseguisse aumentar os anos de escolarização média e combater a evasão, a gente diminuiria muito essa demanda de encarceramento. Isso fica muito claro, porque temos um número enorme de jovens, muito jovens, que são semialfabetizados. Esse cara vai fazer o que na sociedade que nós temos hoje? Vai arrumar emprego onde se os caras que têm pós-graduação batem de porta em porta e não conseguem? Então, é uma realidade muito difícil para quem não tem nenhuma formação. O cara está na periferia, não tem nada e o tráfico está do lado dele. Evidente que ele vai ser recrutado.
ONDE ENCONTRAR O LIVRO: O livro em formato impresso ou e-book pode ser adquirido sob demanda na Appris Editora: editoraappris.com.br ou pelo fone (41) 3156.4731.
Efeito da educação na criminalidade Um ano a mais de escolarização no ensino médio resulta em menos 10 pontos percentuais nas chances de um branco ser preso nos EUA e em 37 pontos percentuais as chances de um negro ser preso. O mais impressionante é que, quando separamos os dados por tipo de crimes praticados, descobrimos que o maior impacto da educação está associado à redução das taxas de homicídio, agressões e roubo de veículos. LOCHNER, Lance and MORETTI, Enrico. “The Effect of Education on Crime: Evidence from Prison Inmates, Arrests, and Self-Reports”, 2003. http://eml.berkeley.edu/~moretti/lm46.pdf
Escopo da pesquisa: 1º parte da pesquisa – estudo comparativo
2ª parte da pesquisa – modelo causal Cinco grupos de jovens do sexo masculino – 17 internos da Fase com histórico de violência extrema – 11 colegas de infância sem envolvimento com o crime – 28 Presos jovens adultos por homicídio – 26 Presos jovens adultos por receptação – 29 Alunos de escola pública da periferia de POA n = 111 jovens pobres envolvidos e não envolvidos com dinâmicas criminais e/ou violentas Campos etiológicos básicos e a variável dependente do modelo causal |