Nesse cassino, só joga quem tem ficha
Foto: Lóryen Bessa
Quando Martin Wolf, comentarista-chefe de Economia do jornal britânico Financial Times que participa do Fórum de Davos desde 1999, escreve que o sistema financeiro atual perdeu a sua legitimidade, é mais do que uma grande propaganda para o novo livro de Ladislau Dowbor, A era do capital improdutivo (Outras Palavras & Autonomia Literária, 316p.). De certa forma é um facho de esperança sob um panorama tão sombrio que o economista e professor titular de pós-graduação da PUC São Paulo traça magistralmente em sua obra. Nesta entrevista ao Extra Classe, Dowbor mostra o quanto a acumulação de recursos através de um sistema financeiro que não produz nada e vive tão somente de papéis e juros sobre juros é maléfico, transformando-se em um grande poder do qual a sociedade como um todo se torna refém. O fato ainda de A era do capital improdutivo ter praticamente se esgotado em um mês, fazendo com que o editor providencie a segunda edição também é revelador. Sinal, como diz o professor, que ‘Deus e o mundo estão se dando conta de que esse sistema é improdutivo’, pois além de aniquilar a capacidade de produção e de pesquisas úteis para a sociedade, mantém a desigualdade e promove o desastre ambiental.
Extra Classe – Em seu livro o senhor aponta como a riqueza do mundo, transformada pelo trabalho, acaba capturada pelos bancos e seus intermediários financeiros. De forma geral, quais são os mecanismos usados pelas corporações financeiras para fazer essa apropriação?
Ladislau Dowbor – O sistema no seu conjunto é extremamente simples de compreender. O que tem é que ele não aparece, é discreto em suas formas e as pessoas simplesmente não juntam as partes. Tem gente que estuda o endividamento das famílias, tem gente que estuda o crédito das empresas, tem gente que estuda os déficits dos governos, tem gente que estuda a questão dos cartões de crédito… Eu fiz simplesmente o que já fiz para vários países, para a ONU, que é o fluxo financeiro integrado. E esse fluxo apresenta uma imagem muito clara. O essencial é o seguinte: juros sobre as famílias, juros sobre as empresas, juros sobre a dívida pública; o desvio de dinheiro para fora e, no caso do Brasil, uma carga tributária que não faz a redistribuição de renda, digamos, pelo contrário, agrava. Um país não pode funcionar assim.
EC – Nas últimas eleições americanas, tanto Hillary Clinton quanto Donald Trump fizeram fortes críticas ao sistema financeiro. Ele chegou a dizer que adotaria medidas contra aqueles de Wall Street por ganharem muito e pagarem poucos impostos.
Dowbor – Ele adotou as medidas imediatamente. E incluiu na sua equipe três diretores da Goldman Sachs (risos), o maior poder financeiro do mundo. E mais, está cortando os impostos dos mais ricos. O Joseph Stiglitz (economista Joseph Eugene Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia em 2001) disse que cortar impostos dos mais ricos não vai funcionar e nunca funcionou. A ideia é que essa gente muito rica vai aplicar mais dinheiro em mais papéis. Eu uso uma imagem que a Susan Jordan (PHD, professora de finanças na University of Kentucky) me passou, para ajudar as pessoas entenderem: se eu sou um bilionário, eu aplico o meu bilhão de dólares numa taxa modesta, que renda uns 5%, e eu vou estar ganhando ao dia 137 mil dólares. Aí o pessoal vê o que é o tamanho de um bilhão. No dia seguinte, o dinheiro vai crescer não mais sobre um bilhão, mas sobre um bilhão e 137 mil dólares e por aí vai.
Foto: Lóryen Bessa
EC – Grosso modo, poderíamos dizer que essa nova fase do capitalismo se assemelha a um cassino?
Dowbor – Olha, é um cassino onde só joga quem tem ficha. Pessoas de cima. É um caos financeiro indiscutivelmente. É só você ver o que está acontecendo em diversos países. O livro apresenta uma sucessão de bolas de neve que vão crescendo. As grandes fortunas mesmo não são de produtores. São de intermediários, organizadores de fundos etc. Gerou-se uma fortuna de um tamanho que levou a ONU a reunir banqueiros, gente de governos, onde na abertura da reunião António Guterres (secretário-geral da ONU) disse que diante das necessidades que temos, é necessário especificar os objetivos de desenvolvimento sustentável frente aos 300 trilhões de dólares que navegam soltos no sistema financeiro e estão completamente fora de propósito. Estão fora dos objetivos.
EC – Exemplifique, professor.
Dowbor – As finanças não são um setor. Essa é uma dimensão que permite a você orientar capacidades humanas, tecnologias para diversos setores e o sistema hoje vive de rodar aplicações financeiras. Basicamente essa é a primeira parte do meu livro, quais são os desafios. O desafio ambiental é um, estão destruindo o planeta num ritmo avassalador. O segundo desafio é a questão da desigualdade.
EC – Vamos por partes, então. Fale-me sobre a questão ambiental.
Dowbor – Nesse trabalho eu sistematizo várias pesquisas. E é relativamente recente termos pesquisas que apontam qual é a relação do sistema financeiro com as empresas produtoras. Como a Volkswagen faz uma trambicagem tão escandalosa como a montagem de um sistema, um software, para enganar o governo sobre as emissões de carbono? Um escândalo mundial e por isso está pagando bilhões. Como uma empresa faz isso durante dez anos? Quer dizer, eles não sabem quantas mortes existem por causa da contaminação do ar? Você pega a GSK, que vende o Wellbutrin, que é um antidepressivo, como pílula de emagrecimento. Estão pagando 2,8 bilhões de dólares de multa. Uma farmacêutica gigante fazendo uma enganação, fraude sobre medicamento.
EC – Por que acontece esse tipo de coisas?
Dowbor – Na realidade, tudo isso é devido ao fato do processo decisório de uma empresa produtora de alguma coisa não se pautar pelo impacto no meio ambiente, para o social ou para o cliente. Se pauta pela rentabilidade das ações. Quando descobriram o caso do Wellbutrin e saiu nos jornais que a GSK estava trambicando com medicamentos e que vai pagar multas por isso, as ações dela subiram lá pra cima. Ela tinha feito uma provisão, esperando um processo, maior do que a multa que recebeu.
EC – No Brasil temos um caso recente bem emblemático, o rompimento da barragem de Fundão, não?
Dowbor – A Samarco, chegou um engenheiro e disse: ‘chefe, vai dar rolo’. Qual é o espaço de decisão da empresa? Ela tem acionistas. Quem controla a Samarco? De um lado a BHP Billiton, de outro lado a Vale. Quem controla a Vale? A Valepar. Quem controla a Valepar? O Bradesco. Quem controla o Bradesco? Um conjunto de investidores institucionais que não estão nem aí, não estão nem sabendo onde é Mariana, o que que é a Samarco. Estão fazendo uma composição de ações, de aplicações. Há um desgarramento entre o interesse de uma empresa, de um empresário que até tempos atrás ele produzia, ele era dono da empresa, ele tinha uma responsabilidade, se sabia onde ele trabalhava, onde morava. Hoje não! Isto está diluído. Você vai reclamar com quem? A Samarco, do lado da BHP Billiton, os caras lá de Sidney não têm nem ideia. Eles controlam milhares de coisas de maneira subcontratada, subcontratada. Eles estão vendo é o que rende!
EC – Interessante isso. A subcontratação da subcontratação.
Dowbor – Eu tenho um capítulo amplo no livro que ajuda a entender. Eu chamo isso de desresponsabilização. Porque se um cara me vende uma carne estragada, eu vou lá e xingo ele e devolvo. Já, quando eu tenho um problema com sistemas internacionais, eu pego um telefone e vou ouvir ali ‘a sua ligação é muito importante para nós‘ (risos). Você sempre vai cair numa empresa terceirizada, numa mocinha simpática, que você não vai xingar. Se criou um sistema tão burocratizado e tão ineficiente como qualquer gigante burocrático estatal. Agora, isto tem impactos políticos em cadeia! Aí você elege um Trump que diz que não existe aquecimento global.
EC – E a questão da desigualdade?
Dowbor – É muito importante antes pensar que a desigualdade não é só um problema ético. Ela é um problema ético porque está se remunerando de maneira fantástica gente que não produz nada, mas é também um problema político. Até quando você vai pensar que aqui vai ser feito um Alphaville e cercar; lá no México, um muro de 3 mil quilômetros para se proteger dos pobres; na Palestina vai se fazer muros; vai se encher de barcos militares o Mediterrâneo para os pobres não chegarem. Isto não faz sentido. Na realidade, é a própria tensão gerada pela desigualdade, veja o que acontece no Rio, nas periferias, o que acontece no caos político que é o Brasil hoje. Tudo está ligado à desigualdade, essa tensão. Você não consegue convencer essas oligarquias de soltar o pedaço. Quando chega um governo Lula que começa a humanizar, a civilizar o país, você tem uma revolta dos ricos. Os ricos fazem o caos que culmina no governo atual. A desigualdade é um vetor de travamento político absolutamente central. Não tem sociedade nesse grau de desigualdade que possa funcionar. Muito menos de maneira democrática.
EC – Pesquisa da ONG britânica Oxfam divulgada no início do ano diz que oito bilionários têm juntos mais dinheiro que a metade mais pobre do mundo. Agora, em setembro, a mesma Oxfam aponta que seis brasileiros concentram a mesma renda que a metade da população mais pobre no país. Coincidência?
Dowbor – O Brasil está exatamente na média mundial. Pois é, 800 milhões de pessoas passam fome; por outro, só de grãos, nós produzimos mais de um quilo por dia por pessoa no mundo. Tem mais, o planeta produz 80 trilhões de dólares de bens e serviços. Se você dividisse isto pela população mundial, 7,4 bilhões, divide por 12 e multiplica por quatro, a gente chega ao seguinte resultado: R$ 11 mil por mês para uma família de quatro pessoas. O que se produz no planeta dá para todo mundo viver de maneira digna e confortável.
EC – Por que essas pesquisas só começam a aparecer agora?
Dowbor – São relativamente mais recentes estudos de desigualdade de riqueza, porque antes a gente só falava da concentração de renda, da desigualdade de renda. Hoje já está se pegando a renda, a riqueza e o acesso a serviços sociais básicos. O interessante disso, e eu trago isso no livro, é que no Brasil, curiosamente, um produtor que fabrica a boneca Barbie diz ‘eu sou um produtor que contribui, gerando riqueza’, agora quando o Estado investe em saúde, educação, se diz que é gasto. Isso não faz o mínimo sentido. Hoje a gente entende isso como salário indireto.
Foto: Lóryen Bessa
EC – O senhor ainda afirma que a financeirização do capitalismo dilacera as economias, forçando os governos eleitos a cumprir agendas refutadas pelas urnas. Parece um filme: Dilma Rousseff foi reeleita, mas para acalmar o mercado, colocou Joaquim Levy no comando da economia; o PMDB, no meio da crise política que acabou derrubando a presidente, esboçou a chamada ponte para o futuro, tomou o governo e apresenta propostas de reformas que jamais passariam por um crivo eleitoral. Qual a sua percepção sobre isso?
Dowbor – O que funciona é quando se tem um setor público forte, que investe em infraestrutura, investe em políticas sociais, assegura crédito barato para as empresas, assegura para as áreas mais pobres complemento de renda, permitindo que as famílias consumam. Isso funcionou no New Deal norte-americano (“novo acordo”, série de programas implementados nos EUA entre 1933 e 1937), com Roosevelt. Na Europa, por exemplo, os 30 anos de ouro do pós-guerra também são baseados rigorosamente nesse processo. Lá se chamou de “Estado de Bem Estar Social”. Isso também funcionou nos governos Lula. Porque o governo Lula, em nenhum momento, nem Dilma 1, teve problemas de déficit. O déficit se gerou através da dívida pública. Esses 7% do PIB que se tira do Estado.
EC – Dilma caiu em uma armadilha do sistema?
Dowbor – Eu tenho um capítulo do livro que é a cronologia da crise. É muito claro. Por exemplo, temos 61 milhões de adultos que são os chamados negativados, os que não conseguem pagar suas dívidas, portanto, não conseguem saldar o que já compraram, imagina comprar alguma coisa agora. Quando se pega num país de 200 milhões, 60 milhões de adultos que não conseguem pagar, se travou o consumo. O fato é que a partir de 2011, o travamento da capacidade de compra e o estrangulamento pelos juros se torna absolutamente dramático. De 2012 para 2013, a Dilma reduz fortemente os juros através do Banco do Brasil, da Caixa Econômica Federal, e reduz fortemente a taxa Selic, que vai para 7,25%. Isso aí tirou a mama dos bancos e da classe média alta, que entra no Tesouro direto. A mama fantástica dos 14% que se tirava em uma inflação baixa e que fazia você ganhar sem fazer nada. As empresas, em vez de produzir, jogavam no Tesouro direto.
EC – Até que ponto isso contribuiu com o impeachment?
Dowbor – A Dilma fez o necessário para o país. Precisava parar essa mamata improdutiva e tirar do sufoco as famílias, as empresas e o próprio Estado. Não prestou. De meados de 2013 para cá você já não tem mais governo. Um bate-boca, gritaria, boicote etc. O fato é o seguinte, eu não estou na pele da Dilma para falar porque que ela recuou, porque voltou a taxa Selic para 14%, mas a partir desse momento você tem guerra. Ou seja, o sistema, a crise que temos não se trata de uma direita que herdou uma crise e está consertando. Gerou a crise e está aprofundando! Agora, ter jogado isso, a razão dessa desarticulação através do sistema financeiro no colo da Dilma e do coitado do Mantega não faz o mínimo sentido.
EC – É exatamente como o senhor diz no livro: o sistema dilacera a economia e força os governos…
Dowbor – A minha compreensão é a seguinte: a Dilma achou que não tinha força para conter e, talvez, é compreensível, porque em cima desses interesses dos bancos se agregou um conjunto de oportunismos políticos, com grandes mobilizações e toda a mídia que entrou, enfim… É importante entender ainda que depois da crise (2008) o Obama abriu os cofres e foram trilhões de dólares, mesmo sabendo que não iam financiar nada, que era só pra encher as caixas deles (do sistema financeiro) e quebrar o pessoal que tinha comprado casas. A Europa fez a mesma coisa. Gerou a austeridade e até hoje está repassando dinheiro a 1% para os bancos, que aplicam em dívidas públicas para a Grécia e outros países, onde podem mamar entre 5% e 7%. Na realidade, não foi só a Dilma que recuou, mas o sistema. Por isso eu digo que não me coloco na pele dela, pois só estando lá é que se pode compreender de fato as pressões.
EC – As forças ocultas como diria o Jânio, não é?
Dowbor – As forças ocultas. E olhe que são cada vez menos ocultas (risos). O essencial para mim é que o sistema financeiro, com a capacidade de extração de riqueza, gerar essas fortunas fantásticas e improdutivas, foi consumindo o poder político. Apropria-se do Judiciário, apropria-se dos diversos segmentos, e isso lhe permite gerar uma dinâmica que controla a mídia, controla cada vez mais as universidades. Estão comprando universidades como batata frita hoje! Estão comprando as editoras acadêmicas. Quer dizer, há uma construção da legitimação, digamos de todo esse processo. É relação de poder pura.
______________________________________________________________
Reprodução
O Autor – Filho de poloneses, Dowbor nasceu em Banyuls, na França, em 1941, quando os pais estavam a caminho da América, fugindo da guerra. Depois de formar-se em Economia Política na Universidade de Lausanne, na Suíça, fez mestrado e doutorado em Ciências Econômicas na Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, Polônia, e viveu no Brasil até o golpe de 1964. Por sua militância de esquerda, foi preso, torturado e exilou-se na Argélia. Trabalhou como consultor na Guiné-Bissau, Nicarágua, Costa Rica, África do Sul e no Equador. Anistiado, regressou ao Brasil. É autor e coautor de mais de 40 livros, como Formação do Terceiro Mundo e O que é capital (ambos pela Brasiliense), Aspectos econômicos da Educação (Ática) e Formação do Capitalismo no Brasil, publicado em diversos países e atualizado em 2010. Artigos e livros do autor estão disponíveis para download em dowbor.org.