GERAL

O autoengano do liberalismo econômico

Por Gilson Camargo | Tradução: Grazieli Gotardo / Publicado em 6 de dezembro de 2017
“Os economistas tendem a ver as questões de distribuição como o equivalente a Bill Gates entrando num bar – todos os que estiverem no bar passam a ser considerados milionários porque o valor médio de todos os que lá estiverem é empurrado para cima”

Foto: Acervo Pessoal

“Os economistas tendem a ver as questões de distribuição como o equivalente a Bill Gates entrando num bar – todos os que estiverem no bar passam a ser considerados milionários porque o valor médio de todos os que lá estiverem é empurrado para cima”

Foto: Acervo Pessoal

Depois de produzir uma crise sem precedentes desde o crash de 1929, os sistemas financeiros e os governos dos países ricos emitiram dívidas e elevaram ao limite o déficit fiscal. Nos Estados Unidos e boa parte da Europa, os bancos centrais e os tesouros nacionais passaram a mobilizar seus balanços para resgatar bancos quebrados, gerando a expansão de déficits e endividando os estados. Na sequência, “os mercados” passaram a alertar que o endividamento dos países havia chegado a limites inaceitáveis e que a única solução seria cortar gastos e encolher o orçamento dos estados.

As políticas de austeridade são uma forma de deflação voluntária em que a economia, supostamente, se ajusta através da redução de salários, preços e despesas, e corte no orçamento do Estado, de forma a conquistar a confiança empresarial sem esvaziar o mercado. “Há apenas um ligeiro problema nesta interpretação: está completamente errada, e o mais frequente é a política de austeridade ser exatamente o que não se deve fazer, porque produz precisamente os resultados que se quer evitar”, esclarece o economista Mark Blyth no primeiro capítulo do Austeridade – A História de uma Ideia Perigosa (Autonomia Literária, 2017, 400 p.).

Professor de Economia Política no departamento de Ciência Política da Universidade de Brown, em Providence, nos Estados Unidos, doutor em Ciência Política na Universidade de Columbia, Blyth afirma que, além de não funcionar, a austeridade “é perigosa” porque parte do pressuposto de que os estados gastaram demais e é aplicada como punição, “a dor virtuosa após a festa imoral”, um autoengano alimentado pelo liberalismo econômico, uma vez que o objetivo é salvar os bancos. “Estes problemas, incluindo a crise dos mercados de títulos, começaram com os bancos e acabarão com os bancos”, sentencia. Nesta entrevista por e-mail ao Extra Classe, Blyth fala sobre seu livro que atribui às políticas de austeridade um alto custo social: “as pessoas comuns pagam uma vez pelo resgate, duas vezes pela crise e três vezes como uma crise da dívida privada alavancada e rebatizada como crise de dívida pública e gastos excessivos”.

Extra Classe – Como explicar as origens da crise financeira de 2008 e por que os seus efeitos, passados quase dez anos, ainda impactam as economias mundo afora?
Mark Blyth – É disso que trata meu livro. Mas, resumindo, é o que eu chamo de “a maior fraude comercial (bait and switch) da história moderna”. Basicamente, os bancos e outras empresas financeiras emprestaram muito dinheiro e tiveram problemas quando as pessoas não puderam pagar. Esses bancos foram incrivelmente “alavancados”. Ou seja, em muitos casos, para cada dóllar que eles tinham em reservas, havia até 60 dólares em empréstimos. Então, bastou que um pequeno número de empréstimos não fosse pago para que isso se transformasse em uma crise sistêmica. A crise das hipotecas dos EUA forneceu esse gatilho. Devido à forte interconexão entre essas instuições e os aportes que receberam, os bancos convenceram os governos de que eram “grandes demais para falhar” – e foram salvos. Mas, resgatando essas instituições, recapitalizando-as e enfrentando a recessão que isso causou, aumentaram os déficits do governo e as dívidas. Visto que resgatar ricos é uma operação difícil, os governos em todos os lugares descobriram, de repente, “toda essa dívida”, e declararam que era devido a gastos excessivos que agora precisavam ser cortados. Assim, as pessoas comuns pagam uma vez pelo resgate, duas vezes pela crise e três vezes como uma crise da dívida privada alavancada e rebatizada como crise de dívida pública e gastos excessivos. “Bait and Switch”*.
* Bait-and-switch, ou iscar-e-trocar, é uma fraude comercial, em que um produto é anunciado para atrair clientes e vender outro ao invés do anunciado.

“Os bancos obtêm toda a vantagem do investimento, mas nenhum dos riscos negativos. Isso é colocado ao contribuinte”

Foto: Conor McCabe/ Divulgação

“Os bancos obtêm toda a vantagem do investimento, mas nenhum dos riscos negativos. Isso é colocado ao contribuinte”

Foto: Conor McCabe/ Divulgação

EC – Após o estouro da bolha especulativa no mercado imobiliário que produziu a crise de 2008, os governos emitiram dívidas e ampliaram o déficit fiscal para salvar os bancos e o sistema. Por que isso agravou a crise?
Blyth – Porque eles acreditavam no “risco sistêmico” de que esses bancos eram muito grandes e interconectados demais para quebrar e que precisavam ser salvos. Mas isso custa dinheiro, o que significa mais dívidas.

EC – Se a lógica do sistema financeiro é salvar os bancos, por que o Federal Reserve se recusou, a princípio, a socorrer o banco de investimentos Lehman & Brothers, cuja falência detonou essa que é considerada a maior crise da história do capitalismo desde 1929?
Blyth – Porque você deve deixar os bancos falharem, ou você está fazendo socialismo para os ricos. Eles obtêm toda a vantagem do investimento, mas nenhum dos riscos negativos. Isso é colocado ao contribuinte. Mas, quando o fizeram, os mercados diminuíram, e então eles foram resgatados.

EC – Em outubro, o G-77 e a China divulgaram um alerta sobre a necessidade de reformar o sistema financeiro internacional, inclusive com adoção de severa regulamentação, para reduzir e desencorajar a especulação. Vem aí uma nova crise ainda pior que a de 2008?
Blyth – Não que eu saiba. A próxima crise não será a mesma que a última. E tendo em vista o quanto os bancos centrais “jogaram” com o sistema para mantê-los estáveis, é improvável que isso aconteça, a menos que um dos grandes bancos centrais eleve as taxas em breve.

EC – O que é dívida soberana?
Blyth – A dívida soberana é uma promessa intergeracional de pagar a um investidor uma taxa de juros para um empréstimo de caixa em troca de uma obrigação resgatável.

EC – Nesse contexto, o que é austeridade?
Blyth – Austeridade é a ideia de que cortar gastos reduz os déficits, retarda a acumulação de dívidas e torna os investidores mais confiantes. Se você comprar mais tarde, então, é a maneira de estabilizar através do corte de gastos em uma recessão. Por desgraça, isso não funciona, já que tudo o que tende a fazer é diminuir a economia, o que torna o estoque atual de dívida maior, o que eu chamo de ideia perigosa.

EC – Por que não funciona?
Blyth – Pode funcionar se você tiver sua própria moeda, uma boa cobrança de impostos e a recessão for cíclica. Se você não tem nada disso e tenta, não funciona. Pense na Eurozona de 2011 a 2015.

EC – O Reino Unido é um caso à parte?
Blyth – Não. Eles tentaram. Não funcionou. A crise foi estrutural, não cíclica.

EC – E os gregos?
Blyth – Eles não têm sua própria moeda, portanto, não podem desvalorizá-la. Se eles falharem explodem os bancos que detêm sua dívida (a história de alavancagem excessiva novamente). Eles não podem exagerar ao imprimir o dinheiro. Mas a Grécia é antiga, não exporta muito, tem altos impostos e dívidas. Então, sempre foi um desastre.

EC – Portugal, Itália, Grécia e Espanha lançaram duros pacotes de austeridade desde o início da crise financeira, em 2008, mas políticas de austeridade minaram as economias da zona do Euro ao invés de trazerem a estabilidade esperada. Por quê?
Blyth – Pelas mesmas razões acima descritas. Tudo o que eles fizeram foi encolher as economias subjacentes para que os estoques de dívida aumentassem, e não diminuissem. Quando eles pararam de “espremer”, em 2015, essas economias começaram a crescer.

EC – Por que as medidas de austeridade têm provocado distúrbios sociais, luta de classes, instabilidade política, mais dívida, violência e guerras?
Blyth – Quando você resgata os ricos e culpa os pobres, eventualmente, os pobres percebem.

EC – O que isso tem a ver com injustiça tributária e as off-shores?
Blyth – Há impostos suficientes para preencher lacunas de orçamento, mas é realizado em lugares como Luxemburgo e Irlanda, de modo que aqueles que têm o dinheiro não pagam e aqueles que não têm são espremidos.

Publicado originalmente em 2013 em língua inglesa, livro de Mark Blyth recém-lançado no Brasil faz análise criteriosa sobre a maior crise econômica pós-29, com linguagem acessível a não economistas

Imagem: Reprodução

Publicado originalmente em 2013 em língua inglesa, livro de Mark Blyth recém-lançado no Brasil faz análise criteriosa sobre a maior crise econômica pós-29, com linguagem acessível a não economistas

Imagem: Reprodução

EC – Qual a saída para salvar a economia mundial de um novo colapso?
Blyth – Para responder isso que eu teria que saber qual será o novo colapso. E não sei. Mas eu sei que simplesmente apertar os orçamentos não ajudará.

EC – Como vê o caso do Brasil?
Blyth – O caso brasileiro é diferente da Europa. O Brasil é um produtor de commodities (mercadorias padronizadas e universais com preço determinado pela oferta e procura internacional, como soja, minério, carne) com baixa capacidade de aumento de impostos e corrupção endêmica, esquerda e direita. Como tal, as estratégias de transferência serão vulneráveis aos choques dos preços das commodities. A partir de 2008, e após 15 anos de preços crescentes, o petróleo, a soja e outras commodities caíram de preço e o Brasil foi apanhado com uma enorme queda no orçamento. Se você produz coisas diferentes de commodities em grande quantidade, então uma desvalorização e mais gastos estabilizadores podem ajudar a equilibrar o choque. Mas, quando sua base tributável é fraca, há uma falta total de confiança entre diferentes segmentos da sociedade, e cada um tenta colocar o custo no outro, tais estratégias falham. O Brasil sobe e cai com commodities. Como tal, a política antiausteridade sempre será mais difícil de implementar.

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