Tania Zagury vê reformas com ceticismo
Foto: Acervo Pessoal/Divulgação
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Sobre a recente reforma no ensino médio promovida pelo governo Temer, apesar da filósofa e mestre em educação dizer ainda ser cedo para uma avaliação mais precisa, ela demonstra ceticismo sobre o encolhimento dos currículos ao indagar: “o saber ocupa espaço? É uma primeira coisa a se pensar”. Doze anos depois de conversar com o Extra Classe sobre a pesquisa que deu origem ao seu best seller O professor refém – Para pais e professores entenderem por que fracassa a educação no Brasil (Editora Record), a educadora Tania Zagury faz, agora, um inventário sobre sua experiência de 50 anos em sala de aula. Autora de 34 livros, filósofa, Mestre em Educação, Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Zagury está lançando Pensando educação (com os pés no chão): Reflexões de meio século de sala de aula (Editora Rocco). O livro vai além da sua experiência pessoal e traz breves ensaios com análises de medidas e situações que ocorreram ou foram adotadas no Brasil nas últimas décadas. Tania advoga mais pragmatismo e menos utopia em seu recente trabalho e fala o quão difícil é convencer alguém de uma proposta ou reforma educacional em que os próprios educadores escalados para implementar não acreditam.
Extra Classe – A senhora disse que nos seus 50 anos em sala de aula viu as mais variadas reformas acontecerem: mudanças de currículos, metodologias, formas de avaliação. Na sua opinião tudo isso gerando resultados no mínimo duvidosos. Por quê?
Tania Zagury – O livro “Pensando Educação, com os pés no chão” tem cerca de 300 páginas; nele analiso dezenas de mudanças que foram introduzidas ao longo de décadas com resultados sofríveis; fica impossível resumir tudo em apenas duas páginas, até porque cada mudança teve motivação diversa e também razões diferentes para o insucesso. Não posso, pois, dar uma única e global resposta. Posso, no entanto, ressaltar aspectos de intervenções específicas, que ocorreram ao logo desses 50 anos.
EC – Quais seriam?
Tania – Posso citar, por exemplo, uma mudança que ocorreu quando eu era supervisora do 3º Distrito Educacional, na cidade do Rio de Janeiro. Como supervisoras, éramos encarregadas de implantar a mudança curricular que substituiu as disciplinas História e Geografia, nas primeiras séries do Ensino Fundamental, por uma denominada Estudos Sociais – uma espécie de fusão das duas. Professores de História tinham que, a partir de sua implantação, lecionar Geografia também e os de Geografia passaram a ensinar também História – para explicar de forma simples. É fácil compreender a revolta dos docentes e a dificuldade de trabalhar com qualidade numa área para a qual não estavam habilitados. Também fica fácil compreender que medidas deste tipo, e não foram poucas, fizeram com que, a cada uma delas, se caminhasse um passo para trás em termos de qualidade.
EC – Por quê?
Tania – Primeiramente, porque um profissional habilitado para uma área específica do saber, obviamente não pode ter a mesma qualidade de trabalho em outra para a qual não está habilitado. Conscientes disso, os docentes claro, davam mais peso à disciplina para a qual se sentiam aptos. De modo que a proposta já trazia em seu bojo a semente do fracasso. Na verdade, acredito que foi um expediente que o governo da época encontrou para não contratar mais professores de ambas as áreas, por questões de verba… Foi um erro – que, infelizmente, demorou muito a ser corrigido.
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Tania – Indubitavelmente. Houve outros absurdos do mesmo tipo. O ensino de História tem características diferentes do de Geografia. Teria sido um milagre tal hibridismo funcionar. Além disso, na rede pública de ensino quando se implanta uma medida, raramente se ouve quem vai executar. No caso, os docentes tiveram que executar – concordando ou não. A rede privada de ensino, dada a flagrante impossibilidade de tal medida ter bons resultados, não a adotou de fato. Constava na grade curricular (tinha que constar por ter sido medida do governo), mas nas salas de aula, a carga horária de Estudos Sociais era irmãmente dividida entre professores de História e o de Geografia, o que evitou a queda da qualidade. Já na rede pública…
EC – E na prática?
Tania – Em decorrência da impossibilidade de fazer um trabalho de qualidade e bem executar a medida, o resultado foi péssimo. Na prática, o que ocorreu foi que alunos, cujo professor de Estudos Sociais fosse formado em História, recebiam enfoque prioritário de História – e vice-versa. Deixaram assim, de aprender conceitos importantes, que têm enorme importância depois na vida.
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Tania – A minha percepção foi e continua sendo de que a medida foi uma forma que o governo encontrou para não contratar mais professores – uma medida para economizar. E sabemos que países que tem bons resultados em educação não são necessariamente aqueles que têm mais verbas para a educação. O Brasil nem está entre os piores do mundo nesse quesito! O problema me parece ser muito mais de escolhas inadequadas, de decisões equivocadas, precipitadas ou sem real possibilidade de implantação, como a que acabamos de analisar. Quem toma as decisões educacionais parece não considerar minimamente a possibilidade de implementação, a experiência e a capacitação adequada de quem vai executar a medida.
EC – E sobre a reforma do ensino médio realizada pelo governo Temer. Qual a sua opinião?
Tania – É cedo para falar abalizadamente sobre a reforma do Ensino Médio, afinal a implantação mal está começando…. De todo modo, me parece que, o Ministro da Educação, ao assumir e tomar conhecimento das graves falhas de leitura e compreensão de texto detectadas nos alunos ao final do Ensino Médio em recente exame nacional, somadas ao crescente burburinho de que as matérias do currículo do Ensino Médio são excessivas, se sentiu instado a incrementar e acelerar a reforma, que estava em estudos. Como se isso pudesse garantir miraculosamente melhores leitores. E será mesmo que o saber ocupa espaço?
EC – Mas, em linhas gerais, a senhora concorda com essa alteração?
Tania – Creio que algumas mudanças foram válidas, algumas outras tenho dúvidas. Ao entrar para o Ensino Médio, há 40 anos atrás, o estudante tinha que, aos 14 anos escolher entre Escolas Normais (que formavam professores para curso primário); o Curso Científico (voltado para as Ciências Exatas) ou o Clássico (para quem preferisse a área de Humanas), para dar continuidade aos estudos, abrindo mão assim de ao mesmo ter um verniz de outras áreas do saber. O novo currículo remonta àquela situação, mas com a boa diferença de que há matérias – fundamentais – que todos deverão cursar. Persiste porém a escolha prematura que conduz ao não conhecimento mínimo de outras áreas do conhecimento.
Foto: Divulgação/Acervo Pessoal
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EC – A senhora vê um retrocesso?
Tania – Não creio que seja retrocesso, mas também não vejo como um currículo inovador, que possa fazer frente às características do século XXI… Considero positiva a manutenção de conteúdos básicos obrigatórios para todos. Quanto aos elegíveis, penso que é preciso atentar para o fato de que, sempre que fazemos escolhas, descartamos opções e elementos que talvez possam fazer falta no futuro. E digo isso porque vivemos a era em que, citando Alvin Toffler, analfabeto no século XXI é aquele que é incapaz de aprender, desaprender e reaprender a cada dia. Muitas profissões sumiram e continuarão sumindo do noite para o dia, dada a evolução acelerada da tecnologia. Então, excluir saberes do currículo do Ensino Médio neste momento histórico me preocupa.
EC – Um uso funcionalista da educação?
Tania – Sim, há certo utilitarismo nessa ideia de “ah, para que estudar isso?”… Como se pudéssemos adivinhar o dia de amanhã… Em relação a este aspecto, há um viés interessante em minha obra, quando afirmo que colocar a criança como centro do universo, tendência que surgiu há algumas décadas e continua vigorando tanto na escola quanto na família, é decisão equivocada, porque, crianças e adolescentes, são regidos pelo princípio do prazer (fazer só o que quer e o que gosta), o que é como criar uma bolha de superproteção, que só funciona no âmbito superprotetor da família, mas não forja cidadãos, porque é o primado do prazer em detrimento do primado do dever. Até currículos atualmente estão se adaptando ao prazer dos jovens, ao que eles querem ou gostam… Resta saber se a vida vai levar este princípio em consideração, o que me parece totalmente improvável. A vida não é feita do que Beltranos e Cicranos querem ou gostam. Ela é o que existe. Com possibilidades sim, mas com muitas e inesperadas limitações também.
EC – Na abertura do seu livro, a senhora afirma que pensar criticamente a realidade do ensino brasileiro é imprescindível. Como pensar criticamente em uma época em que já existem 90 propostas em tramitação pelo país que tentam evitar que os professores “façam a cabeça dos alunos”?
Tania – Quando digo que é preciso pensar criticamente a educação, estou me referindo – evidentemente – a pessoas que tenham real embasamento para discutir o assunto. Termos 90 propostas no legislativo demonstra que pouca gente considera Educação uma área de saber, como Engenharia ou Medicina. No que tange à Educação, parece que todos se consideram “aptos”! Daí 90 projetos em análise. Burburinhos da sociedade repetem à exaustão que a escola tem que ser lúdica; e aí surge uma corrente defendendo a ideia de que é preciso que a escola seja divertida. E não se conta aos jovens que para avançar na vida, se tem que estudar, suar a camisa! Assim, ao invés de se fortalecer a importância do esforço pessoal e do estudo, a sociedade como que justifica a evasão de 52% dos jovens do Ensino Médio, porque, afinal, ao se deparar com a realidade, eles descobrem que a escola não tem como não exigir concentração e dedicação. Imediatismo que os vem levando a uma vida de baixa qualidade e pouca esperança, porque mal formado, subempregado sempre permanecerá.
Foto: J. Egberto/Divulgação Foto: J. Egberto/Divulgação
Tania – Creio que pouca gente entende bem o que é escola com e sem partido. Uma coisa é o professor expressar uma opinião sobre um dado assunto – algo que deve ser permitido e aprovado sempre. Opinião, não imposição. Outra, muito diferente, é a condução do pensamento de jovens em direção a um caminho que o docente, se prevalecendo da sua capacidade intelectual mais desenvolvida, apresenta como única possível e correta… Escola sem partido é aquela em que o professor apresenta para o seu aluno todas as versões de um mesmo fato, todas as possibilidades, e correntes de um mesmo assunto. E na qual pode até apresentar a sua posição, caso lhe peçam. Aliás, o professor na sua formação é orientado para agir desta forma. O projeto de lei que está se discutindo no Legislativo tem impropriedades gritantes – como a punição para o professor. Um total absurdo e radicalização.
EC – No final das contas professora, pensando na nossa educação, tem solução?
Tania – Com toda certeza! Se não tivesse plena confiança de que podemos reverter o lamentável quadro atual, não estaria correndo este Brasil de cabo a rabo, com 50 anos de docência, e levando minha mensagem, crítica sim, mas também de muita fé no futuro e nas possibilidades deste belíssimo país, que tanto amo… Claro só alcançaremos este objetivo, se houver vontade, decisão e continuidade por parte das autoridades educacionais em relação às medidas a serem tomadas. Alguns erros do passado precisam ser corrigidos (e logo!). É preciso coragem para encarar os problemas gerados por medidas equivocadas. E partir para saná-los.