Foto: Igor Sperotto
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É inevitável conhecer Maria Tugira sem comparar sua estatura física com a capacidade que tem de mobilização social e a força de trabalhar pela própria sobrevivência. A senhorinha de 57 anos tem 1 metro e 45 centímetros, 48 kg, e teve sete filhos. Começou a lida aos oito anos. Foi empregada doméstica, boia-fria na capinagem de soja e colheita de milho. Nascida em Rosário do Sul, foi morar em Uruguaiana aos 21 anos para buscar sustento no lixão, onde se identificou com os movimentos sociais. Foi uma das lideranças que, em 2001, realizaram o primeiro Congresso Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis, em Brasília. Cumprindo múltiplas jornadas diárias, conseguiu concluir o ensino fundamental e contribuiu com as lutas que redundariam na aprovação da histórica Política Nacional de Resíduos Sólidos, sancionada em 2010, depois de amplo debate com a sociedade. No dia 10 de março, foi uma das mulheres a receber o Troféu Mulher Nota 10 da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, em comemoração ao Dia Internacional da Mulher. Nesta entrevista, ela fala das dificuldades do trabalho na área, da falta de incentivo do poder público, da falta de campanhas permanentes para a conscientização da população e da máfia do lixo, empresas privadas que estão tentando “vender” para os governos a incineração do lixo para gerar energia. “Se as empresas incinerarem os materiais recicláveis vão prejudicar o meio ambiente e gerar graves problemas sociais”.
Extra Classe – A senhora é considerada emblemática no país por sua luta. Como começou?
Maria Tugira – Fui trabalhar no lixão em Uruguaiana há uns 35 ou 36 anos. Eram mais de 200 pessoas num lixão a céu aberto, nas piores condições, pessoas vivendo na mais extrema pobreza. Via muitas meninas com gravidez precoce, muita gente com HIV, muita drogadição, principalmente entre adolescentes, que são os mais vulneráveis. As mulheres sempre são a maioria nesse tipo de trabalho, e enfrentam jornada múltipla, cuidando de filhos em casa e em diversas atividades na rua. A doença é uma convivência diária. Eu, graças a Deus, nunca peguei nenhuma doença, mas vi companheiras morrerem com câncer, com leptospirose. No lixão não tem nem água pra beber. As pessoas esperam o caminhão chegar, e quando chega disputam o que despeja. Convivem com muitos outros riscos. Companheiras morreram atropeladas também; os caminhões que despejam o lixo acabam às vezes machucando alguém, e até matando. A gente precisava se organizar. A militância eu comecei em 2000. Conheci o movimento social pela professora Medianeira (Maria Medianeira Ibanez Alberto) que faz um trabalho diferenciado, em várias atuações, por direitos de mulheres, deficientes físicos, pescadores e pescadoras, em lutas por moradia, no Cpers/Sindicato. Ela sempre nos deu assessoria e mostrou o caminho da organização.
Foto: Igor Sperotto Foto: Igor Sperotto
Maria Tugira – Já tivemos muitas conquistas. Hoje há muitas cooperativas e associações de catadores e catadoras no Brasil que já estão em alto nível de organização, com grandes resultados, com recursos, com galpões próprios para separação de materiais recicláveis, com horários estabelecidos, com renda garantida, com capacitações para o trabalho. Em Gravataí temos um bom exemplo, aqui perto de Porto Alegre. Mas ainda há muitos homens e mulheres trabalhando em situações difíceis; gestantes, e também idosos, adolescentes e crianças. Os lixões incham, com gente demais na catação, e as pessoas vão pras ruas na catação. A rua também é trabalho forçado, sem hora de voltar pra casa, sem hora de sair pra comer. A maioria das mulheres ainda sofre muito nesse tipo de trabalho. Sofremos preconceito diariamente. A luta é muito grande. Em 2002 conseguimos o reconhecimento como profissionais, mas a gente ainda é discriminada. Nos chamam de lixeiros, mas o que fazemos é tirar das ruas uma matéria prima altamente nociva ao meio ambiente. Muitas pessoas ainda acham que quem faz esse trabalho é vagabundo. Cansamos de ouvir ‘não mexe no meu lixo’. Somos discriminados diariamente. Somos invisíveis para a sociedade. Ninguém quer enxergar a pobreza e o trabalhador pobre. É melhor que a gente permaneça invisível. Se tiver visibilidade é um problema para o gestor público. É um problema enxergar que existem idosos, mulheres grávidas, pessoas doentes e crianças trabalhando, que existem pessoas expostas a condições irregulares de trabalho.
EC – Mas vocês não conversam com as pessoas nas ruas? As pessoas não entendem a dignidade desse trabalho e a necessidade de separar o material reciclável?
Maria Tugira – Falta conscientização. A maioria das pessoas ainda joga tudo misturado no lixo. Precisamos de um trabalho de saúde pública. A maioria das pessoas acha que não tem que separar o lixo. Claro que progredimos. Hoje temos escolas, empresas, casas em que o material reciclável é separado. Tivemos muitos avanços. Conseguimos que os catadores e catadoras vissem seu próprio potencial, que se reconhecessem como cidadãos. Éramos muito mais excluídos. Hoje nos destacamos como seres humanos, temos senso crítico. Mas a maioria das pessoas da sociedade ainda acha que é dever da prefeitura levar o lixo, e que elas não têm nenhuma obrigação. Fazemos campanhas, distribuímos panfletos, mas é uma coisa cultural. A sociedade é irresponsável com o meio ambiente. Não é só uma questão de diminuir o volume de lixo que vai para os aterros sanitários. A questão é evitar substâncias poluentes, evitar jogar no lixo o que ficará na natureza por anos e anos esperando o tempo da deterioração. A gente tem dinamizadores ambientais, vamos às escolas, fazemos palestras. Quando voltamos nas escolas, o lixo tá lá do mesmo jeito, todo misturado. De tudo o que é jogado, 90% poderia ser reaproveitado, mas não é. Metais ferrosos e não ferrosos, papelão, plástico, alguns já reaproveitam isopor, o vidro ainda é um problema pois é difícil encontrar comprador.
EC – A senhora disse que as mulheres são mais discriminadas do que os homens. Como isso acontece nesse setor de trabalho?
Maria Tugira – Lutamos por igualdade também nessa área em que somos maioria. Os homens são privilegiados em relação a nós. Por exemplo, em funções como motorista. Nesta função, não precisa ser profissional da reciclagem, e os trabalhadores ficam bem menos expostos aos riscos de contaminação e acidentes de trabalho. E os salários são diferenciados. Os coletores que trabalham nos caminhões também. As mulheres querem ocupar vagas que são exclusivas para os homens. Eles têm mais postos de trabalho disponíveis e melhores remunerações, mesmo eles sendo minoria. No próprio movimento dos catadores e catadoras, os homens ocupam os espaços de destaque no cenário nacional. Eles são destaque nas direções de cooperativas e associações. Queremos ocupar esses espaços. Temos um grupo de mulheres, do qual eu faço parte, em fase de formação de uma Secretaria Nacional de Mulheres, no Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), com objetivo principal de lutar pelo reconhecimento dos direitos das mulheres. Essa secretaria terá bases nos estados também, e está sendo discutida na Comissão Nacional do MNCR. Essa comissão é constituída por delegados indicados pelas Coordenações Estaduais, por sua vez formada pelos Comitês Regionais, que são instâncias de toda a base de trabalhadores e trabalhadoras. Agora mesmo eu estava em Brasília, neste debate, que também está tendo nas outras instâncias do Movimento. Gostaríamos de levar esse debate também para o fórum que acontece em Salvador (Fórum Social Mundial), mas não tivemos recursos financeiros para realização desse tema no fórum, acabamos apenas participando, com alguns representantes.
EC – O que representou para os catadores e catadoras a Política Nacional de Recursos Sólidos (PNRS), sancionada em 2010?
Maria Tugira – Tivemos muitos benefícios com a essa política. Foi importante para acabar com muitos lixões (que é uma das determinações da PNRS), tivemos mobilizações em apoio ao nosso trabalho, os governos implantaram galpões para trabalhar de modo organizado. Tivemos no Rio Grande do Sul, por exemplo, o Projeto Cataforte (parceria da Secretaria Nacional de Economia Solidária, MNCR, bancos públicos e Fundação Luterana de Diaconia, para formação profissional, assistência técnica e recursos para logística), que nos trouxe muitos avanços. Mas até hoje seguimos na luta por organização. Falta ainda muito incentivo e políticas públicas. A Política Nacional de Recursos Sólidos foi bastante importante, mas hoje sofremos retrocessos. Muitas bases ainda estão desestruturadas, não foram alcançadas por esse tipo de projetos. E atualmente cada dia aumenta mais o desemprego, e há mais disputa por materiais recicláveis. Cada vez tem mais pessoas que não são profissionais da área buscando a catação como meio de sobrevivência. Em Uruguaiana, por exemplo, não tem mercado de trabalho pra oferecer, não tem uma grande empresa, grande indústria, nossa Associação de Catadoras e Catadores Amigos da Natureza (Asclan) tem recebido cinco a dez pessoas todos os dias, que não são da área da reciclagem, se oferecendo para o trabalho. E essas pessoas disputam com a gente também recolhendo nosso material lá nos bairros, antes da gente chegar. Uruguaiana é um dos maiores municípios da Fronteira Oeste (125.435 habitantes, segundo o IBGE), e lá não tem emprego, a base da economia era a agropecuária, e a plantação de arroz caiu muito. Tinha muito trabalho rural. Nossa associação tem 51 sócios, que já é um número bastante alto para o mercado local. Atualmente a gente se mantêm mais por conta do projeto que tem apoio da Fundação Luterana, senão não teria sustentabilidade.
Foto: Igor Sperotto
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Maria Tugira – A Aclan presta serviço para recolhimento do material reciclável em dez bairros e na área central da cidade. Mensalmente são recolhidas 50 a 60 toneladas, em média 1 tonelada por associado, e cada um recebe por isso entre R$ 700 e R$ 800, para turnos de trabalho de seis horas por dia. Fazemos a coleta de carrinho e também de caminhão. No galpão fazemos triagem do material, armazenamos e vendemos o material bruto prensado. A venda dá em média mais R$ 200 a R$ 250 mensais para cada catador. Somos uma associação ainda muito nova. Saímos do lixão em 2013, e em 2014 começamos a coleta. É bem recente. A Aclan tem muitas despesas. Com combustível, alimentação, Previdência Social, transporte, manutenção de equipamentos e veículos, água, luz. E a prefeitura fica até três meses sem fazer o repasse para a associação. Em tudo que é lugar é assim. As prefeituras estão no vermelho. Os catadores e catadoras ficam em segundo plano. Tem dinheiro, paga. Se não tem, espera. E tem pior que isso. Existem empresas em tratativas com a prefeitura de Uruguaiana para a utilização do lixo para a geração de energia. Esse é uma das maiores ameaças que sofremos hoje no Brasil. Inclusive há as mesmas tratativas em Porto Alegre. Querem queimar lixo pra gerar energia. É uma mina de ouro. Essa é uma ameaça antiga. Em 2012, o governo federal fez audiências públicas, as prefeituras se comprometeram, e as ameaças foram afastadas. Agora a máfia do lixo voltou com ameaças, em todo o Brasil. As incinerações são danosas pro meio ambiente, pois sem a reciclagem vão gerar mais exploração de recursos naturais, além da emissão de poluentes durante a queima. Alguns prefeitos, leigos no assunto, pensam que vão resolver todos os problemas com uma varinha mágica. Não existe mágica. Eles solucionam o problema do lixo e ganham problemas ainda muito maiores. Mesmo que eles não queiram ver, o problema vai bater na porta deles. Se as empresas incinerarem os materiais recicláveis, vão gerar graves problemas sociais. O que os prefeitos vão fazer com os catadores? Vão queimar junto com o lixo? E as famílias? Algumas com oito, dez pessoas… vão queimar junto com o lixo?