A Justiça do Trabalho está ameaçada de extinção
Foto: Igor Sperotto
Há um movimento cada vez mais articulado no país que pegou carona na reforma trabalhista para defender a extinção da Justiça do Trabalho. A constatação é do desembargador Luiz Alberto de Vargas, do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT4), a partir de declarações de ministros de instâncias superiores do judiciário, de autoridades e da cobertura negativa aos atos do judiciário trabalhista pela grande imprensa. “Quando cai a demanda de processos trabalhistas por conta da reforma, não só dizem que os processos estão sendo resolvidos fora do âmbito do judiciário, mas passam a apresentar a Justiça do Trabalho como desnecessária”, exemplifica Vargas, que é coordenador de Comunicação Social e Relações Institucionais Tribunal. “Temos uma ameaça séria e concreta de redução substancial da verba da Justiça do Trabalho no orçamento. Estamos alertando a sociedade para a gravidade dessa ameaça à essa que é a instância do judiciário mais estimada no país, a mais procurada e na qual a população mais confia”, alerta nesta entrevista.
Extra Classe – Essa é a primeira vez que uma mobilização em defesa da Justiça do Trabalho é promovida por desembargadores. Por quê?
Luiz Alberto de Vargas – É a primeira vez que essas ameaças mobilizam a Justiça do Trabalho de forma institucional. O que provoca essa mobilização é a reforma trabalhista, que alterou profundamente o judiciário trabalhista e o próprio direito do trabalho, de maneira profunda, muito pouco pensada, muito pouco debatida e de uma forma muito equivocada, tecnicamente errada e a concepção de fundo também equivocada. Tecnicamente errada porque muitos dispositivos parecem à primeira vista inconstitucionais, outros são contraditórios entre si, outros pretendem regular matérias difíceis, mas ao invés de esclarecer criam mais dificuldades interpretativas e de aplicação. E numa questão de fundo e que trabalha com a ideia de que é possível uma desregulamentação ampla, profunda, das relações de trabalho, sem que isso tenha tremendas consequências sociais, política e inclusive econômicas.
EC – Por que a reforma acaba com o direito protetivo que caracterizava as leis trabalhistas?
Vargas – Se nós temos um direito do trabalho que desde o nascedouro, desde lá no tempo de Vargas era um direito protetivo, ou seja no sentido de que se garantia um patamar mínimo de direitos ao trabalhador, garantia pelo menos que os contratos individuais não fossem precários, fossem favoráveis ao trabalhador, a lógica da reforma é o contrário. Ela institui em muitos aspectos uma livre negociação entre trabalhador e empresário, sem atentar para as consequências graves disso. Ou seja, a contratação abaixo da lei, a precarização. É claro que um mundo do trabalho organizado em cima de uma regulação estatal é evidente que não se conformaria com uma coisa dessa ainda mais dessa forma.
EC – Como entender paradoxos criados pela reforma, que incentiva a livre negociação e enfraquece os sindicatos?
Vargas – Uma relação de trabalho melhor regulada por via de negociação coletiva, ou seja, de acordo direto entre sindicatos e empresas, pressupõe o fortalecimento bastante grande dos sindicatos, para eles poderem negociar. Mas a reforma faz o contrário, ela bate especialmente nos sindicatos, tira a contribuição sindical, a sustentação, não cria mecanismo protetivos, ao contrário, cria representação de trabalhadores fora da estrutura sindical. Esse tipo de reforma está criando enormes dificuldades não só para a Justiça do Trabalho, mas para os empresários. Eles não sabem se devem e como vão aplicar a reforma. Uma enorme insegurança jurídica, no mundo empresarial e também no mundo do trabalho, os próprios sindicatos não sabem o que fazer.
EC – A Medida Provisória 808, editada pelo governo para ajustar alguns pontos da reforma perdeu a validade em 23 de abril. Isso aprofundou a insegurança jurídica?
Vargas – O governo editou uma Medida Provisória para regular aspectos próprios. Parlamentares que aprovaram a reforma diziam que era necessário que o governo editasse senão eles nem aprovariam com a pressa que o governo queria. Quando o governo editou a MP fez de uma maneira tão confusa que a maior parte dos especialistas achou que era melhor não ter editado a medida. Criou uma enorme confusão, não sustentou e agora caiu a MP. Criou um vácuo legal, ninguém sabe, afinal de contas, o que está valendo. Por conta disso, não só paralisou as negociações coletivas, paralisou a própria relação do trabalho. Mas também criou uma enorme insegurança jurídica que a Justiça do Trabalho não sabe também como resolver. Caiu o número de demandas trabalhistas, por exemplo.
EC – O que explica a redução no número de ações trabalhistas ajuizadas por trabalhadores?
Vargas – O governo e muitos políticos argumentam de uma maneira cínica que essa queda de ações se deve ao fato de que os conflitos trabalhistas estariam pacificados. Ao contrário, nunca estiveram tão agudizados. E não satisfeitos com isso, querem jogar no colo da Justiça do Trabalho todo o imbróglio jurídico criado pela reforma e que vai ser muito difícil de resolver, colocam em pauta questões que são muito complicadas não só no contexto brasileiro, como o trabalho intermitente, que é a desvinculação do tempo do trabalho da remuneração. Isso exigiria uma grande discussão na sociedade, um debate muito profundo e, a partir daí, uma regulamentação. Mas não, a reforma coloca isso na pauta, não explica como vai fazer, e manda a Justiça do Trabalho resolver. Além disso, parte da reforma acaba comprometendo o próprio funcionamento da Justiça do Trabalho. De forma inédita no mundo, e aí é difícil imaginar quem é que pensou isso, saindo de um modelo de justiça que nós temos que é uma justiça barata e, sempre que possível, gratuita, nós estamos passando para um modelo anglo saxão em que parte dos custos do processo é suportado pelo próprio cidadão. Então de uma forma inédita, porque nunca se pensou nisso desde que a Justiça do Trabalho foi criada, de que mesmo o insuficiente, o carente, o necessitado, que não tem dinheiro para demandar, mesmo tendo sua condição reconhecida pelo próprio juiz, ele é condenado, se for o caso, com custas. O empregado que perder a ação está sujeito a pagar a ação, e de uma forma tão drástica, os honorários da outra parte. É evidente que até saber se isso vale ou não, se é constitucional ou não, há uma inibição de demandas trabalhistas.
Foto: Igor Sperotto
EC – E de outro lado, a reforma afasta os sindicatos do ato de rescisão dos contratos de trabalho, momento em que o trabalhador mais é lesado em seus direitos…
Vargas – A medida precarizante é tão grande que nesse momento em que se fragiliza a Justiça do Trabalho, se fragiliza os sindicatos, ainda se tira, por exemplo, a possibilidade de os sindicatos homologarem as rescisões contratuais. Se tira o espaço da Justiça do Trabalho, se enfraquece o sindicato e tira atribuições que o próprio sindicato tinha, esse trabalhador vai para onde? Parece que a ideia é de uma desregulamentação e de uma desproteção do trabalhador em toda a linha. Esvaziamento das instituições.
EC – O senhor afirma que a Justiça do Trabalho está ameaçada de extinção. O que há de concreto em relação a isso?
Vargas – O cinismo vai além. Quando cai a demanda por conta da reforma, não só dizem que os processos estão sendo resolvidos fora da Justiça, a Justiça do Trabalho passa a ser apresentada na imprensa como desnecessária. Os juízes do trabalho, os ministros do TST, e demais instâncias, apontaram os erros da reforma, foram inclusive em audiências públicas no Congresso, mostrando que a reforma, do jeito que estava sendo feita era muito ruim. Mas isso não implica que nós não vamos aplicar as leis que o Congresso produz. Nós não temos o poder de não aplicar a lei que o Congresso faz. Agora, assim como nós temos o dever de aplicar a lei, e isso está no juramento do juiz, nós temos também a obrigação de aplicar a Constituição Federal. E o dever funcional, ético, e até como cidadãos, de, se for o caso, declarar a inconstitucionalidade de vários aspectos da lei, ou a sua inaplicabilidade ou sua incongruência com outros aspectos do ordenamento jurídico. Se isso acontecer não é deixar de aplicar a reforma, mas aplicá-la na forma constitucional. Agora, o que a imprensa destaca são manifestações de figuras eminentes da República. Vou citar expressamente o ex-presidente do TST, Ives Gandra Martins Filho, que declara que os juízes devem “aplicar a reforma” sob pena de extinção da Justiça do Trabalho. São duas coisas graves. Em primeiro lugar, “aplicar a reforma” é interpretado como aplicar a reforma no sentido que alguém pretende que a reforma tenha e não à luz do direito do trabalho, da Constituição e das convenções internacionais do trabalho. O que está bem claro em termos de ameaças é: ou aplicam a reforma que aparentemente foi feita para precarizar o mundo do trabalho e reduzir bastante o custo da mão de obra no Brasil tal como sustentam os empresários ou a Justiça do Trabalho vai ser extinta. E aí está a segunda coisa grave, uma ameaça de extinção da Justiça do Trabalho.
EC – É um movimento?
Vargas – É. O que causou o movimento foi a reforma. A gente tem visto uma preocupação muito grande de alguns atores políticos em mostrar que nesses seis meses desde a aprovação da reforma a Justiça do Trabalho teria demonstrado que é dispensável, basicamente com a ideia de que caiu o número de demandas. Ao mesmo tempo há um grande destaque da imprensa a decisões que são minoritárias, que eu diria estritamente do ponto de vista constitucional são duvidosas, do ponto de vista político são bastante apressadas e que condenam o reclamante, decisões isoladas que aplicam a reforma em curso e que condenam o reclamante a pagar custas e honorários às vezes em valores no mínimo extravagantes. A essas decisões a imprensa coloca uma lente de aumento espetacular e ainda diz “isso é aplicar a reforma”, quando são decisões de primeira instância. E quando essas decisões caem em uma instância superior do judiciário, isso não é noticiado. E não dão destaque a 90% dos juízes do trabalho do país que não aplicam esse entendimento. Mas o destaque é dado apenas no entendimento extravagante.
EC – O senhor está afirmando que a reforma não muda a conduta do judiciário trabalhista no que se refere a promover a justiça e defender os direitos de quem a procura?
Vargas – Criou-se um temor do judicionado em acionar o poder judiciário, quando na realidade é o contrário, nós temos 70 anos de prova pelo número de ações que nós temos. A Trabalhista é a instância do judiciário mais estimada no país, mais procurada e na qual a população mais confia. Por conta disso e por conta de ataques permanentes da imprensa e dos empresários, de autoridades, do presidente da câmara, e o recente voto do ministro Barroso, que fundamentou seu voto com um libelo contra a Justiça do Trabalho, quase que endossando todos os argumentos dos que propõem a sua extinção… Por conta de tudo isso, nós temos uma ameaça séria e concreta de redução substancial da verba da Justiça do Trabalho no orçamento. Já está praticamente inviabilizada a Justiça do Trabalho com o orçamento precário que o Congresso nos deu para 2018. E a ameaça de que ele vai praticamente fechar a Justiça do Trabalho em 2019. E temos que levar em conta que o relator do orçamento do ano que vem será o ex-ministro Ricardo Barros que se declara sem nenhuma hesitação um inimigo da Justiça do Trabalho. Nesse momento seria uma falta de tino político e de sensibilidade se a Justiça do Trabalho não chamasse a comunidade para que ela ao menos diga do apreço que tem pela Justiça do Trabalho e que não está disposta a aceitar de maneira passiva que ela seja extinta. Até porque se acabar com a Justiça do Trabalho tem que propor uma coisa melhor para que milhões de trabalhadores não fiquem ao desabrigo.
EC – Como o senhor recebeu a inclusão do Brasil na lista suja da OIT de países que descumprem as normas internacionais de proteção dos trabalhadores?
Vargas – A posição do Comitê de Peritos reitera o que o representante do OIT falou nas (poucas) audiências públicas no Senado: há aspectos muito preocupantes na Reforma, que precarizam o trabalho em sentido oposto ao que preconiza a OIT, ou seja, o compromisso dos países com o trabalho decente, aquele que assegura aos trabalhadores um emprego que respeita um padrão mínimo de direitos como previstos nas Convenções internacionais ratificadas pela maioria dos países, inclusive o Brasil. Especialmente no que tange à prevalência do negociado sobre o legislado, à terceirização da atividade-fim, à pretensão de descaracterizar típicos trabalhos subordinado como se autônomos fosse, de negação de acesso à um processo justo, de negação da autonomia coletiva e de enfraquecimento dos sindicatos. Tudo isso contraria normas internacionais que foram internalizadas pelo Brasil ao ratificar as convenções da OIT e, de acordo com a Constituição (artigo 5, parágrafo 3) entram no ordenamento jurídico nacional como normas supralegal. Ou seja, caso a lei contrarie a lei, à Constituição determina que se aplique a norma internacional – e não a lei. É o que se denomina controle de convencionalidade. Isso apenas demonstra como foi apressada à aprovação da Reforma pelo Congresso Nacional. E como está sendo difícil ao Judiciário do Trabalho aplicar um lei tão malfeita.