O viadinho da escola: uma história de ódio e preconceito
Foto: Acervo Pessoal
A escola nunca foi um espaço de respeito às diferenças. Para chegar a essa constatação, que abre a apresentação do recém-lançado livro O viadinho da escola (Appris editora, 2018, 83 p.) o professor Robson Rodrigo Pereira da Fonseca, 34 anos, reviveu suas memórias e as violências que sofreu desde quando era aluno na pré-escola, e as confrontou com sua vivência atual, na condição de professor. “Talvez a mais dolorosa lembrança foi quando fui agredido fisicamente ainda na pré-escola por um menino, que já naquela época me chamava de ‘menininha’. Mas as violências psicológicas permearam toda a minha vida escolar, de diferentes formas sofri as dores por ser diferente”, relata nesta entrevista ao Extra Classe. Graduado em História pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali) e com pós-graduação em Gênero e Diversidade na Escola pela Universidade Federal de Santa Catarina (Ufsc), Robson Fonseca é professor de História, atua como pesquisador nas áreas de Educação, História, Gênero e Gestão Pública e é diretor do Sindicato dos Professores de Itajaí e Região (Sinpro). A proposta do livro, que amplia sua tese da pós-graduação, é relatar como o espaço escolar hostiliza os homossexuais, mostrar a escola vista por quem sofre bullying e onde todos, inclusive alguns professores, fomentam discursos de ódio e discriminação.
Extra Classe – O livro O viadinho da escola relata suas experiências, primeiro na condição de aluno e, depois, enquanto professor, frente aos preconceitos e despreparo da escola em relação à diversidade de gênero e desrespeito às diferenças. O que o motivou a escrevê-lo?
Robson Rodrigo Pereira da Fonseca – Eu tinha muito interesse em relatar como é o espaço escolar para nós homossexuais, ou seja, mostrar a escola vista por quem sofreu as dores do bullying e descortinar a sala dos professores e professoras, mostrando que alguns daqueles que deveriam proteger os alunos das violências verbais e físicas do preconceito são, inclusive, fomentadores de discursos de ódio e discriminação. E quando eu entrei, em 2016, na pós-graduação em Gênero e Diversidade na Escola que fiz na Universidade Federal de Santa Catarina (Ufsc) tive a oportunidade de pesquisar e escrever sobre o tema, que acabou se tornando o livro O viadinho da escola, em que trabalho sobre a perspectiva da observação participativa, ou seja, conto a minha história, o que sofri, e os discursos preconceituosos que ainda ouço de colegas professores e professoras.
EC – Quais são as memórias mais marcantes dessa discriminação?
Fonseca – Quando comecei a escrever o livro acabei relembrando memórias que eu mesmo achava que já havia esquecido. Às vezes parece melhor esquecer para superar e seguir em frente, mas para eu escrever o livro e levar experiências para outras pessoas eu precisava recordar, e foi bem difícil. Foi difícil lembrar, escrever e ler nas revisões, pois me machucava. Eu lembrava dos garotos me chamando de viadinho antes mesmo de bater o sinal para entrarmos em sala. Talvez a mais dolorosa lembrança foi quando fui agredido fisicamente ainda na pré-escola por um menino, que já naquela época me chamava de “menininha”. Mas as violências psicológicas permearam toda a minha vida escolar, de diferentes formas sofri as dores por ser diferente.
EC – Como os professores o tratavam enquanto aluno diferente e como era o relacionamento com os colegas em sala de aula?
Fonseca – É claro que eu tive amigos e excelentes professores, pessoas que me trataram com muito carinho. Mas muitas vezes o silêncio frente ao que eu sofria me deixava inseguro, porque se meus colegas e professores presenciavam os ataques e ficavam calados, era como se concordassem que eu realmente era o viadinho, que meus opressores estavam certos, e não havia nada a ser feito, afinal eu tinha trejeitos. Não me lembro de nenhuma repreensão ou advertência a algum colega opressor, apenas o pedido de silêncio, e pronto! Sempre fui um bom aluno, com bom rendimento. Lembro de ajudar colegas com dificuldade, era participativo, mas isso não bastava, pois meus trejeitos me identificavam, e era comum eu ser imitado pelos meninos da sala, como eu me expressava. Com o tempo fui entendendo que quanto mais trejeitos eu tivesse, mais eu sofreria. Entendi desde cedo que era preciso me conter para não ser alvo de ataques.
EC – O senhor afirma que o preconceito em relação aos homossexuais não está apenas no discurso dos estudantes, mas na família, na mídia e no sistema educacional e que os professores o reproduzem com mais intensidade. Por quê?
Fonseca – Muitos educadores levam para as escolas seus preconceitos, logo, não se preocupam com certos ataques que alguns alunos sofrem, como no caso da homossexualidade. Existem pequenos avanços, porque hoje alguns professores estão “saindo de seus armários”, mas muitos preconceituosos também saíram dos seus. Os preconceitos antes velados, agora são deferidos como “liberdade de expressão”. Há muito ainda por fazer, especialmente na formação. Acredito que se, já na formação inicial e depois em formações complementares, essas temáticas forem incluídas no currículo dos professores, isso poderá ajudá-los a entenderem os diferentes, resolverem suas fobias e ajudarem os alunos. Pois uma escola que não protege também desmotiva, e uma escola que desmotiva também é culpada pela evasão, baixo rendimento e reprovações. Há estudos que revelam que muitos alunos homossexuais preferem parar de estudar a enfrentar seus opressores no ambiente escolar. E essas violências podem trazer problemas irreparáveis como baixa autoestima, automutilação e até mesmo o suicídio. Os professores precisam reconhecer e proteger os alunos que sofrem, mas para isso terão que se libertar dos seus preconceitos.
Foto: José Luis Bary/ Divulgação
EC – Por que a escola, que deveria ser um lugar de acolhimento e respeito à diversidade, discrimina quem é diferente e é especialmente cruel com os homossexuais?
Fonseca – A escola, assim como a sociedade, precisa avançar. A sociedade traz a heterossexualidade como padrão, e os diferentes sofrem a marginalização. A escola reproduz este conceito, e os diferentes não se entendem, e não são entendidos pelos outros, ou seja, o preconceito cresce! É o que podemos chamar de heteronormatividade, em que apenas o modelo hetero é representado nas mídias, discursos, materiais didáticos, exemplos em sala de aula… Não falar de gênero, não falar de sexualidade, não falar de multiculturalismo na escola é perder a oportunidade de garantir uma formação de indivíduos menos preconceituosos, e de uma sociedade mais crítica, justa e igualitária.
EC – A escola ainda reflete a intolerância de boa parte da sociedade em relação às minorias, à diversidade de gênero, raça, religiões?
Fonseca – A escola reflete sim os preconceitos, afinal, a escola é feita de pessoas. É preciso que essas pessoas que fazem a escola compreendam as diferenças e não reproduzam seus preconceitos no ambiente escolar, afinal, educadores que reforçam discursos de ódio estimulam outros tipos de violências e agressões. E o caso do Brasil é um exemplo à parte. A violência contra os LGBTs tem aumentado muito. Estimativas apontam que a cada 19 horas um LGBT é assassinado ou se suicida vítima da “LGBTfobia”, o que faz do país o campeão mundial desse tipo de crime. Os dados são assustadores, e gritam por políticas públicas que respeitem e incluam os diferentes e punam os agressores. Especificamente no ambiente escolar, o Brasil conta com a Lei 13.185/2015, que assegura medidas de conscientização, prevenção e combate à violência e à intimidação sistemática, o bullying, nas escolas. É preciso que esse combate ao bullying aconteça sempre, e que a escola pare de invisibilizar as “brincadeiras” dos opressores.
EC – A escola também reproduz os estigmas por meio da naturalização do preconceito…
Fonseca – Os estigmas acontecem, pois o preconceito entra nos muros das escolas e muitas vezes não é combatido, porque as falas dos alunos opressores muitas vezes reproduzem os preconceitos dos educadores, que percebem esses discursos como algo “normal” e não fazem nada. O preconceito não é combatido na escola e volta para a sociedade ainda maior, pois se até na escola os estigmas são ressaltados em piadinhas e ninguém faz nada, os opressores tornam-se agressores cruéis, escondidos atrás de um perfil fake nas redes sociais, causando e propagando o ódio, ou agredindo e matando LGBTs nas ruas do Brasil.
EC – Como os professores podem mudar essa realidade?
Fonseca – Os professores podem mudar, despindo-se de seus preconceitos, informando-se e formando-se sobre a diversidade, garantindo práticas docentes inclusivas e não discriminatórias, abordando as diferenças, e especialmente intervindo frente a violências e discursos preconceituosos.
EC – Como a diversidade está colocada na formação docente?
Fonseca – Sou professor há quase 15 anos e apenas uma vez em uma formação continuada falou-se sobre diversidade de maneira muito curta e pouco esclarecedora. Me formei em História em 2005 e não havia nenhuma disciplina voltada ao debate específico de gênero. Tive a sorte de ter professores, poucos, que levavam leituras importantes sobre diversidade e a prática de ensino, o que me fez refletir sobre a importância de compreender, respeitar e proteger os alunos diferentes. Por isso, a importância de se trabalhar essas temáticas já na formação docente, para esclarecer, e tornar os novos professores ávidos por defender os alunos de toda e qualquer forma de violência e exclusão.
EC – Quais são as mudanças necessárias nos modelos educacionais para o enfrentamento dessa realidade em que “muitas crianças e adolescentes estão sofrendo”?
Fonseca – Quem vive a escola sabe que ela é excludente, seja pelas marcas que os indivíduos carregam, pela condição financeira, crença e tantas outras formas de preconceito e sabe que há muito chão a ser percorrido para que essas violências sejam exterminadas. Mas a formação dos professores e a legislação adequada de defesa e proteção aos LGBTs são pontos importantes que precisam avançar, assim como uma série de outras questões que são fundamentais para termos escolas mais justas e igualitárias. O grande problema hoje é a interferência de pessoas que não entendem como é o ambiente escolar e estão preocupados com as temáticas e didáticas trabalhadas pelos professores, esquecendo que este é o nosso trabalho, que nos formamos para isso, e que não queremos impor nada aos nossos alunos, apenas que aprendam que no mundo há diferenças e que eles precisam respeitá-las.
Foto: José Luis Bary/ Divulgação
EC – Como imaginar uma educação não binária no ambiente escolar em um contexto de tantos retrocessos na sociedade, como a antirreforma do ensino público, os episódios de censura às artes, o avanço de concepções fascistas como o ‘projeto escola sem partido’?
Fonseca – É exatamente esse tipo de interferência que atrapalha na elaboração de uma escola e um mundo mais justos. Pessoas com fobias querendo interferir nas práticas igualitárias. Eu não tive nenhum tipo de exemplificação da homossexualidade, nenhuma palestra esclarecedora sobre o assunto nas escolas nas quais estudei, e mesmo assim sou gay. As pessoas têm que parar de pensar que a homossexualidade é algo transmissível e que pode ser ensinada com cartilhas ou aulas de professores. Essa falta de esclarecimento que eu e meus colegas tivemos na infância e adolescência serviu apenas para que eu sofresse ainda mais por não me entender, e nem ser entendido pelos meus colegas. Explicar sobre as diferenças não é ensinar os alunos a serem homossexuais e sim entenderem que existem pessoas diferentes, e que todos devem ser respeitados. Excluir disciplinas e conteúdos que estimulam o debate de tabus sociais é um retrocesso e isso vem acontecendo pela falta de laicidade do Estado, apoiado por representantes políticos que defendem um determinado credo, sem respeitar o pensamento e o comportamento do outro.
EC – Uma mudança de paradigma com vistas a uma educação sem preconceitos enfrenta quais resistências?
Fonseca – Na minha opinião, a maior resistência a uma educação sem preconceitos é a ignorância. Ela cega, atrapalha, e cria retrocessos inimagináveis em qualquer ambiente escolar, seja ele denominado confessional ou laico, até porque, nos espaços ditos laicos há educadores que levam suas crenças e com elas suas práticas e seus preconceitos, não respeitando muitas vezes a opinião e comportamento de outros colegas e alunos.
EC – O livro também elenca uma série de questões sobre gênero e aborda a omissão da Legislação educacional. Quais são as constatações mais importantes da pesquisa?
Fonseca – As constatações são contemporâneas, estamos observando nos planos municipais a interferência de legisladores que optam pela retirada da palavra “gênero” com medo que isso dê “oportunidade” de ser trabalhado pelos professores nas escolas. Esse medo é reflexo de uma sociedade que não vem recebendo informações e esclarecimentos há muito tempo e que, quando percebe que os diferentes estão lutando por avanços, sentem medo que esses avanços tirem os seus direitos. Mas o que queremos é simplesmente não sermos mais alvo de chacota, piada, violências verbal e física. E se essas informações e esclarecimentos forem dadas na escola por profissionais capacitados estaremos formando indivíduos mais esclarecidos e livres do medo que as diferenças provocam hoje.
Imagem: Reprodução
EC – Por que os estabelecimentos destinados ao público gay são “locais de liberdade e ao mesmo tempo de segregação”, como afirma sua pesquisa de graduação em História?
Fonseca – Minha pesquisa de 2005 buscou compreender as relações sociais dos LGBTs antes e depois do surgimento das casas noturnas destinadas ao público na cidade Balneário Camboriú, Santa Catarina, que começaram a surgir na década de 1980, e a visibilidade que tinham esses espaços. Identifiquei que eram espaços permitidos, organizados e institucionalizados, que por um lado podiam segregar ao determinar que ali era o local deste público e suas relações, mas que também eram espaços desejados pelos homossexuais que precisavam e ainda precisam sentir a liberdade, determinando territórios identitários, que ainda promovem a visibilidade para quem vive por boa parte da vida no silêncio e com medo. A vida dos LGBTs exige visibilidade, para que saibam que existimos e que queremos e precisamos de direitos iguais.