GERAL

Trabalho infantil alimenta a miséria

As crianças estão de volta às ruas, e não é para brincar, ir para a escola, nem passear. Estão batalhando pela sobrevivência com trabalho precoce
Por Clarinha Glock / Publicado em 14 de agosto de 2018

Arte: Bold Comunicação

Arte: Bold Comunicação

Algumas fazem malabares nas esquinas, outras pedem dinheiro ou alimento nas portas de mercados, catam latinhas, vendem balas ou panos de prato nos bares, estão nas feiras ou no entorno de grandes eventos. As crianças estão de volta às ruas, e não é para brincar, ir para a escola, nem passear. Estão batalhando, sozinhas, com seus pais ou outros adultos, pela sobrevivência, no trabalho precoce, sujeitas a acidentes, exploração e morte

No Brasil, cerca de 2, 5 milhões de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos de idade estão em situação de trabalho, segundo a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (PNAD-2016. Mas é como se fossem invisíveis. Geralmente meninas trabalham como domésticas. Há outros serviços insalubres, como o da criança de cinco anos de idade flagrada colando strass com seus dedos pequeninos nos sapatos da moda, dentro de sua casa, para uma empresa calçadista da região Metropolitana de Porto Alegre. “Como se poderia saber? Elas estavam em um ambiente teoricamente protegido”, diz Iara Terezinha Rodrigues de Almeida, do Departamento Pedagógico da Secretaria Estadual de Educação do Rio Grande do Sul (Seduc), integrante do Conselho Estadual da Criança e do Adolescente e do Comitê de Erradicação do Trabalho Infantil no estado.

Foto: Acervo Pessoal

Isa Oliveira, secretária executiva do FNPETI

Foto: Acervo Pessoal

Mesmo com o incremento da taxa de emprego formal para adultos em anos passados, e campanhas para erradicação, o trabalho infantil se manteve, constata Isa Oliveira, secretária executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI). Sem ações efetivas, o Brasil, que havia se comprometido a eliminar o trabalho infantil conforme os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) até 2025, não vai conseguir cumprir a meta.

A Emenda à Constituição dos Gastos Públicos (EC 95/2016) que congelou investimentos em saúde e educação por 20 anos, a Reforma Trabalhista e a lei das terceirizações que resultaram em desemprego de 13 milhões de pessoas no primeiro trimestre de 2018 agravaram essa situação. O enxugamento de recursos promovido por governos municipal, estadual e federal levou a “remanejamentos” de pessoal nas redes de acolhimento e apoio, fechamento de escolas, filas de espera nas casas de convivência para atividades de contraturnos.

O Ministério Público do Trabalho (MPT) busca alternativas. A procuradora do Trabalho Patrícia de Mello Sanfelici, coordenadora nacional da Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente (Coordinfância), explica que o projeto Resgate a Infância atua em três eixos. O MPT na Escola capacita professores para tratar do tema em sala de aula com estudantes, formando assim uma rede de reflexão e conhecimento sobre trabalho infantil. O eixo profissionalização promove audiências para sensibilizar as empresas a cumprirem a lei de cotas para jovens aprendizes (14 a 16 anos), priorizando adolescentes em situação de maior vulnerabilidade social.

O terceiro eixo é de Políticas Públicas. O MPT busca dialogar com gestores de municípios para que tomem medidas de proteção às crianças e adolescentes, impedindo as violações. Nem sempre o diálogo acontece. Ana Lúcia Gonzalez, coordenadora regional da Coordinfância no Rio Grande do Sul – 4ª Região, diz que já houve diversas tentativas de agendar reuniões com o gestor de Porto Alegre, sem sucesso. “A Prefeitura está fazendo campanhas junto ao comércio para conscientizar, e ações para informar a sociedade sobre o tema”, disse ao jornal Extra Classe Marisa Batista Warpechowski, assistente de coordenação da Proteção Social Especial da Fasc (Fundação de Assistência Social e Cidadania da Prefeitura de Porto Alegre).

Foto: Igor Sperotto

Iara Terezinha Rodrigues de Almeida, do Departamento Pedagógico da Secretaria Estadual de Educação do Rio Grande do Sul (Seduc)

Foto: Igor Sperotto

“Quando acionada, a abordagem social vai ao local, tenta se aproximar da criança e localizar a família, verifica se tem cadastro e necessidade de atendimento de saúde. Se for preciso, aciona o Conselho Tutelar e a rede ampliada”, completa. Atualmente, há 168 ações judiciais em andamento no MPT RS que tratam do trabalho infantil e 2.722 inquéritos em andamento sobre o tema.

Exploração da mão de obra infantil
Trabalho infanto-juvenil, assim como o “moderno” trabalho escravo, é inerente ao sistema capitalista que se baseia na exploração, explica a professora Laura Souza Fonseca, da Área de Educação para Jovens e Adultos (EJA) da Ufrgs, coordenadora do Grupo Trabalho e Formação Humana. Daí a impossibilidade de erradicação.

Desde 1998, Laura realiza oficinas no Serviço de Fortalecimento de Vínculo (equivalente ao socioeducativo), no contraturno das aulas em escolas públicas da Grande Cruzeiro (bairros Cristal, Glória e Cruzeiro), em Porto Alegre. Os encontros acontecem em espaços comunitários e muitas vezes identificam situações de trabalho que de outra forma não apareceriam. Paralelamente, o grupo participa de encontros periódicos com a rede ampliada de atendimento onde são discutidas estratégias de enfrentamento à violação de direitos de crianças e adolescentes. Esta participação ajudou a construir a metodologia de formação de trabalhadores denominada Experiência Refletida, que permite a professores, conselheiros tutelares, assistentes sociais e agentes de saúde reconhecerem a importância do conhecimento acumulado nas abordagens, e a compartilharem sentimentos.

“A criança não vem à aula há 20 dias porque a irmã ganhou nenê e ela está ajudando. A professora vai dar falta e chamar o Conselho Tutelar? Vai criminalizar a família? Isso era um peso para trabalhadores que não registravam a falta, por isso o dado não aparecia”, conta Laura. O assistente social Douglas Röedel, coordenador da Equipe de Abordagem Social da Região Humaitá/Navegantes, em Porto Alegre, tem de lidar com frequência com situações como as que a professora menciona. Uma criança pode estar de manhã no serviço de convivência, à tarde na escola e aos finais de semana sair com a mãe para comercializar panos de prato, por exemplo, ou catar latinhas, porque se ela ficar em casa o ambiente é mais perigoso que estar com a mãe na rua trabalhando, diz Röedel. “A solicitação de abordagem, quando nos chega, é para tirar dali as crianças do local. Como fazer a sociedade entender que há todo um processo até que isso aconteça? Há um sistema que gera esse fenômeno, e o capitalismo o alimenta ainda mais”, reflete.

O Censo Escolar mostra que há 2,7 milhões de crianças de 4 a 17 anos fora da escola, diz Isa, do FNPETI. Estar fora da escola favorece a inserção precoce no trabalho. Mas se houver empatia e confiança, estudantes podem encontrar nos professores escuta e ajuda. Identificado o problema, é essencial atuar em rede. Para isso, a escola precisa ser um lugar de acolhida. “E os professores têm que ter salário, plano de carreira, possibilidade de se afastar para estudar. Ou as políticas que dão conta dos direitos sociais básicos têm de fato um investimento, e não uma retirada de dinheiro, como estamos vivendo, ou não se tem capacidade de enfrentamento”, observa Laura.

Foto: Valter Campanato / Agência Brasil

Foto: Valter Campanato / Agência Brasil

Na prática, entretanto, a política de Educação do Brasil não está sensibilizada para as violações que vitimam crianças e adolescentes, afirma Isa Oliveira, do FNPETI: “O representante da política de Educação nunca está presente nas reuniões do Fórum, ou chega atrasado e sai rapidamente”. Por isso, o FNPETI está engajado em uma campanha para demandar nas próximas eleições comprometimento dos gestores públicos: #vote pelos direitos das crianças e adolescentes e #vote pelo direito à educação de qualidade.

Violações de direitos baseadas em mitos
É comum ouvir: “O meu filho vai junto pra roça, que mal tem, eu também trabalho desde criança”! A estas pessoas, Iara, da Seduc, pergunta: e como está a sua coluna? O senhor quer para o seu filho as mesmas sequelas?  “É preciso diferenciar atividade educativa de exploração de mão de obra. É arbítrio quando a criança assume responsabilidades impróprias para seu desenvolvimento físico e psicológico”, explica.

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

O trabalho nas ruas deixa crianças e adolescentes vulneráveis a atropelamentos e a maus-tratos. Ficam expostos à prática de furtos e ao aliciamento por redes de tráfico de drogas e exploração sexual. “Dos adolescentes privados de liberdade, 90% passaram por trabalho infantil”, alerta Isa, do FNPETI. Além disso, as crianças e adolescentes têm três vezes mais risco de se acidentar porque sua visão periférica e atenção não estão plenamente desenvolvidas. De 2007 a 2017, 40 mil crianças e adolescentes de 5 a 17 anos sofreram algum acidente ou adoecimento em consequência de trabalho, e foram notificadas 286 mortes ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde.

No Rio Grande do Sul, de 1º de julho de 2013 a 30 de junho de 2018, o Sistema de Informações em Saúde do Trabalhador registrou 2.446 notificações envolvendo crianças e adolescentes de 5 a 17 anos: 29,47% ferimentos em membros superiores, 20% traumatismos e 12,34% ferimentos em membros inferiores. Foram notificadas ainda amputações de membros superiores e lesões por esmagamentos. No mesmo período e idades, o Sinan registrou 1.309 notificações no estado, sendo 784 acidentes graves, dos quais 15 foram fatais.

No entanto, culturalmente o trabalho infantil é aceito se quem trabalha é pobre, negro ou da periferia, constata Isa. “É uma concepção perversa, que discrimina”, critica.  “A gente sempre quer o melhor para os nossos filhos”, ressalta Iara. “Mas e os outros? A criança que está na sinaleira, sem comida nem agasalho, é também problema meu. Temos que ensinar solidariedade para formar uma outra sociedade”, afirma Iara.

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