Transparência de dados como política para a segurança pública
Foto: Igor Sperotto
O Instituto Cidade Segura, ONG que atua na segurança pública, apresentou, no dia 7 de agosto à Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, projeto sugestão para a elaboração de uma legislação sobre a transparência de dados como política para o setor. O documento propõe uma política de transparência ativa dos dados considerados fundamentais para o monitoramento dos indicadores da violência no estado, determinando que essas informações sejam disponibilizadas em formato aberto desde que não estejam sob sigilo ou sob restrição de acesso nos termos da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Para o presidente do Instituto Cidade Segura, sociólogo Marcos Rolim, o país precisa avançar no que se refere à transparência e às práticas de controle, fiscalização, responsabilização e prestação de contas, o que é particularmente sensível na área da segurança pública. “Estudo realizado por Alberto Koppitke (mestre em Ciências Criminais, ex-secretário de Segurança de Canoas e atual diretor da ONG), em 2016, mostrou que o nível de transparência na área é de apenas 18%, que somente sete secretarias estaduais de Segurança pública disponibilizam suas Políticas de Segurança, apenas quatro publicam relatório sobre a morte de policiais, seis publicam relatório sobre letalidade policial, e nenhuma delas dispõe de relatório sobre o uso da força, detalhando o número de disparos de arma de fogo, armas de choque, balas de borracha e bombas de efeito moral”, revela. Doutor em Sociologia, membro fundador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Rolim é autor dos livros A Síndrome da Rainha Vermelha, policiamento e segurança pública no século XXI (Zahar) e A Formação de Jovens Violentos, estudo sobre a etiologia da violência extrema (Appris). Nesta entrevista, explica que a proposta de Lei da Transparência na Segurança Pública deve ser considerada parte constitutiva de uma política de Estado. “Estamos apresentando um projeto que pode ser apresentado por todas as lideranças do Parlamento gaúcho, por sobre as diferenças políticas e ideológicas que, tão frequentemente, impossibilitam a modernização e as reformas na área da Segurança”, aponta.
Extra Classe – O que propõe o projeto-sugestão para uma Lei da Transparência na Segurança Pública?
Marcos Rolim – A ideia básica é a de disponibilizar em dados abertos todas as informações relevantes a respeito da segurança pública que não sejam sigilosas por sua natureza, de tal forma que possamos lidar com indicadores concretos em várias dimensões, desde as ocorrências criminais e a atuação das polícias, até a realidade do sistema penitenciário. Com a Lei, o governo deverá publicar o seu Plano de Segurança, discriminando o diagnóstico que o embasa, as estratégias prioritárias de prevenção, com descrição de metodologia, dos indicadores, das formas de avaliação, com as evidências científicas empregadas e metas de redução da violência e da criminalidade a serem alcançadas.
EC – Ou seja, que os governos passem a tratar com transparência as informações relativas à segurança pública…
Rolim – Apenas isso já seria uma revolução na área, porque, no Brasil, os governos não costumam ter política alguma, agindo sempre reativamente, respondendo às demandas corporativas e às pressões dos mais poderosos, com destaque para a mídia. O PL induz, então, a que os gestores explicitem suas posições, o que permite que o debate sobre segurança se qualifique. Com relação às ocorrências policiais, todos os registros (Boletins de Ocorrência e Termos Circunstanciados) devem ser disponibilizados na Internet, preservadas a identidade dos envolvidos, mas com dados exatos sobre o tipo de ocorrência, o local do fato, idade, sexo e cor das vítimas. Além disso, o projeto estabelece 29 indicadores a serem medidos e publicados, desde o total de crimes dolosos com resultado morte (homicídios, feminicídios, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte) até os exames de corpo de delito realizados no período, o número de perfis genéticos registrados no Banco de DNA, o número de policiais vitimados pela violência, entre outros dados fundamentais que hoje não estão estruturados.
Foto: Agência Brasil
EC – Qual o objetivo da proposta?
Rolim – O objetivo principal é o de permitir que o público conheça a realidade da segurança pública a partir de dados concretos. A disponibilidade das informações desagregadas em dados abertos permitirá, também, que os interessados façam o download das informações em seus computadores e realizem cruzamentos com outros bancos de dados. Isso irá produzir conhecimento, coisa que, atualmente, é impossível tendo em conta o impressionante déficit de transparência na área. A Lei também irá ajudar, e muito, os gestores na área, que passarão a lidar com dados atualizados e desagregados segundo os melhores critérios da moderna criminologia.
EC – Como foi elaborada e quem são os principais especialistas envolvidos na sua estruturação?
Rolim – A proposta surgiu de uma pesquisa realizada pelo diretor-executivo do Instituto Cidade Segura, Alberto Kopittke, a respeito dos níveis de transparência das Secretarias de Segurança pública e das polícias brasileiras. Esse trabalho demonstrou que a área da segurança pública é muito pouco transparente, como regra, sendo que o RS é um dos estados menos transparentes. A partir dessa conclusão, começamos a trabalhar na elaboração do projeto, aproveitando ao máximo as lições e as conquistas de outros estados como Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, para citar apenas três exemplos de realidades onde há muito mais transparência em segurança pública do que no RS. Vários membros do Instituto colaboraram com o projeto, incluindo alguns policiais. A coordenação do trabalho foi realizada por mim e por Alberto. O PL que tramita no Congresso Nacional também foi influenciado pela pesquisa do Alberto.
EC – Por que é importante avançar nas práticas de transparência?
Rolim – A transparência é decisiva para que se forme uma opinião pública qualificada. A obscuridade tem sido muito funcional no Brasil para o trânsito de visões tradicionais que não resistem ao exame dos dados. Isso potencializa o espaço de atuação dos demagogos e de toda a sorte de incompetentes. Na área da segurança, isso é tão forte que vitima os próprios policiais. Na verdade, eles atuam, quase sempre, sem acesso a dados estruturados sobre a violência e o crime e sem as informações elementares a respeito dos resultados do trabalho das suas instituições. Sem essas informações, eles estão muito mais expostos à violência e não conseguem formular políticas eficientes. O público, por seu turno, não pode avaliar corretamente os riscos que corre nem saber o quanto o poder público é ou não eficiente.
EC – Por que a falta de transparência e accountability (práticas de controle, fiscalização, responsabilização e prestação de contas) são mais sensíveis na área da segurança?
Rolim – Na área da segurança, como regra, seguimos imaginando que os gestores não têm a obrigação de prestar contas à população a respeito do trabalho realizado. Os níveis de accountability no Brasil são baixos na maior parte dos setores, mas, na segurança, são próximos de zero. Para piorar o quadro, tornou-se comum que os governos instrumentalizem os poucos dados disponíveis para fins de propaganda. A gestão na área da segurança, no mais, segue “analógica”. Como regra, as polícias não dispõem de softwares de gestão, seus sistemas de informação são precários e não dialogam entre si. Há um propósito nesse atraso, é claro. Trata-se de salvaguardar o patrimonialismo da informação, para se manter posições de poder e, ao mesmo tempo, “proteger” as instituições policiais de tal modo que eventuais falhas e ineficiências não sejam conhecidas. Os que pensam assim, entretanto, prestam o pior serviço possível às polícias. Ao invés de protegê-las, as condenam ao erro e ao passado.
Foto: Igor Sperotto
EC – Como a transparência pode qualificar o debate sobre segurança pública?
Rolim – Imagine se fôssemos informados a respeito do perfil das pessoas que são presas pelas polícias, por exemplo. Saberíamos que a prisão de alguém por homicídio ou por crime sexual é bastante incomum e que prisões de corruptos ou de torturadores são verdadeiras raridades. Por óbvio que isso diz algo importante a respeito da atuação do sistema de persecução penal em vigor. Outro exemplo: um dos indicadores que são propostos pelo nosso projeto é o número total de chamadas ao 190, desagregadas por natureza da solicitação e município de origem, com discriminação do número de chamadas para crimes em andamento, para violência doméstica, para perturbação do sossego e para assistência social. O outro indicador é o subtotal de chamadas que resultaram em despacho de viatura para atendimento a ocorrências criminais. Com esses dois dados teremos o tipo de situação que faz com que as pessoas mais demandem resposta da Brigada Militar e, também, a quantidade de vezes em que tais demandas foram atendidas. Como debater a eficiência das polícias sem dispor de informações desse tipo?
EC – Quais são os dados considerados fundamentais para o monitoramento dos indicadores da violência?
Rolim – O indicador mais importante para se monitorar violência é a taxa de homicídio, porque todas as demais informações sobre ocorrências criminais são afetadas fortemente pela subnotificação, ou seja, pelo fenômeno que faz com que a maioria das vítimas não registre os crimes. No caso dos homicídios, só há subnotificação pelo desaparecimento de cadáver, o que é uma ocorrência tão rara que a taxa pode ser desconsiderada. Aqui cabe um esclarecimento: em todo o mundo civilizado se calcula essa taxa considerando homicídio todo o crime doloso com resultado morte. Isso agrega, de acordo com os tipos penais brasileiros, quatro crimes: homicídios, latrocínios, feminicídios e lesões corporais seguidas de morte. Então, não há qualquer sentido em se divulgar, como se faz no RS, dados separados para “homicídio” e para “latrocínio”, por exemplo. Esse tipo de descritério só produz novas dificuldades para se comparar dados entre os estados e para se perceber a própria curva histórica dos crimes dolosos contra a vida.
EC – O nível de transparência de dados na segurança pública no RS é muito baixo na comparação com outros estados. Por quê?
Rolim – Os critérios de divulgação dos dados nos últimos três governos estaduais foram alterados, pelo menos, 11 vezes. Só no atual governo, foram cinco alterações. Basta essa informação para se concluir que os governantes estão improvisando. Quem desejar ter uma ideia da defasagem entre o RS e os estados que mais avançaram na transparência em Segurança, deve comparar o site da Secretaria da Segurança do RS com a página de dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro. O governo gaúcho divulga poucos dados e ainda o faz em formato “fechado”. Vale dizer, não se disponibiliza a base de dados em formato que permita o manuseio e o cruzamento das informações. Também não é possível checar os dados oficiais com os registros de cada delegacia ou batalhão da PM, muito menos ter acesso às ocorrências georreferenciadas, ou seja, visíveis em um mapa.
EC – Como deveria ser a divulgação?
Rolim – Em vários estados brasileiros todos os registros policiais estão georreferenciados. Isso significa que as ocorrências são registradas já com o apoio de um sistema que permite, pela referência disponibilizada do CEP ou do Google Maps, a localização exata do fato delituoso. Esse pequeno detalhe faz uma imensa diferença, porque permite que se monte uma estratégia de policiamento de hot spots, uma das técnicas mais exitosas do mundo em policiamento urbano. Devíamos estar tratando disso, mas a “pauta” da Segurança pública no RS segue sendo a compra de armas e viaturas para as polícias, uma situação que nos remete à forma como se pensava segurança na década de 40, antes das primeiras pesquisas sobre policiamento.