Foto: Reprodução RTI TV
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O jovem cineasta Filipe Galvon faz parte da primeira geração de camadas populares do Brasil a estudar no exterior. “Sou a primeira pessoa da minha família a poder ter feito isso e isso tem a ver com essa época de ouro dos anos Lula e Dilma, que permitiram não só a prosperidade econômica, mas também a inclusão de uma certa classe média baixa”, conta.
Radicado na França, integrante do grupo Movimento Democrático 18 de março (MD18), criado por 116 brasileiros que moram na França para informar a mídia internacional sobre o que acontece no Brasil após 2016, Galvon se considera um fruto desse momento histórico vivido pelo Brasil entre 2003 e 2013.
Em setembro deste ano, o cineasta lançou o documentário Encantado, o Brasil em desencanto, na TV Senado da França (a exibição no Brasil depende de um distribuidor internacional, mas a previsão é de lançamento no primeiro semestre deste ano). O filme conta, além de vozes do grupo MD18, com entrevistas a diversas personalidades que fazem política e pensam o Brasil atual: Ciro Gomes, Guilherme Boulos, Fernando Haddad e a ex-presidente Dilma Rousseff, além do filósofo francês Alain Badiou, que tentam, cada um com seu olhar, avaliar a instabilidade recente do Brasil. O filme termina com uma cena significativa – a prisão do ex-presidente Lula, no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, em 7 de abril de 2018.
Nesta entrevista exclusiva ao Extra Classe, ele conta sua trajetória, o que o levou a fazer o filme e como vê o Brasil no momento atual.
Extra Classe – O que te levou a fazer esse filme?
Filipe Galvon – Na verdade, não era um documentário sobre a crise política no Brasil. Porque não havia crise no Brasil quando comecei a pensar nesse filme, em 2012. Era um filme sobre o meu bairro de origem, no subúrbio do Rio, chamado Encantado. Eu já estava impressionado com algumas das contradições que surgiram: o bairro foi um grande canteiro de obras para os Jogos Olímpicos e, ao mesmo tempo, houve um certo aumento da violência e o início de um êxodo de habitantes da classe trabalhadora, incluindo minha família. A escola onde estudei toda minha infância foi abandonada, em ruínas. A partir de 2013, essa trajetória se espalhou para todo o país. Meu bairro tornou-se uma metáfora do que estava acontecendo no Brasil. Eu então expandi minhas perspectivas: filmei os protestos de 2013, cuja mobilização deu lugar a uma onda conservadora. Ela preencheu um vazio deixado por uma certa desmobilização da esquerda, que estava no poder há 10 anos e perdeu ligação com suas bases. Mas, na minha opinião, o fator decisivo foi a reação das classes abastadas aos efeitos da crise mundial no Brasil. Essa reação foi alimentada pela mídia tradicional, mais identificada com a oposição. Durante o governo Lula, o crescimento econômico permitiu redistribuição de renda sem afetar as classes mais altas. Com a crise, agravada a partir de 2014, esse contexto de prosperidade entrou em colapso e o conflito se instalou na sociedade. Em um país marcado por mais de três séculos de escravidão, isso despertou monstros. Multidões enfurecidas que exigiram a retirada da ex-presidente Dilma, a prisão do ex-presidente Lula e até o retorno do regime militar. Essas manifestações aconteceram nas capitais brasileiras, impulsionadas pelas classes médias e não pelas camadas populares. O desencanto com a política se espalhou por toda a população e eu percebi que estava testemunhando algo histórico. Em 2016, com o impeachment de Dilma Rousseff, vi que algo mais sério estava acontecendo. Não era a derrubada de um governo popular, mas um ataque à democracia. Essa sensação foi ampliada com a prisão de Lula, num processo judicial bastante controverso e ligado ao calendário eleitoral de 2018. Eu queria contar às pessoas uma história particular sobre essa situação, do ponto de vista pessoal, geracional. Um filme que fosse além da crise política e mostrasse o desencanto com o país.
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Extra Classe – A visão da situação política por brasileiros é diferente da vivida por você, que está no exterior?
Galvon – A diferença é de perspectiva. A distância ajuda a ter uma visão mais panorâmica, menos focada nos problemas imediatos. O meu caso e de tantos outros brasileiros que vieram estudar na França nos últimos anos é que há uma diferença de perspectiva, não de percepção. Minha geração é a primeira de filhos da classe trabalhadora que pôde estudar no exterior. São pessoas diretamente afetadas pelas mudanças causadas pelos governos de Lula e Dilma e, ao mesmo tempo, ao estar longe do Brasil puderam analisar mais friamente as limitações desses governos, a despeito da enorme mobilidade social. O Brasil vive um clima tenso pós 2013, com violência crescente e pressão midiática contra o Partido dos Trabalhadores. Diante de uma crise, as pessoas tendem a achar um culpado e puni-lo.
Extra Classe – Como o documentário é uma forma alternativa de abordar a evolução da sociedade brasileira nessa década em comparação com outros meios de comunicação?
Galvon – A abordagem documental me dá mais liberdade para contar essa história do que a que eu teria como jornalista. Apesar de ter me formado em Jornalismo, não sou jornalista e isso me permite adotar um ponto de vista mais pessoal ao narrar essa história. Ainda não há uma visão consolidada sobre o que aconteceu desde 2013. Muita gente não se dá conta da dimensão do que é ter uma presidenta destituída e um ex-presidente preso. Se um jornalista fizer isso, será acusado de parcialidade. O processo contra Dilma foi impeachment ou golpe, só pra ficar num exemplo. E a sentença contra Lula? O processo foi baseado no testemunho de alguém que jamais forneceu provas da acusação e teve sua pena reduzida de 10 para 3 anos por conta da delação premiada. E que essa condenação foi formalmente contestada pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU? Em suma, é um campo minado. Você não pode contar essa história sem tomar partido de uma forma ou de outra.
Foto: Reprodução Encantado
Extra Classe – Como você enxerga o processo de impeachment e os ataques reiterados contra os governos Lula e Dilma?
Galvon – É um mosaico de interesses, unidos por um propósito: a imposição de uma agenda neoliberal. O Brasil não é o único exemplo, mas aqui, a coisa tomou uma proporção imensa. Quando estourou a crise econômica, o PMDB (atual MDB) apresentou a Ponte para o Futuro, que nada mais era do que um programa de austeridade. Dilma rejeitou esse programa, aumentou o racha na base governista e isso abriu caminho para o impeachment. Para mim, isso é o núcleo de todo esse processo político. Temer, quando assumiu o posto, colocou esse programa em prática. Uma das medidas mais duras dessa Ponte para o Futuro foi a PEC do teto de gastos, que congelou os investimentos públicos por 20 anos. A maioria do Congresso brasileiro estava em sintonia com essas reformas; políticos e empresários interessados em deter a operação Lava Jato que, sob Dilma, teve grande autonomia; a misoginia contra Dilma, um ingrediente adicional, mas muito forte. Também poderíamos citar como interesse secundário a atenção das petroleiras internacionais sobre o pré-sal. Junte a isso o interesse das elites nacionais em subjugar os trabalhadores. Isso tudo tem a ver com a forma como o país foi construído: um fornecedor de matéria-prima para as potências europeias. Um território administrado por uma elite dominante que apaga a história de tempos em tempos. Uma política de 500 anos de terra arrasada. É mais fácil fazer reformas neoliberais num país instável. Essa desestabilização, acredito, foi construída desde 2013 por meio do conflito social, da fragmentação da sociedade brasileira. O Brasil está experimentando um conflito de classes. As classes abastadas que viam as desigualdades diminuírem, tinham medo de compartilhar espaços públicos; as classes médias, diante da crise econômica que atingiu o país desde 2013, temiam cair na pobreza; as classes populares, esmagadas pela violência do crime organizado, temiam o desemprego e a perda dos direitos sociais. O efeito – é isso que o filme busca mostrar – é um sentimento coletivo de desencanto com política, democracia e, pior, com o futuro. O desencantamento, incluindo a queda de Dilma e Lula, então a ascensão da extrema direita, são os emblemas.
Extra Classe – Que encantamento simbolizava a eleição de Lula como presidente do Brasil?
Galvon – É simples: pela primeira vez na história do país, um indivíduo de origem popular, chegou à presidência. Simbolicamente, foi um fato que mudou a história do país para sempre. Isso acendeu esperanças de mudança na sociedade. Na época da eleição de Lula, dizia-se que “a esperança havia vencido o medo”. Era uma questão de representação, de identificação: pessoas como Lula, pobres e historicamente excluídas da sociedade, foram representados no poder; eles iam ter uma voz. O PT, maior movimento popular de esquerda da América Latina, estava no poder. O povo brasileiro finalmente seria capaz de se afirmar como povo. Até certo ponto, isso foi o que aconteceu, se olharmos para os resultados dos 4 governos sucessivos de Lula e Dilma, tirando 40 milhões de pessoas da pobreza. No entanto, os modelos brasileiros de governo e desenvolvimento não foram reformados nesses 13 anos de governo petista – isso se tornou, na minha opinião, a principal fonte de desencanto. O sistema político brasileiro precisa ser reinventado.
Extra Classe – Podemos dizer quais são os atuais inimigos da democracia brasileira?
Galvon – Seria fácil apontar o dedo para a extrema direita, representada pelo presidente eleito Jair Bolsonaro. Seu discurso está repleto de ódio e preconceito. Suas posições políticas são cheias de conotações racistas, misóginas, homofóbicas e fascistas. Apesar de tudo isso, ele foi eleito com quase 60 milhões de votos – isso é assustador. Na minha opinião, isso expressa algo da nossa sociedade. É uma versão militarizada de Donald Trump, um obscurantismo que se instalou em todo o mundo. No Brasil, isso foi facilitado por nossa história de autoritarismo, com poucos intervalos de democracia. Esse autoritarismo, às vezes até com uma face fascista, sempre esteve presente e muitas vezes normalizado na sociedade. Bolsonaro não é causa, mas produto de um contexto pouco democrático. Isso nos leva ao fato de que a mídia tradicional ajudou na demonização da política -e isso foi fundamental na ascensão de Bolsonaro. A mídia brasileira ainda tem enorme poder de mobilização sobre as massas. A mídia brasileira é controlada por seis famílias. O principal ator midiático ainda é a TV Globo, com um histórico de parcialidade, de jornalismo tendencioso – lembremos do debate do segundo turno da eleição de 1989.
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Extra Classe – Qual é o lugar dos movimentos evangélicos política brasileira e quais são as consequências disso?
Galvon – Os movimentos evangélicos ocuparam algumas das bases de alguns movimentos sociais historicamente ligados às correntes progressistas da Igreja Católica, como a teologia da libertação. São eles que dão algum apoio espiritual e alguma “ideologia” aos pobres. Ainda que isso seja feito em troca de uma contribuição monetária. Em Encantado, esse fenômeno é bastante claro. Os evangelistas têm grande poder mobilizador, político e midiático. O prefeito do Rio é um ex-pastor evangélico. O segundo maior canal de televisão do país pertence à Igreja Universal, só para ficarmos em dois exemplos. O grande problema é neopentecostalismo. É uma doutrina muito sintonizada com os dogmas liberais, focando no sucesso material e tendo uma visão conservadora no campo dos costumes. O direito ao aborto e à homossexualidade não são apenas tópicos proibidos, mas contestados. Enquanto o catolicismo e as religiões ancestrais brasileiras, como o candomblé e a umbanda, por exemplo, fizeram da pobreza um valor fundamental, esse evangelismo a vê numa certa posição de inferioridade e culpa. Ou seja, ser pobre é uma falha. Na minha opinião, essa mudança de “ideologia” abre caminho para reformas neoliberais. A bancada evangélica foi um dos pilares para o impeachment de Dilma e para a aprovação das medidas de austeridade do governo Temer. Acima de tudo, o avanço do neopentecostalismo é o recuo dessa afirmação da identidade brasileira que a eleição de Lula representou. O Brasil é um país muito espiritualizado. E isso não significa necessariamente religioso. Mas o sincretismo entre os cultos de origem africana, os rituais nativos americanos, o espiritualismo de Alain Kardec, a doutrina católica e inúmeras outras culturas, essa mistura define a identidade brasileira, de certa forma. O desencanto do Brasil também tem uma dimensão espiritual.