GERAL

A insegurança diária dos transplantados no Rio Grande do Sul

Má distribuição dos medicamentos imunossupressores pelo governo federal coloca em risco a vida de cerca de 6 mil transplantados no estado. Ministério da Saúde diz que regularizará situação neste mês
Por Marcia Santos / Publicado em 4 de junho de 2019

Nos últimos meses, a falta de medicamentos imunossupressores, usados para evitar a rejeição de órgãos transplantados e que são fornecidos pelo poder público gratuitamente, tem tirado o sono de seus usuários, que vivem a insegurança constante de não terem asseguradas as doses necessárias para a manutenção da vida.

Nesta situação estão cerca de 6 mil transplantados no Rio Grande do Sul, segundo estimativa de Liège Gautério, que integra a Associação Brasileira de Transplantados (Abtx).

Mas nem o Ministério da Saúde, responsável pela distribuição dos medicamentos, nem a Secretaria Estadual da Saúde (SES/RS) informam o número total de pacientes nessas condições. Para conseguir alguma explicação, é necessário dar o nome do paciente ou o número do processo ou ainda do cartão do Sistema Único de Saúde (SUS). Ou seja, as reclamações são tratadas de forma individualizada, o que dificulta o conhecimento do universo dos transplantados no estado e, mesmo, no país.

Se tiver que recorrer às farmácias privadas, a maioria dos transplantados não terá como arcar com os custos. Em cotação básica dos medicamentos imunossupressores feita pelo Extra Classe, o everolimo foi encontrado por valores que oscilam de R$ 2.125,00 a R$ 11.601,00 (dependendo da composição e dosagem); o tacrolimo de R$ 76,27 a R$ 2.900,84 (dependendo da composição, quantidade e dosagem); o azatioprina por R$ 159,89; o micofenolato por R$ 382,00; o ciclosporina: de R$ 136,04 a R$ 479,00; e a predisona (que não é imunossupressor, mas é usado no tratamento pós-transplante) por R$ 8,00 a R$ 22,00.

Transplante não é cura. É tratamento

Foto: Igor Sperotto

Bebeto Alves: O problema é a negligência de quem deveria se responsabilizar, não há distribuição por parte do poder público

Foto: Igor Sperotto

“E é um tratamento crônico. Se não tem remédio, o transplantado pode ter uma rejeição e morrer”, explica o músico Bebeto Alves, 64 anos, transplantado de fígado há seis anos. Ele é usuário do tacrolimo, medicamento especial fornecido pelo Ministério da Saúde, que teve seu fornecimento diversas vezes interrompido nos últimos meses. Em abril, quando foi buscar suas doses na farmácia de São Leopoldo, onde mora (a 38 quilômetros de Porto Alegre), se surpreendeu: “Não tinha, não foi distribuído”.

Bebeto foi salvo por um gesto de solidariedade na própria farmácia, que doou duas cartelas. Não era a quantidade necessária, mas ajudou no momento. “Há pessoas que vão lá e deixam os remédios e isto é bacana de acontecer. O problema é a negligência de quem deveria se responsabilizar, não há distribuição por parte do poder público. Aí não tem resposta”.

O produtor musical e educador físico Fernando Ribeiro passou pelo mesmo problema que Bebeto. Aos 25 anos teve de se submeter a um transplante renal. Em cinco anos como usuário de micofenolato (90 comprimidos/mês) e tacrolimo (150 comprimidos mensais) não teve qualquer problema.

“Mas em abril, quando fui buscar, não havia o tacrolimo. Isto é grave para a minha condição, me assustei. Um transplantado precisa tomar a medicação na hora exata e na quantidade certa, se não o organismo começa a rejeitar, a trabalhar contra o transplante”.

Ele teve a sorte de contar com uma pequena reserva guardada. “Mas quem tem o remédio contado para o mês, como fica?”. Fernando diz que transplantados usam, como recurso, a internação hospitalar, pois aí o fornecimento é garantido.

É o caso de Ana Carolina Pisoni, 14 anos, moradora de Porto Mauá (a 530 quilômetros de Porto Alegre), que por ter passado muito tempo internada, não sofreu com a falta dos fármacos necessários para evitar a rejeição do pulmão transplantado em 2015 e retransplantado em 2018. Ela usa micofenolato 360 mg e o tacrolimo 2 mg pela manhã e à noite. “Aí o hospital forneceu”, conta o pai, Renato Pisoni. “Mas muita gente não recebeu e nós estamos preocupados porque ela não pode ficar sem.”

Vivendo no fio da navalha

Vilmar Ochôa: Já é a terceira vez que está faltando. Ninguém dá uma informação precisa sobre o porquê da falta”

Foto: Igor Sperotto

Vilmar Ochôa: Já é a terceira vez que está faltando. Ninguém dá uma informação precisa sobre o porquê da falta.

Foto: Igor Sperotto

Essa oscilação medicamentosa amedronta Vilmar Ochôa, 67 anos, transplantado renal há quatro anos. Ele estava acostumado a buscar seus 60 comprimidos/mês de everolimo na farmácia pública de Viamão. Conta que, no início do tratamento, o fornecimento era regular.

“De um ano e meio pra cá, começou a turbulência e, agora, está bem difícil”. Já havia faltado o remédio em outras ocasiões, durante 10 ou 15 dias. “Mas eu tinha uma reservinha técnica”. Agora, no entanto, ele queimou essa reserva. “Já é a terceira vez que está faltando. Ninguém dá uma informação precisa sobre o porquê da falta”, reclama.

Antes, Vilmar usava o tacrolimo, mas parou há cerca de três meses. Como sobraram algumas caixas, levou para o Hospital São Lucas da PUCRS. Outras pessoas poderiam aproveitar, pensou. Ao levar as caixas, ganhou uma de everolimo. E, mais tarde, conseguiu retirar outra de 0,75 mg na farmácia de Viamão. A dose de 1.75 não veio. “Aí eu compus a dose necessária para consumir. Tenho feito isso”.

Ele não pode ficar sem o medicamento, nem pensar em parar de tomar. É vital. “Na farmácia, me dizem pra reclamar para o Estado”. Vilmar diz que os transplantados vivem “no fio da navalha”, sem saber se terão e quando terão os medicamentos.

Informações desencontradas

Liège Gautério integra a Associação Brasileira de Transplantados, que auxilia pacientes que enfrentam falta de medicamentos

Foto: Igor Sperotto

Liège Gautério integra a Associação Brasileira de Transplantados, que auxilia pacientes que enfrentam falta de medicamentos

Foto: Igor Sperotto

Segundo a atleta Liège Gautério, que passou por um transplante de pulmão há oito anos no Complexo Hospitalar Santa Casa, em Porto Alegre, sair da fila de transplantes já é algo difícil de conseguir e a fase de obter os remédios para evitar a rejeição deveria ser mais tranquila. “Mas é um absurdo o que acontece”. Liège conta que não teve problemas com os medicamentos até o sexto ano. Ela usa 30 cápsulas/mês de ciclosporina. Além deste, ela também faz uso da azatioprina, também racionado.

“É minha mãe quem retira pra mim e ela volta dizendo que, em vez das 30 doses, deram 15, que é para buscar outro dia”. As informações, conta, são desencontradas. “As vezes dizem que há problema na licitação, ou que o laboratório não forneceu, ou que há dificuldade no transporte”. Segundo ela, os usuários do tacrolimo estão muito prejudicados. Alguns estão se obrigando a comprar. “Tenho um amigo que comprou, mas é bem caro, mais de R$ 1 mil uma caixa, fora da realidade da população”.

Liège diz que a Associação Brasileira de Transplantados (Abtx) auxilia pacientes que enfrentam falta de medicamentos. E fala da existência de grupos de usuários que fazem troca e empréstimo de doses. “Se a gente não se ajudar, fica mais complicado. Que bom termos esta rede de apoio e solidariedade. Mas este é um plano B. O poder público tem que fazer sua parte”.

Pegou emprestado e não tem como repor

A dona de casa Tereza Moura, 62 anos, mora em Manaus (AM) e vem a Porto Alegre a cada quatro meses para avaliar o segundo transplante renal a que se submeteu. O primeiro, ocorrido em 2001, foi feito em sua terra natal, e seu filho foi o doador. Houve rejeição e, em 2011, teve de retransplantar, agora no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Tudo estava indo bem nesses oito anos. Até que, em abril, faltou o tacrolimo. “Tomo dois comprimidos por dia, dá 60 no mês e eu não consegui. Tive de pegar emprestado de outra pessoa e agora preciso devolver, só que eu não tenho. Não sei como resolver”.

Faltam também os remédios básicos

Farmácia do Estado em Porto Alegre

Foto: Igor Sperotto

Farmácia do Estado em Porto Alegre

Foto: Igor Sperotto

João Campello, da Associação Riograndina de Pré e Pós Transplantados, denuncia que não faltam só os medicamentos especiais, mas também os básicos, como o predisona. “Na farmácia dizem pra gente comprar, porque é baratinho. Mas quem faz esse tratamento acumula gastos e o que é baratinho para uns, vira problema para outros”. Campello acrescenta que a falta de recursos é comum entre transplantados, pois muitos deles se tornam sem condições de retornar ao trabalho e estão perdendo os benefícios junto ao INSS.

Ao falar sobre remédios ditos “baratos”, Campello remete para uma entrevista do secretário executivo do Ministério da Saúde, João Gabbardo dos Reis, ex-secretário estadual da saúde do RS, para uma rádio de Porto Alegre, no início de maio. Gabbardo disse na entrevista que, em relação aos imunossupressores, “não há como fazer milagre” e sugeriu que as pessoas comprem nas farmácias comerciais, pois “alguns nem são tão caros”. E que, além disso, podem buscar junto às associações de pacientes, a hospitais, que devem ter estoques e que há pacientes que também estocam.

A fala do representante do Ministério da Saúde foi rechaçada por vários ouvintes. Alguns perguntaram: “Em que mundo ele vive?”. Segundo esses ouvintes, quem depende do estado não tem dinheiro para a compra e ainda perguntaram o que seria remédio barato para quem não tem problema de dinheiro.

A manifestação do Ministério da Saúde

Por e-mail, o Ministério da Saúde informou que concluiu todos os processos de licitação para a compra de medicamentos adquiridos de forma centralizada. Os fármacos estão sendo enviados, ao longo deste mês, para as secretarias estaduais de saúde que, por sua vez, devem distribuir para os municípios, a fim de abastecer toda a rede de saúde pública. Ainda de acordo com o Ministério, os medicamentos tacrolimo e everolimo foram enviados até 31 de maio. As demais medicações – azatioprina e ciclosporina – são de responsabilidade dos estados. A SES/RS, por intermédio da Coordenação da Política de Assistência Farmacêutica (Cpaf), informou que, neste momento, estes fármacos não estão em falta.

Na última semana de maio, o Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos/Fiocruz) anunciou o início da produção do tacrolimo. No total, serão fabricadas mais de 90 milhões de unidades do medicamento.

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