A devastação do trabalho
Fotos: Antonio Scarpinetti/SEC Unicamp
O rigor da pesquisa e o compromisso intransigente com os explorados e oprimidos são, segundo a definição do sociólogo Michael Löwy, a rara qualidade que distingue o conjunto da obra de Ricardo Antunes. Professor titular de Sociologia do Trabalho do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, Antunes é autor de diversos livros sobre o mundo do trabalho. Graduado em Administração Pública pela FGV, mestre em Ciência Política pela Unicamp e doutor em Sociologia pela USP, é considerado um dos maiores conhecedores da obra marxiana da América Latina. Em 2018, editou a coleção Mundo do Trabalho (Boitempo), que inclui O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital, no qual estuda a devastação do trabalho e dos direitos no país. “O Brasil é quase macunaímico. A cada hora se inventa uma saída milagrosa para justificar a tragédia, que só se aprofunda. Não foi a reforma trabalhista nem será a reforma da Previdência que vão aumentar o número de empregos”, afirma nesta entrevista.
Extra Classe – Conforme os últimos dados do IBGE, o desemprego, apontado hoje como um dos grandes problemas a serem enfrentados para a recuperação da economia no Brasil, recuou em julho, para uma taxa de 11,8%, o equivalente a 12,6 milhões de pessoas. Mas a queda se deveu à criação de vagas no mercado informal, que bateu um novo recorde. O que é possível projetar para os próximos meses a partir desses números?
Ricardo Luiz Coltro Antunes – O cenário nacional não permite nenhuma avaliação otimista. Em 2019, como um todo, o máximo que poderemos ter é algo semelhante ao que observamos no segundo trimestre. Um crescimento muito pequeno, eu diria minúsculo, do trabalho, só que do trabalho informal. Houve em julho, fechando o segundo trimestre, uma pequena queda no desemprego. Mas ela se deu em função do aumento da informalidade, onde está mais da metade do número de empregos criados. É difícil projetar um quadro favorável na situação interna brasileira neste ano. Em relação ao PIB, vamos conseguir, no máximo, um crescimento próximo a 1%. Para o mercado de trabalho, é uma tragédia. Não estamos conseguindo recuperar nem mesmo a parcela dos empregos destruída a partir da fase final da administração Dilma Rousseff, quando a crise já mostrava seus sinais.
EC – O cenário internacional também é de contenção. Como ele afeta o mercado de trabalho no Brasil?
Antunes – É o outro elemento complicador, porque as expectativas para ele também são pessimistas. Há vários indicadores: a competição entre a China e os Estados Unidos; a recessão que vem marcando o cenário europeu, com os indícios emitidos a partir da economia na Alemanha que, como sabemos, é uma espécie de carro-chefe da União Europeia. No caso dos Estados Unidos, mesmo que se excluam os tensionamentos com a China, há sinais de diminuição do movimento ascendente que observávamos nos anos anteriores, que incluíram o governo Barack Obama e nos primeiros anos de Donald Trump. Ou seja, o cenário internacional sinaliza também uma crise. Nesta conjuntura, só um otimista bobo imaginaria que teremos crescimento.
EC – As reformas estruturais, como a da Previdência e a tributária, podem alterar essas projeções e gerar impacto positivo sobre o mercado de trabalho?
Antunes – O lero-lero em torno da reforma da Previdência é semelhante àquele que ouvimos sobre a reforma trabalhista. Na época da tramitação da reforma trabalhista, o governo prometia que, no ano seguinte, seriam gerados 3 milhões de novos empregos, o que, como podemos confirmar hoje, não aconteceu. Não foi a reforma trabalhista ali atrás, como não é a reforma da Previdência agora que vão aumentar o número de empregos no país. A promessa é sempre a mesma: a de que vamos ingressar em uma nova fase de crescimento, mas ela não se confirma. Provavelmente no próximo ano será inventada uma nova reforma, com o mesmo argumento, de que é preciso fazer o crescimento.
EC – As reformas não terão nenhum impacto no sentido de gerar crescimento?
Antunes – O fato é que o Brasil é quase que um país macunaímico. É um tanto estranho, porque a cada hora se inventa uma saída milagrosa para justificar a tragédia. E, de saída milagrosa em saída milagrosa, a tragédia se aprofunda. Este é o quadro brasileiro. No caso do trabalho, a despeito de uma justificativa de criação de novos postos, na prática o que observamos é a destruição do conjunto de avanços que havia sido conquistado ao longo do século 20.
EC – Se as condições fossem tão ruins, não existiriam objeções mais fortes? A população, de modo geral, não fez oposição significativa à reforma trabalhista. À época, nem o governo esperava que o texto original fosse aprovado praticamente na íntegra, como aconteceu. Passados dois anos, também não há registro de uma rejeição sistemática. O mesmo ocorre com a tramitação da reforma da Previdência. O entendimento da maioria não pode ser favorável às mudanças?
Antunes – Primeiro, é importante que se diga que há um processo global de desmonte social. Depois de um período espetacular do que chamo de era das rebeliões, entre 2008 e 2013, tivemos como resposta uma era das contrarrevoluções. Donald Trump, Brexit, Viktor Orbán, Rodrigo Duterte, Recep Erdogan, Matteo Salvini, a lista é imensa. Há um clima de pessimismo amplo e um sentimento de derrota entre os setores de esquerda lato sensu. No caso brasileiro, em específico, houve uma combinação entre a crise econômica que chegou mais pesadamente a partir de 2014 e a crise política aumentada. Começa com o desencanto da população trabalhadora com os resultados dos governos petistas. Independentemente de alguns avanços que ocorreram, esses governos não tocaram em questões estruturais. Como sabemos agora, aconteceram ganhos, mas que rapidamente podiam ser eliminados, o que se somou ainda à tragédia da corrupção, com a qual se envolveram partes das administrações. Isto posto, se deve ressaltar que a população trabalhadora sabe quando o cenário lhe é desfavorável. Você tem uma economia com 30 milhões de pessoas fora do mercado. São quase 13 milhões de desempregados, outros 4 milhões em desalento, mais 7 milhões de subutilizados, e a informalidade. Se estou quase na fila do desemprego, o que eu penso? Não posso reclamar. Não posso fazer manifestação, não posso me rebelar. Para além disso, há uma inatividade ou uma atividade muito insuficiente dos setores de esquerda. Parece que, desde 2013, esses setores não entenderam o que se passa no país. Quanto ao governo atual, é evidente que haverá corrosão, é uma questão de tempo.
Fotos: Antonio Scarpinetti/SEC Unicamp
EC – No país, não raro, a informalidade se confunde com empreendedorismo. Por quê?
Antunes – A ideologia do empreendedorismo é um dos aspectos mais nefastos do nosso tempo. Ela floresce em um quadro no qual o Estado se mostra incapaz de garantir direitos e uma parte dos setores empresariais se apresenta incapaz de oferecer empregos dignos. O que resta é uma mistificação bastante poderosa do empreendedorismo. ‘Seja o empresário de si mesmo.’ Mesmo que, em verdade, isso signifique que os empreendedores serão proletários de si mesmos. Vão perder direitos, porque, nesta linha, empreendedor não tem direitos; e muitos vão investir o pouco que têm e vão quebrar. Mesmo assim, é uma proposição forte porque, se alguém está desempregado e não há um emprego formalizado, vai fazer o que sabe. Se você sabe dar aula, dará aula como puder. Se não estão contratando professores com carteira assinada, mas estão contratando via o que chamamos de ‘uberização’ do professor, com pagamento por hora, você aceitará. Por quê? Porque o principal flagelo de todos é o desemprego. E, depois que um trabalhador vivencia o cotidiano do desemprego, qualquer alternativa é melhor, mesmo aquelas em que, aos poucos, a pessoa vai perceber que não tem direitos. Apesar de todo esse cenário, há algo que pode ser confirmado no decorrer da história: nenhuma sociedade suporta por muito tempo só os escombros.
EC – Há mudanças inegáveis no mundo do trabalho, geradas por diferentes fatores, como o uso da tecnologia, as questões de mobilidade, que vão muito além das questões ideológicas. É possível projetar as mudanças no curto prazo?
Antunes – Na história, tudo é imprevisível. Se esta nossa conversa estivesse acontecendo no ano de 1989 e eu lhe dissesse que a União Soviética iria desaparecer, você muito provavelmente acreditaria que sou louco. Da mesma forma, não previmos as rebeliões que ocorreram a partir de 2008, e nem estas contrarrevoluções de direita. O futuro é imprevisível. Mas não tenho qualquer dúvida a respeito de que, como eu disse, nenhuma sociedade suporta infinitamente o escombro. Além disso, o sistema global do capital, por mais que destrua trabalho, ele não cria riqueza sem trabalho. Máquinas não criam riqueza, podem falar de máquina digital, informacional, inteligência artificial, internet das coisas, isso tudo potencializa riqueza, mas não a cria. O que tipificou o século 20? A sociedade do automóvel. E acabou, já se foi. O que tipifica este início do século 21, e falo em início porque ainda há muito por vir, é a sociedade do smartphone. É um mundo digital, mas para ele usamos as mãos. E sem a extração de trabalho mineral nas minas da Ásia, da América Latina, da África do Sul, de onde for, não somos capazes de produzir sequer idealmente o celular. O capital pode potencializar o lucro, a riqueza, mas não sobrevive sem alguma forma de trabalho humano.
Imagem: Reprodução
EC – Isso não muda o fato de que há uma grande transformação em curso, alavancada pelo uso da tecnologia. Como isso afeta o mundo do trabalho, os tipos e a quantidade de empregos?
Antunes – O que acontece hoje vai abrir espaço para manifestações e explosões. É assim no mundo inteiro. Só quem não estuda a história pode imaginar que ela é um fio linear sem tensão. Passamos agora por um momento de reorganização. Quais são as nossas questões prioritárias? O desafio é reinventar um novo modo de vida. É um desafio imediato, mas sua implementação é longa. O receituário que usávamos até cinco ou 10 anos atrás envelheceu. Não é mais assim que vamos mudar as coisas. O imperativo do século 21 é redesenhar. No dia a dia, lutar para não ter direitos destruídos. O mundo que temos é irreformável. Então precisamos redesenhá-lo. Isso não chega a ser uma novidade. Por que aconteceu a Revolução Francesa? Porque as populações cansaram do domínio feudal, absolutista, clerical. A Revolução Francesa não foi um raio em um céu azul. Foi um processo. No nosso momento, precisamos estabelecer quais as questões cruciais do nosso tempo e reinventar um modelo que tenha o que nos oferecer.