Desinformação em massa na rede das ilusões perdidas
Fotos: Arquivo Pessoal
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Mariana Barbosa é jornalista formada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) e especializada em Política Internacional pela London School of Economics. Com o objetivo de “ajudar a compreender o fenômeno da pós-verdade em suas dimensões política, tecnológica, filosófica, jurídica e jornalística”, Mariana reuniu um time de peso para lançar pela Editora Cobogó o Pós-verdade e fake news – Reflexões sobre a guerra de narrativas. O trabalho, composto de oito artigos e duas entrevistas sobre a temática, é um convite para uma reflexão mais detida e, também, uma tentativa de apontar caminhos para uma atuação mais consciente nas redes. Ela já trabalhou nas redações dos jornais O Estado de São Paulo e Folha de São Paulo. Atualmente colaboradora do site de economia e negócios Brazil Journal. Mariana acredita ser necessário, diante de um fenômeno como as atuais fake news, apostar no fortalecimento das instituições e cobrar responsabilidades. “Não podemos jogar fora o bebê junto com a água. Até porque esse mito da desintermediação caiu por terra”, pondera, ao destacar que “se as pessoas que começaram a acreditar que estariam livres do domínio da Rede Globo, hoje passaram a ser manipuladas por algoritmos”.
Extra Classe − Em 2015, Umberto Eco falou que as redes sociais deram o direito à fala para legiões de imbecis com poder para fazer mal à coletividade. Isso foi bem antes de Steve Bannon e da Cambridge Analytica serem revelados. O que você pensa que Eco diria hoje depois da série de fatos recentes que comprovam o uso político das mídias suportadas no ambiente web?
Mariana Barbosa − Acho que ele repetiria exatamente a mesma frase. Humberto Eco morreu em fevereiro de 2016, em plena campanha eleitoral americana, com ações de desinformação correndo soltas no Facebook. Embora só mais tarde a gente viesse a descobrir os interesses por trás das campanhas de desinformação, o ambiente tóxico já estava dado. O problema não é o ambiente web ou a tecnologia em si, mas o uso político das ferramentas. Hoje há uma grande discussão sobre o uso de microtargeting – aqueles anúncios dirigidos para perfis muito específicos – para campanhas políticas, por exemplo. O Twitter e o Google já se comprometeram a não fazer microtargeting para campanhas políticas e o Facebook está sendo pressionado a ir na mesma direção. Os gigantes de tecnologia precisam ser chamados à responsabilidade.
EC − O trabalho que você organizou faz chegar à conclusão de que, ao contrário que se imaginava, as redes acabaram não estimulando uma cultura democrática. Em sua opinião, quais foram os principais motivos do fracasso?
Mariana − Há uma espécie de ilusão perdida. Acabou aquele sonho de que a força da coletividade nas redes iria tornar o mundo melhor. Mas não creio que possamos falar em fracasso. Essa mesma rede que faz disseminar o discurso do ódio e campanhas de desinformação também empodera mulheres, negros e diversos grupos sociais. A tecnologia, não há dúvida, facilita a produção e difusão de mentiras e discursos de ódio em uma escala nunca antes sonhada. Mas são pessoas de carne e osso que fazem a diferença na disseminação de fake news (algumas ganhando pra isso, a grande maioria não).
EC – Entre a série de textos do Pós-verdade e fake news, algum ponto em comum chama a atenção?
Mariana − A grande questão – que é abordada de formas diferentes em alguns dos artigos – é: por que as pessoas compartilham esse conteúdo de origem no mínimo duvidosa? Será que as pessoas compartilham notícias falsas por ignorância ou ingenuidade, acreditando serem verdadeiras?
EC – Como o livro organizado por você aborda essas indagações?
Mariana − Os artigos da Tatiana Roque e do Joel Pinheiro da Fonseca tocam nesse ponto. Os dois, por caminhos diferentes, chegam à mesma conclusão de que as fake news se propagam rapidamente, pois o ser humano é movido pelas emoções. As pessoas se engajam em repassar mensagens não pela sua veracidade – elas nem se dão ao trabalho de investigar se é ou não verdade –, mas porque elas reforçam valores e convicções de seus grupos de afinidade. E essa repetição de mensagens em grupos de afinidade – seja o grupo da família, da escola ou do trabalho – leva a uma familiaridade e isso, por sua vez, leva à aceitação. As pessoas compartilham, pois querem se sentir aceitas e pertencer a determinado grupo. Por isso é tão difícil – diria impossível – acabar com as fake news. É um mal que veio para ficar e temos que aprender a lidar com ele. E nesse ambiente, todos têm a sua parcela de responsabilidade – governos, empresas e indivíduos. Um dos artigos trata da importância da educação midiática. As pessoas precisam aprender a navegar nas redes com mais consciência e responsabilidade.
As mentiras, geralmente embaladas em um conteúdo
de forte apelo emocional,
se propagam muito mais rapidamente
e intensamente do que os desmentidos.
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EC − Voltando ao Umberto Eco. Ele, digamos, foi um pioneiro ao apontar a necessidade da imprensa criar equipes de especialistas para o filtro do que é real e o que não é real nas “informações” difundidas. O trabalho que você organizou fala das fact checking. Dá tempo de correr atrás do estrago já feito?Mariana − No livro, o jornalista Gilberto Scofield, que é diretor da agência Lupa, uma das principais agências de checagem de dados do país, fala de como esse trabalho se tornou fundamental e complementar ao trabalho jornalístico dos veículos de comunicação. O trabalho de discernir o que é fato e o que não é, sobretudo na fala de governantes e membros do poder público, é muito importante – embora jamais seja suficiente para resolver o problema. As mentiras, geralmente embaladas em um conteúdo de forte apelo emocional, se propagam muito mais rapidamente e intensamente do que os desmentidos. Mas há algumas iniciativas interessantes, como parcerias de agências de fact checking com o Google e que ajudam a ranquear melhor os desmentidos.
EC – Você pode nos citar um exemplo?
Mariana − Na época do assassinato da Marielle, quando surgiu aquela história de que ela seria namorada do Marcinho VP, o Google promoveu posts de agências de checagem para o topo das buscas. Se você pesquisar Marielle Marcinho VP, o post da agência Aos Fatos, dizendo se tratar de uma mentira, aparece no topo da lista. Esse é um ótimo exemplo de como as gigantes de tecnologia podem ajudar a promover um ambiente mais saudável nas redes.
EC – Mas, às vezes, não dá a sensação de que as agências de checagem de notícias, tamanho o volume de dados que são disseminados, estão na luta para secar gelo
Mariana − Totalmente. As agências de checagem são muito importantes – até para uma questão de registro histórico – mas estão longe de dar conta da avalanche de desinformação que tomou conta do mundo.
EC − Em uma parte do livro é falado que a caixa de Pandora foi aberta e não é possível ser fechada. Como conviver com uma sentença tão assustadora?
Mariana − Com informação. Precisamos educar as pessoas, dos jovens aos idosos, a navegar com mais consciência e responsabilidade. As pessoas precisam saber que tudo o que fazem na web ajuda a construir perfis e que esses perfis serão comercializados com diferentes interesses. As pessoas também precisam aprender conceitos básicos sobre como funciona um jornal e o que é notícia. E que as chamadas fake news são mentiras que se apropriam do formato jornalístico com a intenção de enganar. Os jornais podem cometer erros, mas não fazem fake news. Eles têm endereço e podem ser responsabilizados por seus erros – ao contrário dos autores de fake news. Esse tipo de informação, que parece óbvia para nós jornalistas, não é de conhecimento de toda a população. Mas a tarefa não é só do indivíduo. Governos e empresas precisam se engajar na tarefa de combate à desinformação. Mas a coisa complica quando você tem governos promovendo a desinformação…
EC − Na entrevista exclusiva para o seu livro, o cientista político Peter Warren Singer diz que acredita ser possível combater as fake news, mas de uma forma coletiva, envolvendo governos, empresas de tecnologia e a sociedade. Você tem percebido um esforço eficaz nesse sentido?
Mariana − Ainda é tímido, mas está começando. Como o Peter Warren Singer diz na entrevista, saímos da fase de negação. No início, o Facebook se recusava a admitir haver um problema. Dizia que não podia retirar conteúdos. Hoje, por pressão de governos e de anunciantes, empresas como Facebook e Google/Youtube passaram a retirar conteúdos ligados a supremacistas brancos, ultranacionalismo e discursos de ódio. A Procter&Gamble, um dos maiores anunciantes do mundo, ameaçou parar de anunciar no YouTube caso esses conteúdos não fossem retirados do ar. As empresas de tecnologia estão sendo pressionadas por anunciantes e reguladores nos Estados Unidos e na Europa.
EC − Warren Singer, aliás, é especializado em guerras no século 21. A presença dele em seu trabalho aponta que, apesar do ambiente tecnológico sofisticado, tudo o que está acontecendo não passa das velhas táticas militares de informação e contrainformação?Mariana − Exatamente. As redes viraram literalmente um campo de batalha.
EC − Como jornalista, acredita ou não que a imprensa, fortemente questionada no discurso daqueles que defendem o seu fim como única mediadora no fluxo das informações, tem uma parcela de culpa em tudo isso que fomentou o fenômeno fake news que vivemos hoje?
Mariana − Vivemos uma era de falta de credibilidade das instituições que sempre serviram de base para a democracia: mídia, ciência, Judiciário, classe política. Essa falta de credibilidade sem dúvida decorre de erros cometidos pelas próprias instituições – arrogância, erros e manipulações. Esse ambiente de falta de credibilidade das instituições, em que tudo é questionado, favorece a disseminação de fake news, e acaba por contribuir para minar ainda mais a credibilidade das instituições. Isso vale para a imprensa – quando um Trump ou Bolsonaro acusa a imprensa de produzir fake news – ou para a ciência, com o movimento antivacina, por exemplo.
EC – O que fazer?
Mariana −Acredito que precisamos mais do que nunca fortalecer as instituições, pois elas são fundamentais para a democracia e a vida em sociedade. Elas precisam ser responsabilizadas por seus erros. Mas não podemos jogar fora o bebê junto com a água. Até porque esse mito da desintermediação caiu por terra. As pessoas achavam que estariam livres do domínio da Rede Globo e passaram a ser manipuladas pelos algoritmos do Facebook, que é regido por interesses comerciais.
EC – Você falou no papel de fortalecer as instituições. Como está vendo a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre as fake news que está sendo realizada no Congresso?
Mariana − A CPMI das fake news é muito importante. Ela está revelando aí os bastidores das eleições e que existem fábricas de produção de notícias e perfis falsos até dentro de gabinetes. Eu acho muito importante passar isso a limpo. Mas eu tenho uma grande questão com essas discussões no Legislativo, um certo temor de que achem que tem uma lei que vai resolver tudo. Essa lei que vai resolver tudo não existe e a chance de ela ferir a liberdade de expressão é muito grande, porque se hoje você coíbe, assim, uma coisa do mal, amanhã qualquer coisa, o seu pensamento, pode ser também taxado por quem estiver no comando e vai definir se aquilo é falso ou verdadeiro.
EC – Pois é. Existe um limite tênue aí entre o combate às fake news e à liberdade de expressão. Complicado, não?
Mariana – A noção de falso e verdadeiro está sendo questionada e eu acho muito complicado quem estiver no poder definir isso. Isso não significa que a gente tem que deixar as desinformações e o discurso de ódio acontecer. As pessoas que espalham esse tipo de “informação” precisam ser punidas com as leis que já existem: calúnia e difamação, por exemplo. Enfim, já temos instrumentos para fazer isso, preservando o direito de expressão. Eu prefiro o lado da educação midiática. Acho que as pessoas têm de ser responsabilizadas. A gente tem que construir uma sociedade mais forte, mais responsável, até para não ser vítima desses tipos de desinformação.
EC – Um exemplo de como construir essa sociedade mais responsável nas redes?Mariana − Tem coisas a serem feitas, medidas regulatórias. Eu entendo que as gigantes da tecnologia são uma mídia e elas têm que ser responsabilizadas como os jornais e as emissoras. Elas não podem dizer que são só uma plataforma. Elas têm, sim, os algoritmos que podem ser usados para o bem e para o mal e precisam usar os seus algoritmos para o bem. Tem de haver uma responsabilização, regras a serem feitas, mas onde nem as gigantes da tecnologia sendo censoras, nem os legisladores. Definir o que é ou não é fake news é algo muito subjetivo.
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Pós-verdade e fake news: Reflexões sobre a guerra de narrativas.
Organização: Mariana Barbosa.
Artigos: Fernanda Bruno e
Tatiana Roque, Francisco Brito
Cruz, Eugênio Bucci, Dora
Kaufman, Gilberto Scofield Jr.
Alexandre Sayad, Ronaldo Porto
Macedo Jr., Joel Pinheiro.
Entrevistados: Peter Warren Singer e
Patrícia Campos Mello.
Número de páginas: 128
Preço: R$ 39,00
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