Democracia em xeque
Foto: Reprodução/vídeoweb
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Gisele Cittadino, professora e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio é fundadora da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e integrante do Grupo Prerrogativas, um coletivo de personalidades vinculadas ao Direito − professores, advogados, promotores, juízes − comprometidos com a defesa dos direitos da cidadania, das prerrogativas dos advogados e do Estado Democrático de Direito. Nessa entrevista ao Extra Classe, a jurista que foi uma das organizadoras do livro A Resistência ao Golpe de 2016 avalia os constantes ataques ao modelo democrático. Ela diz se surpreender com aqueles que imaginam um Bolsonaro inteligente, articulado, politicamente hábil, capaz de inaugurar um método político eficaz e entende que o presidente sabe muito bem que não será afastado do poder por cheques mal explicados, por “rachadinhas” com os assessores, por corrupção na máquina governamental ou nem mesmo por envolvimento em crimes mais graves, desde que entregue aquilo que prometeu aos setores financeiros e políticos que o apoiam.
Extra Classe − Recentemente o presidente Jair Bolsonaro compartilhou uma convocação de seus apoiadores para um manifesto contra o Congresso Nacional. Como a senhora vê isto?
Gisele Cittadino − Do ponto de vista jurídico, não há dúvidas de que o presidente da República cometeu crime de responsabilidade. Ao divulgar via redes sociais uma convocação não apenas contrária ao Congresso Nacional, mas também ao Supremo Tribunal Federal, o presidente violou o item 2 do artigo 85 da Constituição de 1988. Se os criminalistas me permitirem uma brincadeira, o crime de responsabilidade na gestão de Jair Bolsonaro é uma espécie de crime continuado, pois o presidente já violou o decoro divulgando vídeo pornográfico, abusou do poder quando exonerou servidor público que o havia multado ou determinou a comemoração do golpe de Estado de 1964, manifestou-se de forma hostil em relação a um país estrangeiro e praticou “pedaladas fiscais”. Qualquer desses atos seria motivo para um pedido de impedimento por crime de responsabilidade. Ao mesmo tempo, todos nós sabemos que essa prática não terá fim. Alguns dizem que o presidente da República é inimputável. Eu não chegaria tão longe – talvez por não administrar a angústia de saber que meu país está entregue nas mãos de um doente mental – mas tenho convicção que Bolsonaro tem um psiquismo limitado e incapaz de lidar com a crítica, com a alteridade ou internalizar limites.
Foto: Acervo pessoal/Divulgação Foto: Acervo pessoal/Divulgação
Gisele − O problema é que os responsáveis pela eleição do presidente não têm alternativa. Uma das primeiras reações institucionais foi a do decano do STF, ministro Celso de Mello. As dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal tardaram, e em menos de uma semana após a agressão sofrida, estes parlamentares já colocam panos quentes na ação do presidente que, de tão aparvalhado, se desculpou – como das outras vezes – mentindo de forma descarada. Ainda que a reação imediata da grande imprensa tenha sido dura, já iniciaram a fase dos elogios à condução econômica do governo. E assim será até a próxima manifestação de descontrole de Bolsonaro, pois do ponto de vista das elites políticas não há muito o que fazer. A verdade é que quase nada mudou desde o processo eleitoral. A direita liberal segue sem nenhuma alternativa política sólida, e apenas testam nomes “alternativos” como os de Luciano Huck ou Sergio Moro. Quanto ao grande eleitorado de Bolsonaro nas camadas populares, a agressão ao Congresso Nacional pode até mesmo soar positivamente.
“As Forças Armadas no Brasil hoje estão longe de ser um grupo monolítico. Isto significa que há inteligência e pessoas qualificadas entre os militares, dirigindo espaços acadêmicos e interagindo com parte da intelectualidade brasileira. Há ainda uma grande diferença entre uma velha elite militar aposentada e o setor que construiu sua trajetória profissional sob a égide da Constituição Federal”
EC − Não lhe parece irônico o fato de uma das manifestações mais contundentes contrárias à convocação dos protestos ter partido exatamente de um ex-ministro de Bolsonaro, o general Santos Cruz?
Gisele − As Forças Armadas no Brasil hoje estão longe de ser um grupo monolítico. Isto significa que há inteligência e pessoas qualificadas entre os militares, dirigindo espaços acadêmicos e interagindo com parte da intelectualidade brasileira. Há ainda uma grande diferença entre uma velha elite militar aposentada e o setor que construiu sua trajetória profissional sob a égide da Constituição Federal. Importante também considerar o fato de que Bolsonaro tornou-se capitão apenas depois que saiu do Exército. É interessante, então, imaginar uma relação hierárquica que subordina um general a um capitão que emocionalmente se descontrola e intelectualmente deixa muito a desejar. Santos Cruz não foi o primeiro militar a deixar o governo e alguns solicitaram que suas fotos fossem retiradas dos cards que convocam a manifestação para o dia 15 de março.
EC − Também há aqueles que acreditam que Bolsonaro, com seus avanços e recuos, está fazendo uma espécie de teste com a sociedade brasileira. Que é um método. Já, por outro lado, há os que acreditam que ele é um voluntarista. O que é de fato?
Gisele − Fico muito surpresa com aqueles que imaginam um Bolsonaro inteligente, articulado, politicamente hábil, capaz de inaugurar um método político eficaz. Seria uma espécie de criatura cindida daquele velho Bolsonaro que ameaçava colegas de estupro, roncava nas sessões do Parlamento e jamais apresentou um único projeto de lei. Acredito, sim, que no governo Bolsonaro, enquanto o presidente coloca em risco sua própria sobrevivência política, há um grupo que opera no sentido de aproveitar tais espaços abertos pelos escândalos para aprovar alterações no Estatuto da Reforma Agrária ou organizar mais um leilão do Pré-Sal, por exemplo. Afinal, diante da ausência de alternativas, foi para isso que as elites brasileiras viabilizaram a eleição do atual presidente. Enquanto for possível politicamente articular a aliança entre um voluntarista desbocado e destemperado com um projeto econômico que prioriza os interesses do capital financeiro, será isso que teremos.
EC − Praticamente todos os editoriais da imprensa nacional falaram da necessidade de parar os rompantes do presidente, inclusive com um impeachment. Se, de fato, temos um presidente que está cometendo crimes de responsabilidade atentando contra a democracia, por que uma atitude mais forte ainda não foi tomada?
Gisele − Como eu disse, as elites brasileiras não tiveram alternativa na eleição passada e permanecem na mesma situação. Bolsonaro nunca foi a primeira opção daqueles que engendraram o golpe de 2016. Na avaliação das elites, era preciso por fim a era petista e, para isso, as muitas e diversas oposições ao Partido dos Trabalhadores não tiveram a paciência nem a responsabilidade política de optar pela via eleitoral. E assim, mediante um acordo do qual participam Judiciário, Ministério Público, parlamentares de oposição, imprensa e parte do empresariado nacional e internacional, o governo petista é apeado do poder mediante um processo político que utiliza um verniz jurídico. O impeachment da presidente Dilma Rousseff foi apenas o primeiro capítulo de uma guerra jurídica, de um processo de lawfare, ou seja, do uso da normatividade vigente com a finalidade de perseguir adversários políticos, que atingirá o seu ápice com a prisão do ex-presidente Luiz Inacio Lula da Silva, no âmbito da operação Lava Jato. Uma vez obtida a retirada de Lula do processo eleitoral, em um dos processos mais vergonhosos da história do Judiciário brasileiro, a opção Bolsonaro ainda não estava incluída na lista das nossas elites.
EC – Qual o papel das grandes empresas de mídia nisso tudo?
Gisele – A grande imprensa havia iniciado um forte processo de criminalização da política com o objetivo de atingir o Partido dos Trabalhadores. Mas nem tudo deu certo, pois Lula não só continuava a ser um nome imbatível, como esse processo de criminalização enlameou a política e os políticos como um todo. Se, de um lado, o Judiciário assegurou a não participação no processo eleitoral do ex-presidente Lula, Geraldo Alckmin, o candidato do PSDB e o preferido das nossas elites, estava ferido de morte e seu partido se tornara uma frágil sombra do seu passado. É nesse contexto de falta de alternativa política que Bolsonaro se torna a única opção antipetista, tendo bem se apropriado do discurso antipolítica, mesmo que ele tenha dela sobrevivido nos últimos 28 anos antes do processo eleitoral.
“Enquanto for possível politicamente articular a aliança entre um voluntarista desbocado e destemperado com um projeto econômico que prioriza os interesses do capital financeiro, será isso que teremos”
EC − Existe uma corrente que atribui esse desejo de golpe ao fato de ficar cada vez mais evidente a ligação dos Bolsonaros com ilícitos e que num Estado autoritário eles se preservariam. Um exemplo foi a exposição da família como o caso do miliciano morto na Bahia e logo depois de declarações sobre conversas plantadas nos celulares do morto em poder da polícia. Essa tese se confirma?
Gisele − Bolsonaro sabe melhor do que qualquer um de nós que não será afastado do poder por cheques mal explicados, por “rachadinhas” com os assessores, por corrupção na máquina governamental ou nem mesmo por envolvimento em crimes mais graves. Desde que sua equipe de governo entregue aquilo que prometeu, o presidente pode desfilar nas rampas do Planalto sem ser incomodado. Em outras palavras, desde que desmonte as burocracias de bem-estar social construídas na era petista, privatize as empresas estatais, limite os gastos do Estado e atue de acordo com os interesses do setor financeiro, Bolsonaro entregará a faixa presidencial em 2022 ou a colocará em seu próprio pescoço se for reeleito. Ocorre, no entanto, que Bolsonaro, por suas fragilidades pessoais, pode ser inimigo de Bolsonaro. O projeto econômico do governo requer um mínimo de estabilidade política, que, vejam só, não é ameaçada pelas forças da oposição, mas sim pelo voluntarismo e pelas fragilidades psíquicas que fazem do presidente da República uma força disruptiva.
EC −A senhora foi uma das organizadoras do livro A Resistência ao Golpe de 2016. Existe um correlacionamento dos fatos que culminaram com o impeachment da presidente Dilma com os fatos que estão acontecendo hoje?
Gisele − Mais do que um correlacionamento, há uma linha de continuidade. O processo político que culminou com o impedimento da presidente Dilma Rousseff tem o mesmo DNA antidemocrático que caracteriza os tempos atuais. É preciso lembrar que no mesmo dia em que o resultado eleitoral foi divulgado, Aécio Neves, o candidato derrotado, anunciou que não aceitaria a decisão tomada pela maioria do povo brasileiro. A partir daí, já em uma conjuntura de crise econômica, o segundo mandato da presidente reeleita é marcado por ataques sucessivos provenientes das “pautas bombas” do Legislativo e dos editoriais da grande imprensa, que passam a criminalizar a atividade política em seu conjunto. Essa conjuntura de crítica da política permanece inalterada. Afinal, basta observar o general Heleno descrevendo os atuais parlamentares como chantagistas ou Bolsonaro insistindo na escolha exclusivamente técnica de seus ministros, quando, na verdade, seus principais colaboradores violam o interesse público e implementam decisões que favorecem exclusivamente grupos políticos amigos.
Foto: Acervo Pessoal Foto: Acervo Pessoal
Gisele − A democracia brasileira não está em risco neste momento apenas. Na verdade, ela sempre esteve em perigo e sob permanente ameaça. Nos habituamos com uma certa normalidade constitucional e ignoramos os sinais emitidos por nossas elites racistas e patrimonialistas. Desde 2005, no episódio nomeado pela imprensa como “mensalão”, já estava claro que não se permitiria – pelo menos pela via democrática – a incorporação de parte da população brasileira ao conjunto da nação. O Brasil sempre foi um país destinado a apenas 40% da sua população, e isso permanece como a herança maldita da escravidão e do histórico processo de privatização do público por grupos oligárquicos, ainda que estes mudem ao longo do tempo. A ideia de um país inclusivo, soberano e democrático é inteiramente incompatível com o projeto de poder das nossas elites. De outra parte, as nossas camadas populares, habituadas à violência e ao impedimento à participação política, por vezes encontram boas alternativas pela via eleitoral. No entanto, este caminho costuma ser igualmente cerceado, como ocorreu com Vargas, Goulart ou Dilma.
“Fico muito surpresa com aqueles que imaginam um Bolsonaro inteligente, articulado, politicamente hábil, capaz de inaugurar um método político eficaz”
EC − Estamos em constante instabilidade, então?
Gisele − Lamentavelmente, vivemos em um país sem nenhuma tradição democrática e quase sempre submetido a regimes ditatoriais. Foram poucos os anos de liberdade política no século 20. Um dado bem descreve tal quadro: dentre os últimos 26 presidentes, apenas cinco foram eleitos pelo voto popular e concluíram seus mandatos.
EC – Alguma esperança?
Gisele − Difícil prever o que acontecerá nos próximos meses ou anos. De qualquer maneira, com a era petista, a sociedade brasileira e suas camadas populares experimentaram um tipo de inclusão com o qual não estavam habituadas. Resta saber que marcas tal processo terá inscrito na consciência política do nosso povo, até onde ele estará disposto a lutar e qual será a dimensão dos limites que encontrará pela frente.
EC – Que tipo de contribuição negativa as forças políticas à esquerda e centro-esquerda também deram para chegarmos ao quadro atual?
Gisele – Esta talvez seja a cobrança mais indevida feita nos últimos tempos no Brasil aos setores da esquerda. Quem precisa fazer autocrítica é o STF, o Parlamento e os políticos que lideraram o golpe de 2016, parte do empresariado historicamente antidemocrático deste país, a grande imprensa e o sistema de justiça, especialmente o Judiciário Federal, o Ministério Público Federal e a Polícia Federal. Estas forças, em ação conjunta e coordenada, são as responsáveis pelas crises econômica, institucional, política e cultural nas quais estamos mergulhados. Agiram de forma tão eficiente que foram capazes de inocular uma espécie de vírus antipetista e anti-esquerda na sociedade brasileira, gerando inclusive um tipo de cultura de ódio com a qual não estávamos habituados.