Assembleia Legislativa do RS sedia evento que discrimina transgêneros
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Provocou indignação e repercutiu de forma negativa palestra agendada para o dia 18, na Assembleia Legislativa do RS e divulgada nesta terça-feira, 3, na internet. Intitulada Epidemia de Transgêneros: o que está acontecendo com as nossas crianças?, a palestra foi proposta pelo deputado estadual Eric Lins (DEM) e será ministrada pela psiquiatra Akemi Shiba.
Ambos são integrantes do grupo Escola Sem Doutrinação, que defende, entre outras coisas, que as escolas não possam abordar temas relacionados à educação sexual e à identidade de gênero em sala de aula. Após a repercussão negativa do evento, os organizadores mudaram o título da palestra para Aspectos médicos e desenvolvimentais da disforia de gênero na infância e adolescência, mantendo, no entanto, a mesma linha de abordagem.
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Em nota, a presidente da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia do RS (CRPRS), Cristina Schwarz, afirma que a palestra “é discriminatória e um desserviço para a caminhada que estamos empreendendo enquanto sociedade por um mundo com mais liberdades e mais respeito à pluralidade dos modos de ser, de viver, de existir”.
Membro titular da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa gaúcha e uma das primeiras a se manifestar sobre o assunto, a deputada Luciana Genro (PSol) considera o evento uma iniciativa de caráter transfóbico. “Promove uma ideologia de extrema-direita e utiliza um suposto conhecimento médico e científico para legitimar o preconceito contra as pessoas trans”, acentua.
Ela lembra que a Organização Mundial da Saúde (OMS) já declarou que a transexualidade não é uma doença e que o Supremo Tribunal Federal (STF) criminalizou a transfobia no Brasil. A deputada afirma que está preparando uma petição junto ao Ministério Público do RS “para que investigue o cometimento de crime de ódio no caso deste evento”.
Foto: Celso Bender/ Agência ALRS
Para a deputada Sofia Cavedon (PT), membro titular da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da ALRS, trata-se de um evento equivocado, porque trabalha com a ideia de doença para a manifestação de gênero. “A abordagem desconsidera o acúmulo científico e cultural que reconhece a liberdade de expressão da vivência e da sexualidade, sem qualquer discriminação”, ressalta.
Questionada sobre o posicionamento oficial da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia, presidida pelo deputado Sergio Peres (Republicanos), Luciana Genro afirma que a Comissão ainda não se posicionou sobre o tema, tendo em vista que as reuniões ocorrem somente às quartas-feiras.
A deputada solicitou, na manhã de terça-feira, 3, durante a reunião de líderes, que a presidência da Assembleia não permita a realização de um evento transfóbico e que propaga o discurso de ódio na Casa. “Para minha surpresa, a resposta do presidente Ernani Polo (PP) veio pela imprensa em seguida, dizendo que não avaliaria o evento de outros deputados”.
Sofia Cavedon acredita que dificilmente haverá unanimidade nos posicionamentos porque, atualmente, há na Comissão de Cidadania e Direitos Humanos deputados ligados às igrejas pentecostais que expressam claramente seus preconceitos e votam contra a educação sexual nas escolas e em políticas libertadoras.
“A proposta da palestra fere os princípios dos Direitos Humanos, da Democracia e da Liberdade”, destaca Sofia. Para ela, o debate e o pluralismo de ideias no parlamento têm que ser garantidos, sem censura prévia. “Porém, quando um evento fortalece a discriminação e esteriotipa ou criminaliza os sujeitos, ele deve ser questionado e revisto. Foi o que fizemos junto à reunião de líderes”.
Foto: Will Shutter/ Câmara dos Deputados
Ministra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República entre 2011 e 2014, atualmente exercendo seu quinto mandato como deputada federal, Maria do Rosário (PT) lembra que entre os fundamentos para os Direitos Humanos estão o reconhecimento da identidade de cada indivíduo e o respeito à diversidade humana.
Para ela, a proposta do evento na ALRS promove a violação aos direitos humanos por tratar como doença um tema complexo como o desenvolvimento da criança, no que diz respeito à identidade na qual esta se percebe. “Isto reforça o estigma, a incompreensão e a violência contra crianças e famílias que já vivem esses processos com muito sofrimento, diante de agressões”.
Para o presidente da ALRS, deputado Ernani Polo, não há necessidade de uma avaliação prévia do mérito da proposição dos eventos que acontecem nas dependências do Legislativo. A deputada federal Maria do Rosário concorda que a avaliação prévia pode estabelecer poder de censura, mas defende a importância de um protocolo no qual os organizadores dos eventos assumam um compromisso com os direitos humanos e com a democracia. “Desrespeitados tais princípios, se cancela e responsabiliza os organizadores”, aponta.
Foto: Celso Bender/ Agência ALRS
Para Luciana Genro, embora não se deva confundir “liberdade de expressão com liberdade de opressão”, a especificidade desse evento está no fato de que propaga um discurso de ódio e uma ideologia transfóbica, que é a responsável direta pela morte de pessoas trans.
“O Brasil é o país que mais mata essa população em todo o mundo. Por isso, um evento desses não pode ser considerado normal ou uma atividade regular na Assembleia. Entendo que é preciso que o Parlamento se levante contra o preconceito e diga que não vai permitir este tipo de atividade na Casa”, protesta.
Primeira pessoa trans a ser nomeada assessora na história da Assembleia Legislativa do RS, Natasha Ferreira integra a equipe de Luciana Genro. Ao saber do evento, juntamente com Cleonice Araújo, presidente do Conselho Estadual de Promoção dos Direitos LGBTs, dirigiu-se ao Conselho Regional de Medicina (Cremers), onde ambas foram orientadas a formalizar a denúncia para a abertura de uma sindicância e investigue a conduta da palestrante, a médica Akemi Shiba.
A diretoria do Cremers foi contatada pela reportagem do Extra Classe, mas ainda não se manifestou.
Mensagem gravada no telefone do consultório da psiquiatra Akemi Shiba informa que ela está em férias.
Confira a seguir a íntegra do Parecer elaborado pela Conselheira e presidente da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia do RS (CRPRS), Cristina Schwarz:
Foto: Wanderlei Oliveira/ CRPRS/ Divulgação
“Acredito que um evento que anuncia a intenção de pautar as transgeneridades como uma epidemia está se baseando em uma lógica patologizante, que associa as identidades de gênero não normativas a uma doença e, ao mesmo tempo, um perigo iminente a ser evitado e, em última instância, a ser eliminado. Como exemplo, se pensarmos nos incessantes alertas relativos aos riscos atribuídos a uma epidemia do Coronavírus, é fácil ver como a ideia de uma epidemia nos remete a uma ameaça que devemos eliminar. Entendo que discursos como estes se pautam em uma suposta neutralidade científica que nada tem de neutra, pois ele enquadra a população que vivencia o gênero de forma diversa da norma de congruência entre sexo e gênero (que chamamos cisgênero) como alvos a combater. Discursos como estes contribuem para a proliferação da cultura de ódio e discriminação em relação às diversidades de gênero e sexualidade porque, ao reforçarem seus alvos como ameaças, legitimam as iniciativas de determinadas pessoas e grupos pela sua eliminação. Precisamos agir sobre esta cultura que faz do Brasil o 4º país que mais mata pessoas LGBTIs no mundo e que faz com que, por exemplo, tenhamos no RS números alarmantes de mortes por violência de gênero de pessoas transexuais – em Santa Maria, por exemplo, foram 4 travestis assassinadas entre setembro de 2019 e início de 2020. A ameaça que precisamos debater é esta: a da violência e da intolerância.
Assim, penso que a iniciativa desta palestra, além de extremamente infeliz, é discriminatória e um desserviço para a caminhada que estamos empreendendo enquanto sociedade por um mundo com mais liberdades e mais respeito à pluralidade dos modos de ser, de viver, de existir.
Um evento baseado na premissa do perigo de as transgeneridades estarem acometendo a infância, propondo-se à orientação de mães e pais, corre o risco de dificultar a compreensão dos pais sobre o que de fato acontece com seus filhos. Não colabora para a construção de vínculos familiares efetivos, que contribuam para o jovem se ver apoiado. Pelo contrário: em vez de promover ferramentas para os pais se fortalecerem para acolher os filhos e filhas trans e ajudá-los em seu processo de autodeterminação e no enfrentamento de adversidades como o preconceito a que estão/estarão expostos, a premissa do perigo contribui para reforçar uma ideia de pânico e rejeição que enfraquece o vínculo familiar, deixa o/a jovem isolado/a, diminui suas chances de terem com quem contar.
E cabe lembrar: a identidade de gênero não é uma escolha; é uma condição da existência de cada um, como muitas outras condições simplesmente são. Mas quando se defende a ideia de que a transexualidade é epidêmica (e, portanto, é uma doença ameaçadora), estamos reforçando não só a ideia de um diagnóstico, mas estamos classificando as experiências reais, a forma como as pessoas são lidas nos seus modos de agir, a forma como o que elas expressam e como elas conhecem de si mesmas vai ser levada em conta, a partir dessa noção de doença, perigo. Patologizar significa agir a partir da ideia de que uma pessoa trans não tem autonomia para decidir a forma como ela vai viver e que a vida dela é perigosa pra nós. O discurso baseado na patologização reforça a marca que historicamente se construiu em torno da ideia de anormalidade associada a sofrimento (sofrer por não se reconhecer em seu corpo), quando na verdade o sofrimento está em não se ver cabendo neste mundo pautado por uma normatividade cisgênera. E impor que alguém se formate ao padrão da cisgeneridade pela pressão à adequação a norma social é, isso sim, uma saída produtora de sofrimento e adoecedora para crianças, jovens, adultos. Não ter direito a ser quem se é, é uma experiência absolutamente violadora do direito à liberdade e nociva à saúde mental. Abordagens como essas reforçam a transfobia, e a transfobia é notadamente um dos fatores de maior adoecimento psíquico entre pessoas trans e travestis. Então, o medo à diferença protege, de fato, as crianças? Não; ele isola, marginaliza, faz sofrer e adoece. Quando se corrobora este tipo de prática, estamos caminhando na direção de que projeto de construção de si pra esses sujeitos? Precisamos parar de ver as mudanças como perigos. A sociedade muda, é viva, e nela não cabe mais recusar-se a pensar as mudanças na nossa forma de pensar e viver que estão em curso e que nos cabem aceitar e reconhecer e promover.
A proposta subjacente ao anúncio da palestra, por seu caráter patologizador, atenta inicialmente ao próprio direito à personalidade previsto em nosso Código Civil, além do direito à dignidade da pessoa humana disposto na Carta Magna brasileira.
Além disso, o viés patologizador fere alguns dos principais marcos políticos e legais relativos à promoção dos direitos de pessoas LGBTIs e que se pautam pela garantia dos direitos humanos dessa população, tanto nacionais como internacionais, como: os Princípios de Yogyakarta, que refletem a aplicação da legislação de direitos humanos internacionais à vida e à experiência das pessoas de orientações sexuais e identidades de gênero não normativa (dentro os quais destaco, como exemplo, os princípios 2, 17, 18 e 19); a Declaração Universal dos Direitos Humanos em seu princípio de igualdade disposto no Art. 1º; a Declaração de Durban, que ratifica o princípio de igualdade e de não discriminação.
No tocante à Psicologia, ademais, este viés vai de encontro ao princípio do Código de Ética Profissional do/a Psicólogo/a, nossa lei maior, fundamentado no princípio do respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, bem como do enfrentamento de todas as formas de discriminação e opressão.
O Conselho Regional de Psicologia do RS entende que as expressões e identidades de gênero, longe de serem doenças, transtornos mentais, desvios e/ou inadequações, dizem respeito à experiência de cada pessoa na forma como vivencia seu gênero dentro das múltiplas possibilidades da existência humana. Por isso, entendemos que, da forma como está proposto na chamada, o referido evento se baseia no imperativo à cisnormatividade e legitima práticas que historicamente excluem e violentam pessoas trans; que naturalizam o estigma que ela impõe às vivências de gênero, sem problematizar seus atravessamentos culturais e seus significados sociais.
Compreendemos que esta palestra vai na contramão de todo o acúmulo de discussão empreendido nas últimas décadas acerca da despatologização das identidades de gênero não normativas, pela sociedade civil e pela comunidade acadêmica e científica, nacional e internacionalmente, à qual nos somamos.
A Psicologia contribuíra historicamente para a legitimação da patologização, pautando as experiências trans em torno dos diagnósticos que produzem respostas padronizadas sobre os corpos e reforçando a normatização da identidade dos indivíduos. Por isso, o Sistema Conselhos de Psicologia vem empreendendo o debate pela desconstrução de práticas profissionais discriminatórias e pela consolidação de contribuições de nossa profissão e ciência na promoção da saúde e dos direitos das pessoas LGBTIs. Estas se materializam inicialmente na Resolução CFP 01/1999 (que veda a patologização da homossexualidade na atuação da Psicologia) e na Resolução CFP 01/2018 (que proíbe a patologização na prática profissional com pessoas trans e travestis). Atentos à necessidade de sensibilizar tanto a categoria profissional quanto à sociedade, O CFP e os CRPs, por meio de suas Comissões de Direitos Humanos, publicaram em 2019 o livro Tentativas de Aniquilamento de Subjetividades LGBTIs, onde estão descritas diversas experiências de opressão, estigma, ataques às vivências sexuais e de gênero não normativas que ainda hoje são vividas por pessoas LGBTIs (muitas delas frutos de experiências recentes de tratamentos de saúde mental). Em âmbito regional, o CRPRS também enuncia seu posicionamento contrário à patologização das transidentidades em documentos técnicos como a nota técnica que orienta quanto à não utilização de diagnósticos que classifiquem a transexualidade como doença.
Existe uma pluralidade de autodenominações de transidentidades, e entendemos que é papel da ciência e da sociedade repensar-se para acolher a pluralidade de combinações que podemos negociar entre nossos corpos e nossas identidades. Entendemos que é nosso dever, como categoria profissional, refletir sobre a incidência de nossa prática na promoção da autonomia e no exercício da liberdade de todas as pessoas. A Psicologia tomou para si a tarefa de se repensar, de abrir-se à mudança e de reconhecer o saber que as próprias pessoas carregam sobre si mesmas. Esperamos que todos/as os/as profissionais que trabalham com a subjetividade percebam que é tempo de assumir esse compromisso”.