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A polícia que mata por engano, mas não erra a cor da pele

O descontrole das Polícias Militares em âmbito nacional é um fato. As vítimas são predominantemente jovens negros e moradores de regiões periféricas dos grandes centros urbanos
por Flávio Ilha / Publicado em 13 de julho de 2020

A polícia que mata por engano, mas não erra a cor da pele

Arte: Ricardo Machado

Arte: Ricardo Machado

Descontroladas e cada vez mais violentas, as PMs de todo o país recrudesceram seu histórico de abuso, principalmente contra populações mais vulneráveis, e bateram recordes de agressão mesmo durante a quarentena provocada pelo novo coronavírus. No Rio Grande do Sul, caso que provocou a morte da costureira Dorildes Laurindo chocou pela brutalidade extrema.

O sonho do turista angolano Gilberto Andrade de Casta Almeida, 26, era conhecer Gramado. “Dizem que é lindo, com jardins bem desenhados, muito verde, um clima frio”, diz o bacharel em Radiologia. Mas, ao invés de se encantar com os delírios europeus da Serra gaúcha, Gilberto – ou Mimito, para quem o conhece um pouquinho melhor – foi apresentado no Rio Grande do Sul ao modus operandi da Brigada Militar (BM). Há uma notável diferença entre uma coisa e outra.

A polícia que mata por engano, mas não erra a cor da pele

Arte: Ricardo Machado

Arte: Ricardo Machado

Gilberto escapou da morte por acaso. Na noite de 17 de maio, um domingo, depois de conhecer o mar gaúcho em Tramandaí, o angolano e sua namorada, a costureira Dorildes Laurindo, 53, foram atacados por uma patrulha da BM quando voltavam para a casa dela, em Cachoeirinha, a bordo de um carro de aplicativo. Segundo a perícia, foram 35 tiros de pistola, dos quais quatro acertaram Gilberto e três atingiram Dorildes. Ela morreu no dia 2 de junho. Gilberto, que ficará com duas balas alojadas no corpo para sempre, sobreviveu para contar a história.

Cenas de horror

Longe de ter sido um “engano”, como alegaram as autoridades policiais do Estado logo depois da tentativa de execução, o caso de Gilberto e Dorildes mostra que as Polícias estão fora de controle – não só no Rio Grande do Sul, mas em todo o país.

A patrulha que atacou o casal era composta por três PMs do 17º Batalhão de Polícia Militar, de Gravataí, que perseguiu o Palio dirigido pelo motorista Luis Carlos Pail Junior depois de ele ter furado um sinal em Cachoeirinha. Quando Gilberto e Dorildes saíram do carro, receberam uma saraivada de balas. Intencional.

As cenas de horror que se seguiram foram chocantes. “Os policiais não falaram nada, estavam a poucos metros de nós e atiraram assim que saímos do carro. Não nos deram voz de prisão, de advertência, nada. Só atiraram. Nós gritamos que éramos inocentes, que não tínhamos armas, mas não adiantou. Eles atiraram para matar”, relata Gilberto.

O motorista, poucos segundos antes, havia abandonado o Palio e tentou fugir, mas foi capturado. Soube-se depois que era foragido da Justiça. A BM alegou que houve tiroteio, mas a perícia desmentiu a informação. Não havia nenhuma arma no carro do aplicativo. Também não havia nenhum outro cartucho na cena do crime, além dos disparados pelos policiais.

O pesadelo de Gilberto e Dorildes começou por volta das 23h do domingo, quando o casal se aproximava da casa da costureira, em Cachoeirinha, depois de deixarem um terceiro passageiro que viajara com eles na Rodoviária de Porto Alegre. Separada, dona de dois cachorros, Dorildes morava sozinha e não quis voltar na manhã seguinte de Tramandaí, onde seu irmão tem casa de veraneio, porque os animais sentiriam a sua falta, apesar de terem passado o fim de semana com um caseiro.

A mulher não teve a mesma sorte

“Ela era muito apegada aos bichos, que eram sua única companhia desde que o filho morreu em um acidente na estrada, há dez anos. E por isso, tinha trauma de velocidade. Nunca saía de casa, detestava andar de carro. Mas estava muito feliz por ter conhecido o Gilberto, tinha uma expectativa grande com o relacionamento”, lembra a irmã, Marjori Maria Homes Luciano.

Dorildes foi quem recebeu o primeiro tiro, que atravessou seu abdômen. Gilberto lembra que viu a namorada levar a mão à barriga para tentar conter o sangramento e que, por instinto, derrubou-a para tentar evitar outros balaços. Mas logo sentiu seu joelho direito ser atingido também. E caiu.

“Depois não vi mais nada, só pensei em ficar vivo. E em ficar quieto, porque se me vissem com vida certamente me matariam”, relata o turista. Gilberto recebeu mais três tiros: além do joelho, um na coxa, outro no glúteo e o último no antebraço. Todos do lado direito do corpo, já que o casal buscava abrigo num caminhão estacionado bem próximo ao local.

A mulher não teve a mesma sorte. Além do primeiro projétil no abdômen, Dorildes recebeu outro balaço na barriga e um terceiro tiro nas costas, que a deixaria paraplégica se sobrevivesse. Desmaiou por alguns instantes, o que não impediu mais violência por parte da Brigada.

“No hospital, ela me relatou momentos de profundo pavor. Mesmo gravemente ferida, implorando por ajuda, os policiais pisaram na sua cabeça e pediam que confessasse alguma coisa aos gritos de ‘vagabunda’ e ‘bandida’. Gritavam que ela levantasse, chutaram as costas dela, e depois a algemaram”, conta a irmã. Dorildes teve perfurações no intestino, nos pulmões e nos rins.

Como indigentes

Gilberto igualmente teve a cabeça imobilizada pelo coturno de um brigadiano, mesmo ferido e dominado. Também levou chutes, foi ofendido, chamado de “capeta” e “exu” – o radiologista é negro – e algemado. Ele diz que só não foi assassinado porque logo em seguida apareceram vizinhos e curiosos na rua, o que amenizou a ação violenta da BM.

A ambulância chegou somente 20 minutos depois, o que pode ter sido decisivo para a morte de Dorildes. E, apesar de portarem documentos, os dois deram entrada no Hospital Dom João Becker, em Gravataí, como indigentes. Só foram encontrados pela família da costureira na terça-feira, dia 19 de maio, quase 48 horas depois do crime. “Eu e me irmão estamos muito abalados com a morte dela. Que processo seletivo é esse que contrata bandidos para nos defender?”, questiona Marjori.

O turista angolano, que mora em Goiânia e conheceu Dorildes pela internet há cinco meses, ficou algemado à cama do hospital por uma semana depois das cirurgias a que teve de ser submetido. Depois, no domingo seguinte, passou uma noite na cela da Delegacia de Homicídios de Gravataí até ser transferido, no dia 23 de maio, para a Penitenciária Estadual de Canoas, mesmo sem nenhuma acusação formal contra ele. Ficou preso numa cela com outro homem até o dia 29, quando foi liberado por decisão judicial.

Gilberto segue se recuperando em Porto Alegre, abrigado pela Associação dos Angolanos e Amigos do Rio Grande do Sul (AAARS). Sem dinheiro, perdeu o emprego na clínica de traumatologia em que trabalhava e corre o risco de não se reabilitar a tempo de cumprir, em setembro, o programa de mestrado em Ciências Biomédicas para o qual já está selecionado, em Portugal. “Tive a minha vida destroçada e não sei quanto tempo será preciso para reconstruí-la, se isso for possível”, diz. “Gramado, infelizmente, terá de ficar para outra vez”, completa.

Sobre o modus operandi da Brigada Militar, resume com uma frase: “Nunca encontrei homens tão maus na minha vida”.

Descontrole das corporações vitima principalmente pobres e negros

Gilberto lembra que viu a namorada levar a mão à barriga para tentar conter o sangramento e que, por instinto, derrubou-a para tentar evitar outros balaços. Mas logo sentiu seu joelho direito ser atingido também

Foto: Igor Sperotto

Gilberto lembra que viu a namorada levar a mão à barriga para tentar conter o sangramento e que, por instinto,
derrubou-a para tentar evitar outros balaços. Mas logo sentiu seu joelho direito ser atingido também

Foto: Igor Sperotto

O descontrole das Polícias Militares em âmbito nacional é um fato, como comprovam as estatísticas: tanto em São Paulo quanto no Rio de Janeiro, os números referentes a 2020 são recordes. No Rio, segundo levantamento do Instituto de Segurança Pública (ISP), as mortes de civis provocadas por policiais se elevaram de 732 entre janeiro e maio de 2019 para 741 em 2020 – mesmo com as restrições provocadas pela quarentena.

Em São Paulo, o cenário é bem semelhante: as mortes provocadas por agentes do Estado subiram de 282 no ano passado para 371 este ano. Os dados são referentes ao período de janeiro a abril. Só no último mês de abril, em plena quarentena, houve 41 registros a mais de mortes do que em 2019: 116 em 30 dias ou um assassinato a cada 6 horas. É uma alta de 54% em relação ao mês anterior, segunda dados da própria Secretaria de Segurança Pública de São Paulo.

As vítimas, além disso, são predominantemente homens jovens negros e moradores de regiões periféricas das grandes cidades brasileiras. Em abril, o engenheiro Gustavo do Amaral dos Santos, 28, foi morto a tiros pela BM em Marau, norte do Rio Grande do Sul, depois que um veículo furou uma barreira policial na RS-324. Gustavo era negro.

Ele dirigia o carro com outros colegas e ficou na linha de tiro entre o suspeito e os policiais, que foram investigados pela Corregedoria da Brigada. Um soldado foi indiciado, mas a denúncia ainda depende da Justiça Militar e do Ministério Público. A Polícia Civil, no inquérito que apurou a morte, alega que o brigadiano atirou em Gustavo em “legítima defesa putativa” – ou seja, imaginária.

Código de condutas

O pesquisador Rafael Alcadipani, da Fundação Getulio Vargas e do Fórum Brasileiro de Segurança, destaca que as Polícias precisam urgentemente reverter seus índices de letalidade. “É alarmante. Precisamos atuar de forma política para reformar os códigos de conduta das Polícias, que têm envergonhado os bons policiais das corporações”, diz o especialista.

Alcadipani também lembra que a violência policial instaura uma espécie de “justiça das ruas”, ou seja, uma cultura de vingança que contraria os protocolos-padrão de procedimento. A falta de treinamento e de comando são essenciais para a proliferação de procedimentos ilegais.

Também diz que é preciso alterar os procedimentos investigatórios para que o corporativismo da tropa não gere impunidades. “Todas as ocorrências suspeitas devem ser investigadas pelas corregedorias das Polícias Militares. Infelizmente, não é o que ocorre”, afirma o pesquisador. E completa: “Se bandido bom fosse bandido morto, o país seria um paraíso. Mas isso não é verdade”.

Governo federal excluiu dados de violência policial de relatório

Caso ocorrido no centro de São Paulo no final de junho

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Caso ocorrido no centro de São Paulo no final de junho

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Em junho, o governo federal excluiu do relatório anual sobre violações de direitos humanos as ocorrências sobre violência policial, que aumentaram 1,5% em 2019 (os últimos dados disponíveis) segundo Monitor da Violência, produzido pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP em parceria com o portal G1. O indicador registrou 5.804 mortes provocadas por agentes públicos em 2019 em todo o país. O Ministério Público Federal (MPF) pediu a reinserção dos dados no relatório.

“A retirada dos dados sobre violência policial do relatório anual rompe com um padrão de divulgação adotado pelos governos nos últimos anos. Ocorre também em um momento de crescimento mundial da discussão sobre a violência policial, com protestos contra o racismo iniciados nos Estados Unidos após a morte de George Floyd, homem negro, por um policial branco”, justificou o MPF em nota.

No Rio Grande do Sul, os dados sobre violência policial não são públicos. Segundo o núcleo da Defensoria Pública do Estado, que atende casos de violência policial, no primeiro semestre de 2017 havia oito ocorrências por hora no estado envolvendo condutas suspeitas de PMs. A Corregedoria da Brigada Militar não divulga dados. A reportagem do Extra Classe pediu à Ouvidoria da corporação informações sobre mortes causadas por policiais, mas até o fechamento da edição o órgão não havia respondido.

Invasão de domicílio e agressão

O 17º BPM, de Gravataí, é conhecido por registros elevados de abuso policial: dois dos policiais que participaram da abordagem a Gilberto e Dorildes respondem a procedimentos de investigação – um deles, o soldado Régis Souza de Moura, já teve condenação em primeira instância na Justiça por invasão de domicílio e agressão, em episódio ocorrido em 2016.

Moura responde ainda a outros dois processos, todos por abuso. O 3º sargento Marcelo Moreira Machado, além disso, é investigado em um Inquérito Policial Militar (IPM) por uma abordagem que resultou em um suspeito baleado.

O Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul (MJDH), que tabula as denúncias de violência policial, confirma que o 17° BPM “reúne uma boa quantidade de registros” em âmbito estadual. O presidente do MJDH, Jair Krischke, identifica na tolerância do governo federal um risco para o descontrole das forças policiais militares.

“As PMs se sentem muito prestigiadas pelo presidente. Há potencialmente um risco enorme de morderem o freio”, diz Krischke, referindo-se a uma situação de perda de controle da tropa por parte dos comandos.

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