A China contemporânea em dez tópicos
Foto: Janaina Câmara da Silveira
Foto: Janaina Câmara da Silveira
A milenar China sempre foi uma nação emblemática e pouco conhecida da maioria dos brasileiros, salvo alguns clichês. O gigante asiático, no entanto, se tornou um dos principais motores da economia mundial nos anos 2000 e é o maior parceiro comercial do Brasil, que nem por isso mantém um relacionamento político amigável com aquele país nos dois últimos anos, especialmente.
As críticas do presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores aos chineses, iniciadas ainda durante a campanha presidencial em 2018, se acentuaram com o avanço do coronavírus, identificado pela primeira vez em Wuhan, em 2019. Cresceu, também, o xenofobismo, assim como a relevância econômica do país asiático como grande comprador de alimentos do Brasil.
Com 5 mil anos de história, a China ainda precisa ser descortinada aos olhos dos brasileiros. Explicar em poucas páginas uma trajetória tão longa seria impossível, mas nesta reportagem apresentamos dez tópicos que podem ajudar a compreender um pouco melhor do que é a China contemporânea.
1 – Qual é o sistema político-econômico chinês?
Quem governa a China desde 1949 é o Partido Comunista Chinês (PCC), mas o próprio governo não identifica mais o país, e o sistema, como comunista desde a virada dos anos 1970/80. O PCC define o sistema vigente hoje como “socialismo com características chinesas”. Há quem diga que a melhor definição seria “socialismo de mercado”. Comunista, definitivamente, não é.
Esse país asiático tem uma extensa lista de bilionários e consome avidamente produtos de luxo. Mas também não é capitalista, já que o poder de decisão do governo sobre a vida das empresas, e até mesmo da população, é amplo. É mais fácil entender o sistema chinês como algo híbrido e único.
Há alguns marcos na transição do comunismo para esse modelo híbrido. A transformação mais marcante começou no final dos anos 1970, com a chamada grande reforma e abertura do país, que, pouco a pouco, se aproximou do Ocidente e do capitalismo. Curiosamente, foi em 1974 que a China firmou relações diplomáticas com o Brasil, ainda durante a ditadura militar brasileira.
O processo de reforma e abertura teve como timoneiro Deng Xiaoping, em 1978. Foi quando a China começou a criar Zonas Econômicas Especiais (ZEE), como em Shenzhen, onde nasceram as bases da industrialização chinesa – antes eminentemente agrícola e centrada no mercado interno. A mais famosa ZEE é Shanghai, centro financeiro do país e onde centenas de multinacionais foram estimuladas a se instalar, assim como os incipientes empreendedores chineses na época.
Essa mudança se consolidou em 2001, quando aquele país ingressou na Organização Mundial do Comércio (OMC). Atualmente, é a segunda maior economia do mundo, atrás dos Estados Unidos, de quem deverá estar à frente em 2050, segundo diferentes projeções.
Foto: Thiago Copetti
2 – Maior parceiro comercial do Brasil desde 2009
Há mais de uma década, mais precisamente desde 2009, a China se tornou o principal parceiro comercial do Brasil. A nação asiática mantém com o nosso país uma relação tanto de grande comprador, especialmente de soja, minério de ferro e petróleo, quanto investidor – principalmente nos setores elétrico, de infraestrutura e tecnologia.
A China ultrapassou os EUA na relação comercial com o Brasil após a crise global gerada pelo estouro da bolha imobiliária norte-americana, em 2008. O Brasil é, há três anos, o maior fornecedor de alimentos para o gigante asiático. Porém, não é apenas no comércio que a relação vem se expandindo. Nosso país se tornou o quinto maior destino internacional dos investimentos chineses. Cerca de 50% dos ativos internacionais da State Grid, maior empresa chinesa do setor de energia, estão hoje em território brasileiro, de acordo com Cláudia Trevisan, diretora-executiva do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC).
A diretora do CEBC ressalta, ainda, que empresas do segmento de tecnologia vêm se destacando em investimentos no Brasil na área de TI, como da Tencet comprando ativos do Nubank e da Didi adquirindo a 99, concorrente da norte-americana Uber.
“A pauta ainda é concentrada, mas emergem outros produtos, como as exportações de celulose e proteína animal”, acrescenta Cláudia.
O desafio brasileiro é exportar para China produtos de maior valor agregado, já que a pauta ainda é demasiadamente focada nos embarques de soja, por exemplo, especialmente no Rio Grande do Sul. Em 2020, a China se tornou o primeiro parceiro comercial a superar a marca de US$ 100 bilhões em transações comerciais com o Brasil (importações + exportações). No período, o nosso país vendeu US$ 67,7 bilhões aos chineses. Para efeito de comparação, os Estados Unidos, segundo maior destino, não alcançaram R$ 30 bilhões.
Foto: Divulgação
3 – O peso da educação
Boa parte do que a China é hoje, em termos de desenvolvimento, tecnologia e redução da pobreza, é fruto de um dos grandes gargalos brasileiros: investimento em educação. De acordo com dados compilados pelo Portal IndexMundi, a taxa de alfabetização naquele país aumentou de 81,5% da população em 1995, para 96,8% em 2018. No mesmo período, o Brasil passou de um percentual de 83,3% para 93,2%.
A China também é alta consumidora de cultura. Os chineses ocupam, em média, oito horas semanais com a leitura de livros e consomem, em média, 4,56 livros ao ano per capita, conforme estudo Frequency of reading books in selected countries worldwide, com dados de 2017. O levantamento aponta que 36% dos chineses leem livros todos os dias ou a maior parte dos dias, e 34% ao menos uma vez na semana. No Brasil, o mesmo estudo indica que os leitores diários somam 26%, e 18%, semanalmente.
Outro indicador relevante e que mostra o apetite chinês por livros é o crescimento do número de livrarias físicas. Conforme a Associação de Distribuidores de Livros e Periódicos, o país fechou 2018 com 225 mil livrarias (ante 215 mil do ano anterior). O faturamento teve alta de 5,9%, encerrando 2018 com 370,4 bilhões de yuans (cerca de US$ 54,7 bilhões). Os números foram apresentados na Conferência Nacional de Livrarias, realizada em 2019. A China é referência citada pelo Banco Mundial por ter sido o primeiro país a destinar um empréstimo da instituição para melhorar a educação.
Coordenador do núcleo de estratégia de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Paulo Visentini recomenda o filme O Caminho para a Casa, do diretor Zhang Yimou, o qual narra as descobertas do filho que volta para sua aldeia para enterrar o pai, professor.
“As pessoas se deslocam de diferentes regiões para o enterro. Esta parte do filme mostra muito sobre a admiração e o respeito dos chineses pelos professores”, conta Visentini.
Foto: Thiago Coppetti
4 – Os movimentos separatistas
A China empreende um enorme esforço para preservar a unidade nacional, inclusive adotando o slogan “Um País, dois sistemas”. O slogan remete às regras diferenciadas em termos políticos e econômicos, por exemplo, para Taiwan, e Hong Kong, que até 1997 ainda estava sob domínio inglês.
Basicamente, Taiwan foi onde se refugiram os líderes e defensores do chamado Kuomintang quando o Partido Comunista tomou o poder, após cerca de dez anos de revolução civil. Durante muito tempo, existiram “duas Chinas”, a República Popular da China (onde vivem 1,4 bilhão de pessoas) e a antiga República da China (Taiwan, onde vivem cerca de 20 milhões).
Em 1971, a Organização das Nações Unidas reconheceu como nação apenas o território comandado pelo Partido Comunista, com aval das grandes nações, incluindo os Estados Unidos. Poucos países, menos de 20, ainda reconhecem Taiwan como uma nação. Na América do Sul, o Paraguai é o único a manter relações diplomáticas separadamente com Taiwan.
Hong Kong, onde moradores fizeram centenas de protestos entre 2019 e 2020, também vive uma situação diferenciada. O PCC admite liberdades na ilha, mas sinaliza que ali poderia haver uma democracia nos moldes ocidentais, ainda que existam eleições em uma lista prévia de nomes.
Visentini ressalta que a democracia naquele território nunca foi implantada nem mesmo pela Grã-Bretanha em mais de um século de dominação.
5 – Os protestos e as mortes na Praça da Paz Celestial
Um assunto ainda tabu dentro da China, especialmente por parte do governo e mesmo entre os cidadãos, é o que o Ocidente chama de massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989. A China chama de “incidente”. No local, centenas de manifestantes se aglomeraram durante dias pedindo maior abertura, além da econômica.
Como os jovens não deixavam o local, o governo enviou tropas para dispersar os manifestantes, culminando com a famosa imagem de um jovem tentando impedir o avanço de um tanque. O número de pessoas mortas durante a repressão ainda é incerto.
Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Paulo Visentini pondera que os mesmos países que defendem a democracia na China aceitam ditaduras no Oriente Médio, fornecedores de petróleo, sem a mesma ênfase crítica.
Foto: Thiago Copetti
6 – O avanço da classe média
Em dezembro de 2020, a China celebrou a eliminação da pobreza extrema, consolidando a retirada de cem milhões de pessoas em oito anos desta condição. Nada trivial: segundo o Banco Mundial, a cada 100 pessoas que saíram da pobreza no mundo, 70 foram na China. Desde 1978, foram 800 milhões de chineses, de acordo com o banco.
Foto: Janaína Câmara da Silveira
“Foi a maior e mais rápida redução da pobreza em nível mundial, de um país que vai subindo as cadeias globais de valor e sai do que se chama de chão de fábrica. Assim, a China passa por um processo de transformação sustentada”, indicou a professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Isabela Nogueira, ao canal Radar China.
A mudança estrutural explica também o surgimento da classe média no país, que, segundo o diretor-geral do Instituto de Pesquisa Internacional da Comissão Nacional de Reforma e Desenvolvimento da China, Ye Fujin, soma 600 milhões de pessoas, em um universo de 1,411 bilhão. É um país com mais poder de compra, consumo e que foca também em uma economia de serviços e de turismo interno. Em 2008, ante a crise financeira global, o país asiático passou a priorizar o seu mercado interno, com políticas como de aumento salarial.
7 – China high-tech
Em maio deste ano, a China pousou em Marte o robô Ruzhong, parte de seu ambicioso programa espacial. Em 2019, o país foi o primeiro a pousar no lado escuro da lua. A escalada tecnológica chinesa tem raiz em 2006, quando o país lançou o Plano de Desenvolvimento de Médio e Longo Prazo, o qual fomentou o desenvolvimento de tecnologia nativa e o desejo de menos dependência de outros países.
A estratégia Made in China 2025, anunciada em 2015, incentiva indústrias a conquistarem excelência em 10 setores de manufatura avançada: tecnologia de informação e inteligência artificial; robótica; aeroespaço e equipamentos; tecnologia naval; trens de alta velocidade; veículos e equipamentos movidos a novas energias; geração de energia, biofármacos e produtos médicos e implementos agrícolas.
Não é à toa que hoje vemos a chinesa Huawei como uma das três empresas no mundo capazes de fornecer equipamento para a rede de telecomunicação 5G, ao lado de Ericson e Nokia. Entretanto, há também deficiências. A área de telecomunicação depende de semicondutores vindos de outros países, calcanhar de Aquiles da estratégia de upgrade tecnológico chinês.
Foto: Chen Jianli/Xinhua/Divulgação
8 – Financiamento verde
Na divisa com Shanghai, a província de Zhejiang é modelo nacional no desenvolvimento coordenado entre áreas urbanas e rurais, projeto iniciado na década passada, antes do boom da economia digital que caracteriza a região.
A proposta deu tão certo que, em 2012, o país lançou o conceito de “China Linda”, com iniciativas para desenvolver uma Civilização Ecológica até 2035. E tudo passa por mudar a matriz energética chinesa, hoje 56,8% dependente do carvão, segundo dados oficiais. O pico do consumo do mineral foi em 1990, quando representou 76,2% da matriz energética.
O país é líder global em energia limpa, embora isso signifique cerca de 16% de sua matriz energética. Em 2025, quando se encerra o 14º Plano Quinquenal da China, instrumento utilizado desde 1953 para guiar a governança nacional e cuja última edição é de março, o gigante asiático quer que energias renováveis representem em cerca de 20% da matriz. A meta integra o plano de descarbonizar a economia até 2060.
Uma das apostas é na mobilidade. Conforme o diretor de Marketing, Sustentabilidade e Novos Negócios da BYD, que tem fábrica no Brasil, a cidade chinesa de Shenzhen, com cerca de 13 milhões de habitantes, foi a primeira no mundo a implantar frota de ônibus 100% elétrica, em um projeto de 2012 a 2017. Dos 600 mil ônibus elétricos em circulação no planeta, mais de 580 mil estão na China. A América Latina tem 2 mil.
Agora, a preservação da biodiversidade aparece como nova marca no agronegócio chinês e de futuros investimentos fora do país, inclusive o Brasil. Chefe do Núcleo China do Ministério da Agricultura, Larissa Wachholz avalia que a postura chinesa terá reflexos positivos na produção brasileira. Mais do que nunca, os consumidores chineses querem alimento seguro e produzido em ambiente livre de poluição, o que o nosso país oferece.
“Brasil e China têm na agricultura sustentável objetivos semelhantes, como produzir alimentos com menor impacto ao ambiente”, afirma Wachholz, que diz que, com esses avanços, o Brasil poderá atrair volumosos créditos de finanças verdes vindos da China.
Foto: Janaína Câmara da Silveira
9 – A imprensa na China
A China tem uma imprensa controlada, em que o fluxo de informações obedece a regras locais. Uma grande agência de notícias, a Xinhua, é a guardiã das mensagens oficiais. No entanto, não se resume a isso e aposta em reportagens dentro e fora de casa, com mais de 180 escritórios no mundo. Outro gigante estatal chinês é o Grupo de Mídia da China, que abarca rádio e televisão.
Presentes em toda a China, e também fora do país, inclusive com produção em diversos idiomas, até o português, estes não são a única fonte de informação dos chineses. Há diversos veículos privados na China, sejam estes de mídias tradicionais ou online, incluindo títulos internacionais consagrados, caso de Elle e Marie Claire, por exemplo.
Via de regra, pode-se dizer que informações consideradas não sensíveis circulam livremente na China. Já as sensíveis (como acidentes que causam comoção nacional e incidentes políticos) são chanceladas pela Xinhua – e os veículos que quiserem cobrir determinados temas devem seguir o padrão oficial. Outras informações simplesmente não são cobertas.
10 – Sindicalismo de bem-estar social
Foto: Janaína Câmara da Silveira
A China tem todos os seus sindicatos reunidos sob a Federação dos Sindicatos do país, ou All of China Federation of Trade Unions (ACFTU), uma organização com 300 milhões de afiliados no país e que tem ligações tanto com os trabalhadores quanto com empregadores, partido e governo.
Ainda que seja permitido que qualquer trabalhador ou coletivo lance um sindicato, este tem de ser afiliado à ACFTU. Na China, o sindicato é considerado uma organização de massas e serve como mecanismo para mediação e promoção de bem-estar social de determinado grupo, oferecendo cursos de aperfeiçoamento aos afiliados, realizando trabalhos de alívio da pobreza ou de busca de emprego. Em março deste ano, representantes da ACFTU no Brasil doaram US$ 300 mil a centrais sindicais brasileiras para o combate à covid-19.
Na China, há críticas em relação à atuação dos sindicatos, muito mais voltados a apaziguar relações do que nas demandas dos trabalhadores. Estes, apesar de não terem direito à greve assegurado pela Constituição chinesa desde 1982, podem fazer manifestação – a maior parte das vezes por aumento dos salários. A China reformulou a lei trabalhista em 2008, com reforma já em 2013, garantindo direitos como licenças e férias, entre outros.
Janaína Câmara da Silveira morou na China de 2007 a 2013, atuando na Xinhua e é fundadora do projeto Radar China, dedicado a analisar as relações sino-brasileiras. Thiago Copetti é jornalista especializado em economia, bacharel em Relações Internacionais e morou em Pequim entre maio e novembro de 2018, como correspondente do Jornal do Comércio.