Violência contra a mulher é cultura a ser combatida
Foto: Daryan Dornelles/Divulgação
De 25 de novembro a 10 de dezembro ocorre a campanha internacional 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres (no Brasil, são 21 Dias de Ativismo). A iniciativa interliga duas datas importantes na luta pelos direitos humanos. Começa no Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres e culmina no Dia Internacional dos Direitos Humanos. Marcando os 30 anos da campanha, o Extra Classe entrevista a jornalista e filósofa Adriana Negreiros, que lançou em outubro o livro A vida nunca mais será a mesma – Cultura da violência e estupro no Brasil (Objetiva).
No livro-reportagem, Adriana parte de sua própria experiência e, além do seu corajoso relato pessoal, revela um cotidiano de violências e abusos sofridos por mulheres na história recente do Brasil. Na obra, ela que já escreveu sobre a presença feminina no cangaço em Maria Bonita: Sexo, violência e mulheres no cangaço (Objetiva), alterna depoimentos em primeira pessoa com casos verídicos de outras mulheres vítimas de violência sexual.
Abordando temas delicados como o abuso sexual de crianças por familiares, o estupro no casamento, Adriana chama a atenção para o fato de que a agressão contra a mulher não se dá apenas no espaço público e que o ambiente doméstico também é igualmente opressor. Nessa entrevista, outra questão se evidencia: a cultura de violência contra as mulheres é tão forte no Brasil que repercutiu nas últimas eleições. “Jair Bolsonaro se apropriou dessa cultura do estupro, mergulhou nesse caldo com tudo o que tinha direito e saiu de lá como presidente da República”.
Extra Classe – Desculpe se lhe parece óbvia a pergunta, por que A vida nunca mais será a mesma como título para o seu livro que versa sobre a cultura da violência e estupro no Brasil?
Adriana Negreiros – Esse título tem a intenção de demonstrar o quanto, para uma pessoa que passou por uma violência sexual, que a vida, de fato, nunca vai ser a mesma. É uma marca muito forte que é indelével. Uma violência sexual, não é uma violência “trivial”, ordinária, ou que se compare a muitas outras. Se eu tivesse, por exemplo, na rua e o meu carro fosse roubado, talvez daqui há uns trintas anos eu teria dúvidas se eu tive o meu carro roubado; talvez eu até poderia esquecer. Agora, uma violência sexual é um tipo de experiência que uma pessoa que passou por ela nunca vai esquecer. Às vezes, quando acontece com uma criança, em uma idade em que as memórias ainda não são registradas, talvez até por um mecanismo de defesa, ela não se lembrará, mas o corpo dela trará essa memória. A violência sexual é uma marca que não tem com apagar. Por isso, o título. No sentido de uma certa irreversibilidade dos danos causados por essa violência.
EC – No livro você resgata o slogan “O pessoal é político” das feministas americanas da década de 1970 que passa a ideia de que a violência contra as mulheres não se dá apenas no espaço público, mas também no “recôndito dos lares”, que tem uma dimensão política. Em que essa dimensão política, digamos assim, familiar, contribui para a violência contra a mulher no Brasil?
Adriana – Esse slogan é muito elucidativo no que se refere à violência sexual porque a gente percebe, até pelas estatísticas, que a grandessíssima maioria nos casos de violência sexual contra mulheres e meninas no Brasil acontecem dentro de casa. São mulheres que são violentadas pelos seus maridos; crianças que são violentadas pelos pais, pelos avós, pelos tios. Então, muitas vezes se apregoou uma certa noção de que o espaço privado, o espaço da intimidade, era um espaço de segurança para as mulheres. A própria teoria liberal quando faz a exaltação da propriedade privada e do espaço individual se refere a um sujeito teoricamente universal, que é um homem e, usualmente, um homem branco. Mas, na verdade, é que essa teoria esquece que, nesses ambientes fechados, na intimidade, há relações de poder. E essas relações de poder em nossa sociedade patriarcal estabelece que o homem tem muito mais poder do que a mulher. E esse poder é exercido de todas as maneiras, incluindo a violência.
EC – E hoje há ainda uma forte campanha por homeschooling, o ensino domiciliar.
Adriana – Por isto que, à despeito de todas as campanhas para que o espaço privado seja reconhecido como o espaço de segurança, para as mulheres, ele é um espaço para a violência. Por isto, sempre temos que lembrar que o pessoal é político. O que acontece na nossa intimidade é, sim, algo que diz respeito a toda a sociedade. No caso do Brasil, isso é especialmente importante porque as estatísticas são muito assustadoras. Todos os dados mostram que há uma verdadeira epidemia silenciosa de mulheres e meninas violentadas. Me refiro a elas porque foi o recorte do meu trabalho, mas é importante que se saiba que há também muitos meninos sendo violentados na intimidade do lar.
EC – Um verdadeiro tabu, não?
Adriana – É uma questão que durante muito tempo foi obscurecida, que não foi levada para o espaço público porque é uma discussão que é realmente muito incômoda, que é dolorosa. Até muito recentemente, por exemplo, no Brasil, ninguém conseguia imaginar que haveria a possibilidade do estupro marital. Havia um entendimento tanto no senso comum da sociedade quanto na legislação de que o casamento era um contrato de prestação de serviços e que se estabelecia dentro de uma sociedade conjugal, cujo “patrão”, cujo chefe, era o homem. Portanto, dentro desse contrato supunha-se que o homem tinha o direito de exigir a prestação de serviços por parte da sua subordinada. Por prestação de serviços, compreendamos também as relações sexuais; por subordinada, fica óbvio, a mulher.
EC – Contrato de prestação de serviços.
Adriana – Isso foi entendimento da legislação e, no senso comum, dura até os dias de hoje. Muitas vezes também ocorre, em alguns espaço onde a questão patriarcal é ainda mais forte, outras coisas terríveis. Eu ouvi relatos de algumas famílias que afirmavam que era muito comum que o homem que tivesse filhas dizer que “se elas vão se iniciar sexualmente com algum homem, então, que seja comigo”. Algo quase naturalizado em muitas famílias: o fato de o próprio pai iniciar sexualmente as filhas. Então essas violências que se dão no âmbito pessoal, teoricamente, têm que ser trazidas para o espaço público e têm que ser transformadas em discussões políticas porque representam uma grande opressão por parte de uma parcela da sociedade, sobre grupos que vivem sempre nessa situação de inferioridade. Daí porque a gente tem que resgatar e sempre lembrar esse slogan: O pessoal é político.
EC – O interessante é que você registra que esse conceito que animava as ativistas americanas não tinha a mesma força aqui. Em especial porque, na época, dois dos principais protagonistas na luta contra a ditadura militar, não abraçaram a causa. Se para a Igreja, questões como aborto e liberdade sexual, era algo que intimidava, para o Partido Comunista, a ideia de que a luta feminista, por ser “singular”, não era prioridade. Na sua opinião, essa causa ter sido colocada como secundária impactou fortemente a vida das mulheres no Brasil?
Adriana – Essa é uma realidade que se observa nos países que enfrentaram regimes autoritários. Aqui em Portugal, onde eu vivo, aconteceu o mesmo. Na época do salazarismo, as feministas tiveram muita dificuldade de colocar as suas pautas em evidência porque havia uma compreensão geral de que as questões feministas eram questões menores. Questões tidas até como burguesas e que o mais importante mesmo era lutar contra o inimigo maior que seria o autoritarismo. É obvio que isto tem impacto. A gente precisou enfrentar e avançar muito em questões que estavam adormecidas enquanto que “o nosso maior inimigo era o autoritarismo”.
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Adriana – Esse avanço se deu de uma forma muito consistente. Tanto que hoje em dia o feminismo da América Latina é um movimento que tem uma força reconhecida e invejada aqui no hemisfério Norte. O feminismo no hemisfério Sul tem uma força fundamental que consegue fazer avançar pautas que são prioritárias no mundo inteiro. Por exemplo, nós temos no Brasil a Lei Maria da Penha, uma das leis mais avançadas do mundo no combate à violência contra a mulher. Então, eu acho que, se nós tivemos impactos negativos, em decorrência desse período da ditadura, hoje nós conseguimos acelerar o passo de forma a estarmos na vanguarda do feminismo mundial junto com as outras latino-americanas; também com as africanas e as asiáticas onde há uma cena muito forte. Talvez tenha sido até uma forma de fazer com que a gente corresse para recuperar o tempo perdido. Um impulso, no final das contas. Isso é algo a ser estudado.
EC – Não tem como, ao ler o título do capítulo “Eu não mereço ser estuprada”, deixar de lembrar que, em 2003, o então deputado federal Jair Bolsonaro disse na Câmara que não estupraria a também deputada federal Maria do Rosário (PT-RS) porque ela não merecia. Quinze anos depois esse senhor se elege presidente da República. Como você analisa isto?
Adriana – Em 2003 quando o Bolsonaro disse essa frase medonha, ela pouco repercutiu na imprensa. Houve até uma repercussão mínima, mas alguns colocavam em xeque se ele realmente teria dito. Na época, certa parcela da imprensa assumiu como fato que a Maria do Rosário havia chamado o Bolsonaro de estuprador e que ele teria dito essa frase absurda como uma devolução ao insulto que ela havia feito. Na verdade, a Maria do Rosário nunca chamou o Bolsonaro de estuprador. Essa frase foi dita ali, em 2003, a propósito de uma discussão sobre a redução da maioridade penal. Foi uma frase horrível (de Bolsonaro), teve uma repercussão mínima e foi um assunto que, relativamente, caiu no esquecimento. Mas, o curioso dessa história é que em 2014, ou seja, 11 anos após, quando ninguém mais lembrava, o próprio Jair Bolsonaro fez questão de ressuscitá-la.
EC – Vamos ressuscitar o assunto novamente?
Adriana – Na primeira ocasião, em 2003, ele disse essa frase para a Maria do Rosário no Salão Verde da Câmara dos Deputados, durante uma entrevista para a Rede TV. Em 2014, ele fez questão que fosse proferida no plenário da Casa, enquanto ele estava fazendo um pronunciamento na tribuna. Ou seja, ele realmente quis, mesmo sabendo que a frase era absurda, que ela repercutisse de outra forma. Como de fato aconteceu. Em 2014, isso ganhou ares de escândalo. Houve toda uma reação por parte de parlamentares e os jornais repercutiram. Nesse ano, ele já estava em um certo processo, em uma pré-campanha para se tornar essa figura que ele se tornou hoje.
EC – Estratégia?
Adriana – Essa frase foi tida pelos apoiadores do Bolsonaro na época como uma frase que o engrandecia. Em 2018, na campanha presidencial, os apoiadores dele fizeram vídeos que resgatavam os ditos melhores momentos do então deputado Jair Bolsonaro. Essa frase em que ele dizia que não estuprava a Maria do Rosário porque ela não merecia foi colocada nesses vídeos apologéticos como se fosse um grande momento da vida dele. Geralmente ao final se colocava nele – era uma modinha na época – aqueles óculos de lacração. Queriam dizer que ele havia lacrado com aquela frase. E essa frase fez com que ele ganhasse votos, que ele ganhasse popularidade! Isso é muito sintomático da cultura de estupro no nosso país.
EC – Vamos aprofundar?
Adriana – Quando ele (Bolsonaro) diz “eu não te estupro porque você não merece”, o que ele quer dizer com isto? Que ele, se por acaso fosse estuprar aquela mulher, talvez o ato de violência dele fosse um presente. Assim, ele se coloca em uma posição de extrema superioridade frente a uma mulher que ele toma como tão inferior que qualquer relação que ele estabelecer com ela, ainda que fosse uma relação de violência, fosse um presente. Então, ele considera que há mulheres que talvez mereçam ser estupradas. Ou seja, colocando na vítima uma responsabilidade sobre a violência que ela sofre. Se ele diz que talvez uma mulher mereça ser estuprada, o que ele quer dizer com isto? Que talvez se ela não se comportar muito bem, o que ela vai ter em troca disso é um estupro. Como se fosse uma correção para o mal comportamento dela. Além disso há uma naturalização tremenda de um crime bárbaro. Um crime de ódio. Um crime da ordem do horror que é o estupro.
EC – Olha que vão dizer que você está usando o politicamente correto.
Adriana – Pois é. Quando ele assume que pode cometer um estupro, ele trata isto de forma jocosa. Faz aquilo que é a base da nossa cultura do estupro, naturalizar essa violência sexual. Como se fosse algo corriqueiro do dia a dia, que não tivesse tanta gravidade assim. Então, veja que o Jair Bolsonaro se apropriou dessa cultura do estupro, mergulhou nesse caldo com tudo o que tinha direito e saiu de lá como presidente da República. Ou seja, a cultura do estupro também ajudou a eleger Bolsonaro presidente.
EC – Aliás, Bolsonaro e apoiadores falam barbaridades e depois dizem que a culpa da não aceitação da sua “liberdade de expressão” se dá por causa do politicamente correto. Pensando bem, não é algo paradoxal se dizer perseguido pelo politicamente correto e falar de vitimismo, mimimi, em especial quando se fala em políticas de combate ao preconceito e a violência doméstica?
Adriana – Certamente. É tudo paradoxal em relação a isto. Note que ao mesmo tempo em que uma pessoa como Jair Bolsonaro naturaliza o estupro, trata isto como uma brincadeira, esse mesmo Jair Bolsonaro defende pena de morte para estupradores. É completamente contraditório defender pena de morte se ele mesmo faz apologia a esse tipo de crime! Outra coisa, ao mesmo tempo que ele e seus apoiadores defendem pena de morte, eles são rigorosamente contrários a possibilidade de uma mulher interromper uma gestação, inclusive em caso de estupro. Se a vida fosse tão importante para eles, eles jamais seriam apologéticos à pena de morte. Há dois pesos e duas medidas. Em relação ao chamado politicamente correto é a mesma coisa.
EC – É aquela história de local de fala e local de dor
Adriana – Isso. Quem reclama do politicamente correto é aquele que está em uma condição de privilégio tal que não é alvo daquilo que ele acha que não é ofensivo contra as minorias. Geralmente quem acha que existe essa tal de ditadura do politicamente correto são homens; geralmente brancos, que não recebem piadas ou agressões que os possa oprimir. Só quem está na base da pirâmide da cadeia de opressão é que vai sentir na pele os danos do politicamente incorreto. Então, para o Bolsonaro, um homem como ele, branco, presidente da República, poderoso, heterossexual, enfim, é muito fácil ser contra a “ditadura do politicamente correto”. O politicamente correto só é condenável para eles quando isso é conveniente.
EC – Coincidentemente você sofreu abuso sexual no mesmo ano em que Bolsonaro agrediu a deputada Maria do Rosário com aquela pérola que ele, em seu pedido de retratação determinado pela Justiça em 2019, disse ter sido proferida “no calor do momento, em embate ideológico entre parlamentares”. Esses calores do momento então fazem parte do caldo dessa cultura de violência contra as mulheres, não?
Adriana – Sim. Certamente mais uma evidência desse comportamento paradoxal que você apontou. Se discutia a redução da maioridade penal e ali, em 2003, havia o debate que, por mais acalorado que fosse, não justificava que um deputado (Bolsonaro) ameaçasse cometer um crime de ódio contra uma colega. E essa defesa dele não faz o menor sentido. Se a gente fosse considerar que, na melhor das hipóteses, em 2003 ele foi movido pelo calor do momento, em 2014, quando ele repetiu a frase, não tinha calor do momento nenhum. Tinha ali um comportamento, uma ação orquestrada para retomar uma frase que, apesar de terrível, por pior que fosse, ele sabia que iria gerar repercussão, provocar manchetes nos jornais. Mais do que isto, ia fazer com que uma parcela misógina da população que acha que as mulheres merecem ser estupradas se sentissem representadas na figura dele. Foi um ato pensado, um crime premeditado.
EC – Interessante essa sua visão de que foi um crime premeditado
Adriana – Isso, em 2003, quando ele disse a frase para a deputada Maria do Rosário, obviamente me chocou muito. Eu tinha sido vítima recentemente e, portanto, qualquer menção desse tipo era extremamente violenta para mim. Você imagina, então, no Brasil que vivemos hoje, onde pelo menos mil mulheres são estupradas todos os dias segundo as estatísticas. Imagina essa quantidade de mulheres que sofreram violência sexual ter que lidar com essa naturalização do estupro. Não é fácil. Foi de uma desumanidade tremenda. Por isto que o que o Jair Bolsonaro fez ao proferir essa frase é um crime, a meu ver, de ódio. Um comportamento extremamente misógino que revela ódio e desprezo às mulheres.
EC – Para finalizar, seu livro além do seu corajoso testemunho tem os depoimentos de outras mulheres. Cada uma é um universo, mas, além da experiência comum de abuso e de marcas que ficaram, o que mais poderíamos dizer que as unificam?
Adriana – Acho que a questão principal é a dor. Todas as mulheres vítimas tiveram que lidar com a dor na sequência da violência. É uma dor que nunca passa. Ela pode ser amenizada em muitos momentos, mas é uma dor que se transforma numa vigilância muito maior do que o habitual. Toda a mulher nasce e cresce ouvindo das mães que elas não podem andar em ruas escuras; que não podem aceitar caronas de estranhos; que, se elas estiverem em um ônibus ou no metrô e entrar um estranho, elas têm que tomar cuidado e, se for o caso, sair e pegar outra condução. São recomendações que, em geral, não são dadas aos homens. No caso de uma mulher que passou a vida ouvindo isso e foi violentada é quase como se fosse uma confirmação de um destino inevitável para ela. Então, conviver com essa sombra da vulnerabilidade e a possibilidade de reviver essa dor é um peso terrível. É muito cansativo. É exaustivo. Essa dor e esse estado de vigilância constante é o que nos une, para além de um espanto que eu acho muito importante registrar. O espanto de não conseguir compreender, por mais que a gente exercite a nossa racionalidade, o que faz um homem submeter uma mulher à violência sexual. O que provoca e leva um homem cometer um crime de ódio e horror que marca a vida de uma mulher de forma definitiva.
Ativismo pela vida das mulheres
Foto: Divulgação
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A campanha 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres (no Brasil, são 21 Dias de Ativismo) foi iniciada pelo Instituto de Liderança Global das Mulheres em 1991. É coordenada anualmente pelo Centro para Liderança Global das Mulheres em uma estratégia de mobilização de indivíduos e organizações, em todo o mundo, para engajamento na prevenção e na eliminação da violência contra as mulheres e meninas.