Livro analisa jornalismo que culpa vítimas de feminicídio
Foto: Elza Fiúza/Agência Brasil
Foto: Elza Fiúza/Agência Brasil
O livro Histórias de morte matada, contadas como morte morrida – a narrativa de feminicídios na imprensa brasileira, foi lançado nesta segunda-feira, 8, na livraria Cirkula, em Porto Alegre. Escrito pelas jornalistas Niara de Oliveira e Vanessa Rodrigues a publicação de 320 páginas é resultado de uma intensa pesquisa demonstrando a distorção da imprensa na forma de narrar os assassinatos de mulheres por motivo de gênero, condenando a vítima. “A imprensa comete esse crime junto com o feminicida, incentiva e desculpa o autor”, confirma Niara.
Trabalho inédito no Brasil, 5º país que mais mata mulheres por motivo de gênero, as autoras detalharam, no lançamento transmitido pelo Youtube, todo o processo que resultou na publicação que teve sua primeira tiragem pronta em dezembro de 2021, e os primeiros 300 exemplares esgotados rapidamente.
“Este livro traz dados riquíssimos. É a obra mais inovadora do país sobre esse tema”, resume a jornalista Télia Negrão, uma das coordenadoras do Levante Feminista contra o Feminicídio, movimento nacional nascido em 2020 para cobrar ações do Estado frente à cultura da violência contra a mulher.
A romantização falaciosa
Tratado equivocadamente e historicamente por “crime passional”, o assassinato de mulheres é desculpado prontamente nos títulos e noticiários. “Não há espaço para romantizar um crime de ódio”, enfatiza Vanessa. “O feminicídio chega na redação e entra o fantasma da passionalidade. Não é amor, não é paixão. É ódio, é misoginia”, completa Niara.
A ideia de que homens matam por ciúme – ou por amarem demais se descontrolam – se choca com a realidade do quão brutal é o assassinato de mulheres, com inúmeras facadas, tiros, pauladas em crimes na maioria premeditados, por motivo torpe, com requintes de crueldade, sem chance de defesa para a vítima e/ou com destruição de partes do corpo que nos caracterizam como mulher, refere um dos parágrafos do livro.
Foto: Stela Pastore
A voz passiva trai o jornalismo
Escrever o oposto do que se aprende na faculdade é a maior evidência da pesquisa. O jornalismo tem regras: ser direto, simples: sujeito, verbo, predicado. João matou Maria, é um exemplo. Porém, quando se trata de feminicídio, a norma é descumprida. Maria é encontrada morta, é o que se vê na ampla maioria reportada pela imprensa brasileira.
“O uso da voz passiva deixa a história como suspense, estimulando várias especulações. Pode ter sido suicídio, acidente ou mesmo assassinato. Mas não se sabe quem foi o autor e/ou o motivo, afinal ela foi encontrada morta”, observam as pesquisadoras.
“Esta forma de relatar é indigna para o jornalismo porque promove o que eticamente deveria combater”, enfatiza Vanessa.
É possível fazer diferente
“Foi chocante constatar a irresponsabilidade de não relatar o fato como ocorreu. É o antijornalismo, porque trata o machismo como aceitável e está tudo bem. Eu não admito que minha categoria siga desse jeito. Não é mais possível que se escreva sobre o extermínio das mulheres culpabilizando as vítimas”, enfatiza Niara.
É possível fazer diferente? Sim, defendem as jornalistas. “É possível responder ao processo legal sem ferir a ética, sem corresponsabilizar a mulher. O livro é uma ferramenta contra o feminicídio para mudar a escrita dos jornalistas sobre os crimes de gênero e falar do tema com mais sensibilidade”, acredita a autora.
Professora da Uergs no curso sobre Enfrentamento da Violência contra as Mulheres no Rio Grande do Sul voltado à policiais, Solange Carvalho de Souza foi ao debate para ouvir as pesquisadoras e adquirir o livro para auxiliar em sala de aula. “Me perturba muito a forma como a violência de gênero é contada. Eu procurava reportagens para subsidiar a aula mas aqui eu tenho um compêndio para me auxiliar”, relata.
Escrita sentida e referência feminista
Foto: Divulgação
Foto: Divulgação
“Não existe ciência, história e narrativa neutras. O conhecimento é feito pelo olhar de quem o produz. Este trabalho faz a crítica da falsa neutralidade da imprensa que reproduz a hegemonia do patriarcado”, registra Télia Negrão, feminista com mais de 40 anos de ativismo. “E, conscientemente ou não, as autoras desmontam mitos e defendem uma série de teses feministas na prática, que é a produção de conhecimento situado, se colocando como parte da experiência, como o lugar de fala das mulheres”.
O trabalho nasceu inspirado em uma comunidade criada por jornalistas no Facebook em 2016 chamado “Não foi ciúme”. As integrantes do coletivo fizeram uma varredura nas manchetes sobre feminicídio em suas regiões e constataram que a mulher sempre era culpada, mesmo sendo a vítima. A ideia do livro era perenizar essas constatações e as duas jornalistas se desafiaram à tarefa.
O livro
As autoras contam como foi desafiador e doloroso o processo vivido cada uma em seu estado. Niara é gaúcha e mora em Pelotas, Vanessa é mineira, residente em São Paulo. “Se não fosse essa solidariedade feminista a gente não teria conseguido”, acentua Niara, falando da depressão frente aos absurdos que iam sendo constatados e os apoios recíprocos que permitiram concluir a publicação. Niara e Vanessa se encontraram presencialmente pela primeira vez ontem para autografar o livro que teve um sabor emocionado de abraço.
“Nossa categoria precisa fazer esse trabalho porque influencia a sociedade. Estou cansada de lutar pelas mesmas coisas todos os dias com mínimas alterações. As mulheres seguem morrendo e segue se dizendo que foi de morte morrida”, desabafa Niara. “É um direito ter acesso à informação correta. Nosso objetivo é causar indignação e mudar”, conclui Vanessa.
SERVIÇO
ONDE COMPRAR: Na Drops da Fal
Livraria Cirkula: Av. Osvaldo Aranha, 522 – Bom Fim, Porto Alegre (Sindicalizados do Sinpro/RS tem 5% de desconto)
Link do lançamento no canal do YouTube do Cirkula TV
Contato com as autoras: Instagram @nideoliveira71 e @vanerodrigues72