A nova Idade Média das ruas
Foto: Igor Sperotto
Quem anda pelas ruas de grandes centros urbanos ou mesmo de municípios do interior se depara com um número cada vez maior de pessoas em desamparo e sofrimento. Só na cidade de São Paulo, já são 32 mil morando na rua. E uma contagem sem método de censo feita pela prefeitura estima 2,5 mil pessoas vivendo nas ruas de Porto Alegre.
O último recenseamento na capital gaúcha foi realizado em 2016 e apontava 2.115 pessoas em situação de rua. Atualmente, são 202 mil pessoas em estado de pobreza e, destas, 37,2 mil na miséria.
“Quando vi tava morando na rua”, conta Tiago Barcelos Cardoso. Motorista e pedreiro, era morador do bairro Ponta Grossa antes da pandemia.
Demitido, gastou as economias. Na mochila, leva um cobertor e dorme na porta de um prédio público no centro de Porto Alegre. Com 36 anos, não encontra colocação e cata resíduos para vender. “Sem comprovante de residência, não tem nem conversa”, registra.
Enquanto conta sua história, outros dois catadores passam pelo mesmo contêiner, procurando a mesma coisa que ele. “Às vezes, tem quatro, cinco juntos. É todo o tempo assim”, relata. Tiago anda sozinho e não cria caso.
Foto: Stela Pastore
Mônica Barbosa, 27 anos, carrega um filhote de cachorro no colo e anda pelas ruas conversando com bom humor sobre o cotidiano. Foi comerciária, trabalhadora de telemarketing, tem curso de salão de beleza e concluiu o ensino médio no EJA. Em uma queda de moto, fraturou uma perna e ficou com sequelas. Ela relata que ficou desamparada depois que o marido teve problemas com a justiça, perdeu a casa onde morava e atualmente vive nas ruas. Agora, cuida de carros, vende resíduos e dorme “por aí”. “A gente é muito discriminado”, lamenta.
Henrique, 48 anos, está há 15 anos em situação de rua e vive de reciclagem. Trabalhou com carteira assinada por seis anos em uma fábrica de chocolates e teve uma borracharia. À noite, arruma sua cama sob a marquise de uma oficina mecânica. As noites são intranquilas, porque bem cedo é preciso recolher tudo e ir embora antes que o estabelecimento abra as portas. “Com essa roupa, com essa barba, olham pra gente com medo e atravessam a rua. Ninguém te puxa. Vivo um dia após o outro. Penso no trajeto que tenho que fazer amanhã para recolher o resíduo. Não tem como projetar. Não tem como pensar no futuro”, constata.
Expulsos, a nova população nas ruas
“Há uma nova população de rua feita de trabalhadores expulsos da estrutura produtiva”, analisa a economista Lúcia Garcia. “Os centros urbanos parecem cenas de uma cidade medieval. As pessoas catando comida no lixo, pedindo dinheiro, desvalidas da sua dignidade, atiradas no chão, matando fome com álcool, drogas e a volta do trabalho infantil”, registra a especialista em mercado de trabalho.
De sexta economia do planeta em 2011, o país regrediu para a 12ª posição em 2021, e o PIB voltou ao patamar de 2008. Desde o Plano Real em 1994, será o primeiro governo a terminar o mandato com um salário mínimo com menor poder de compra do que quando iniciou.
A renda familiar per capita é a menor da série histórica para a Região Metropolitana, que viu crescer em 50 mil o número de pessoas em extrema pobreza em apenas um ano. Ossos e subprodutos integram o atual cardápio das mesas brasileiras. Situações superadas, como o trabalho infantil, voltaram a recrudescer. O endividamento nacional das famílias também bateu recorde e chegou a 78% em julho, maior proporção em 12 anos de medição mensal.
Enquanto isso, a concentração de renda também se acentuou na pandemia, aumentando em 42 os bilionários na lista mundial de super-ricos. A metade mais pobre no Brasil possui menos de 1% da riqueza do país, enquanto o 1% mais rico desfruta de quase a metade da fortuna patrimonial brasileira. Os 10% mais ricos no Brasil ganham quase 59% da renda nacional total.
Foto: Stela Pastore
Desmonte e precarização
Os efeitos da PEC 95 que congelou os investimentos na área social por 20 anos, a redução de suportes sociais com as mudanças no sistema de seguridade social e trabalhista golpearam duramente um sistema que freava mecanismos promotores de miséria.
Após a suspensão do auxílio-doença que garantia o aluguel de Olga Castro, ela e o irmão Fernando Castro, 47 anos, foram morar sob tapumes, em um terreno baldio no bairro Menino Deus.
“O dono nos emprestou, mas é provisório. Não sei até quando. A gente pede, vende bala, faz o que pode”, relata Fernando, segurando pela guia a cachorrinha que foi abandonada um dia antes, após o tutor, também morador de rua, ser assassinado a tiros.
Fernando sonha em ter uma Kombi para morar dentro e trabalhar com reciclagem até poder comprar uma casinha e sair das ruas.
“Temos um estoque enorme de imóveis vazios nas cidades do Brasil, enquanto existe um número enorme de famílias em situação de rua. Esse quadro é revelador da injustiça das nossas cidades”, observa a diretora de Relações Internacionais do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU), Betânia Alfonsin.
Retorno ao mapa da fome
Foto: Igor Sperotto
De volta ao Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU) desde 2018, o país viu a situação se agravar desde então. Um país entra nesta classificação quando mais de 2,5% da população enfrenta falta crônica de alimentos. Atualmente, esse volume é de 4,1%, e a situação no país é mais grave do que a média global.
Cerca de 33,1 milhões de brasileiros vivem em situação de fome, 14 milhões a mais que em 2020. Esse quadro é equivalente ao da década de 1990. Os dados são do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan).
No início de agosto, Miguel, de 11 anos, de Santa Luzia (MG), acionou o número 190 porque viu a mãe chorando ao não ter como alimentar os seis filhos. Policiais foram até a casa verificar se não se tratava de maus-tratos. “Mas constatamos que a família toda estava sendo maltratada pela fome”, revelou o sargento Ivan Ferreira ao ver que a família comia mingau de fubá havia três dias.
A fome tem pressa
Melissandro Bittencourt é voluntário e articulador do movimento Amigos da Rua, uma rede de apoio que prepara alimentos, refeições e agasalhos para pessoas que estão em situação de rua e vivem em praças, parques, viadutos e locais já mapeados. “Tem várias pessoas já conhecidas, mas percebemos também pessoas novas a cada dia”, explica o cozinheiro e motorista de aplicativo. O sorriso de quem recebe as quentinhas ou os lanches é a compensação dos ativistas anônimos em várias regiões da cidade.
Destruição do Bolsa Família acentua exclusão
Desde o governo Temer, a política de assistência social teve um corte de 30% a 40% ano a ano, mesmo na pandemia, registra a assistente social e diretora de Relações Institucionais e Internacionais da Rede Brasileira de Renda Básica, Paola Carvalho. Ela diz que a PEC 95 e o achatamento das políticas sociais impactam diretamente os mais vulneráveis.
Paola critica a destruição do Programa Bolsa Família, que era uma transferência de renda continuada, associada ao conjunto de políticas públicas que faziam uma grande diferença na vida das famílias. “Destruiu um caminho de crescimento e evolução da política de renda no Brasil, devastou a condição de pacto entre estados e municípios, acabou com a busca ativa dos mais pobres e, fundamentalmente, de garantir a equidade entre os beneficiários”, enumera.
O Auxílio Brasil não tem políticas de proteção tão fundamentais aos mais vulneráveis, e milhares de famílias não conseguem sequer entrar no Cadastro Único para Programas Sociais, para que, enfim, possam sonhar em ser avaliadas e incluídas na transferência de renda.
“O povo sente na pele a fome, a pobreza, a falta de emprego, o salário que não compra o básico, o emprego informal que exige uma carga horária pesada para um salário que não chega ao valor do mínimo. Por outro lado, as pessoas tentam não perder as esperanças de voltar a sonhar, estudar, morar, sorrir e ter, no mínimo, três pratos de refeição por dia”, observa a ativista.
Estado de pobreza
Not available
A capital gaúcha possui 202 mil pessoas em estado de pobreza e, destas, 37,2 mil vivem na miséria – dessas, grande parte vive nas ruas. “Novos pobres ingressam diariamente na fila do atendimento de assistência social em função da conjuntura lamentável do nosso país”, afirma o titular da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, Léo Voigt, na apresentação dos dados durante atividade da Associação Comercial de Porto Alegre (ACPA), no início de agosto.
“A sensação é de secar gelo, porque, mesmo com todos os atendimentos, o número não diminui. Há uma máquina macroeconômica geradora de novas pessoas vulneráveis, desorganizadas, empobrecidas e deprimidas”, sintetiza.
A população em situação de rua atual é estimada em 2.518 pessoas, segundo a prefeitura de Porto Alegre, que disponibiliza apenas dados de 2021. “A rua é uma estratégia social de sobrevivência porque ela dá dinheiro, comida e esmola. Tem uma certa utilidade altamente perversa”, resume o gestor da política social do município. Das 12 regiões de assistência social da cidade, o Centro Histórico é o que concentra mais pessoas vivendo nas ruas, cerca de 600.
O método da contagem é feito pela abordagem das 12 equipes que operam para identificar, acompanhar e buscar inserção na rede de acolhimento, vinculação, e proteção. No primeiro semestre deste ano, foram contabilizadas 1,8 mil pessoas.
O último censo para identificar essa população aconteceu em 2016 e apurou 2.115 pessoas em situação de rua, porém não há previsão de quando ocorrerá um novo levantamento com os mesmos critérios.
Para o público em situação de rua, a prefeitura mantém os Centros Pop – três locais de atendimento na região Central abertos todos os dias, das 8h às 17h, inclusive nos finais de semana. Oferece um total de 240 vagas em albergues acessadas por demanda espontânea, e 12 equipes de abordagem.
Nas ruas, a expressão da crise
“A rua é uma das expressões da crise social e econômica”, registra a psicóloga e coordenadora do Serviço de Proteção Social Especial da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), Helena de La Rosa. “Voltamos a nos deparar com situações superadas com o retorno agravado do trabalho infantil e a mendicância. Agudizou o quadro da violação de direitos com o fechamento de escolas e serviços de convivência, deixando famílias, crianças e adolescentes mais fragilizados”, pontua a servidora, que atua na política de assistência do município há 13 anos. “A violação sexual nas famílias reverbera em mais situação de rua”, completa.
Três em cada 10 perderam renda
Pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI), divulgada em agosto, mostra que três em cada dez brasileiros perderam parte ou toda a renda neste ano. No universo de 2 mil pessoas ouvidas em todo o país, 68% sofreram com a alta de preços; 34% atrasam a conta de água e luz; dessas, 44% ganham até um salário mínimo, e 56% do total são pessimistas quanto ao futuro.
“As pessoas estão apertando o cinto, não estão comprando bens duráveis, a indústria reduz a produção, as contratações e os investimentos. A roda da economia gira devagar e gera esse círculo vicioso”, afirma o gerente de Análise Econômica da CNI, Marcelo Azevedo.
Grande Porto Alegre: 50 mil na extrema pobreza em um ano
Foto: Stela Pastore
Mais de 145 mil pessoas estavam em situação de extrema pobreza na Região Metropolitana (RM) de Porto Alegre em 2021 – 51 mil a mais que no ano anterior. Entre 2019 e 2021, os 5% mais pobres da RM perderam quase um quarto de sua renda. Eram 2% da população na extrema pobreza em 2019. Com a pandemia, esse percentual aumentou para 3,4% em 2021, a maior marca do levantamento.
No ano passado, a renda domiciliar per capita caiu para o menor valor da série histórica para a RM: R$ 1.947. Os dados são de agosto, da nona edição do Boletim Desigualdade nas Metrópoles, produzido em parceria pela Pontifícia Universidade Católica do RS (PUCRS), Observatório das Metrópoles e Rede de Observatórios da Dívida Social na América Latina.
“A situação econômica já era muito grave e piorou muito na pandemia. O Estado falhou em proteger os mais pobres com descontinuidade em vários programas, e houve um salto na pobreza com decisões equivocadas”, pontua o professor da PUCRS e coordenador do estudo, André Salata.
O sociólogo destaca que essa população já se encontrava em situação de vulnerabilidade por ter baixa escolaridade, estar na informalidade e ser facilmente descartada do mercado de trabalho. “Todos sentem, mas eles sentem mais por não terem proteção de choques econômicos”, avalia.
“Para melhorar o quadro, é preciso combinar a retomada da economia, controlar a inflação e manter programas de transferência de renda bem focalizados, robustos e sustentáveis a longo prazo”, conclui.