GERAL

O caçador de mentiras

ENTREVISTA | GILMAR LOPES
Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 18 de novembro de 2024
O caçador de mentiras

Fotos: Marcelo Menna Barreto

Gilmar Lopes, autor do livro Caçador de mentiras: “O coach não tem empresa nem sucesso de verdade. O que ele faz bem é vender curso e o curso é sobre como vender curso”

Fotos: Marcelo Menna Barreto

Gilmar Lopes é o criador do E-farsas, o mais antigo site de checagem de fatos do Brasil, lançado há 22 anos em pleno Dia da Mentira – 1º de abril. Em 2002, 13 anos antes da criação da Agência Lupa, que se define como a primeira agência fact-checking do país, o que surgiu como um passatempo para o jovem formado em Análise e Desenvolvimento de Sistemas, rapidamente se tornou referência no combate à desinformação. O impacto foi tanto que, antes de surgir a Lupa, a Aos Fatos (2015) e a Fato ou Fake (2018), agências mantidas por conglomerados de comunicação, em 2013 o E-farsas foi considerado o quarto melhor blog pela premiação Best Of The Blogs (BOBs) da Deutsche Welle, empresa pública de radiodifusão da Alemanha. Mesmo ano, aliás, em que surge a Boatos.org, outra iniciativa nacional relevante no combate as já tão populares fake news. É do alto dessa experiência que o apaixonado em pesquisas on-line, cujo trabalho é citado em diversos trabalhos acadêmicos, e que, desde 2020, integra uma coalizão formada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para ajudar a checar informações nas eleições brasileiras, lançou neste ano o livro Caçador de Mentiras (Matrix, 2024, 184 p.). Na obra, em especial, Lopes dedica-se a revelar como histórias muitas vezes usadas por líderes de autoajuda influenciam e podem até destruir a vida de seguidores. É uma espiral de frustração e perda de dinheiro para quem acredita em promessas de sucesso rápido, explica ele nesta entrevista.

Extra Classe – Você acertou em cheio em fazer um trabalho que reflete sobre a cultura coach que tem tomado conta das redes e que, agora, meio que se materializou no campo da política. Pablo Marçal, com todo o domínio de comunicação nas redes, conseguiu pautar o debate político nacional. Como surgiu a ideia de abordar essa temática?
Gilmar Lopes – Eu sempre quis transformar as histórias que pesquiso no E-farsas em um livro, deixar um legado, mas as histórias na internet mudam o tempo todo. Se eu fosse colocar isso num livro, teria que ficar reeditando. Aí pensei: por que não selecionar algumas histórias que sempre circulam, tanto na internet quanto fora, né? Uma dessas linguagens que se repetem muito é a dos coaches de autoajuda. Eles sobem no palco, contam histórias motivacionais pra vender cursos de sucesso, mas muitas dessas histórias não são verdadeiras. Foi aí que surgiu o Caçador de Mentiras. No começo, ia chamar Mentirada de Palco, mas depois decidimos ampliar pra pegar também políticos e líderes religiosos que contam histórias falsas. O que percebi é que essas histórias seguem um padrão: elas prendem a atenção emocional do público até o final e, quando não dão certo, a culpa recai sobre quem acreditou, não sobre o coach ou líder (risos). Isso acontece muito com as histórias que eu investigo no site.

EC – No final de setembro, o STF suspendeu decisão da Justiça de São Paulo que retirou do ar um vídeo da bióloga Ana Bonassa e da farmacêutica Laura Marise de Freitas contra o Dr. Lanza. O nutricionista e influenciador andara atribuindo a causa do diabetes à ação de vermes e processou as duas cientistas que o desmentiram. Como você vê casos como esse?
Lopes – Inclusive, as meninas do canal Nunca Vi 1 Cientista, a Ana Bonassa e a Laura Marise, são minhas amigas. O caso foi até o STF e o Dias Toffoli anulou a liminar, então, o assunto foi encerrado. Mas já pensou ser condenado por desmentir uma coisa dessas? Dá até medo de falar a verdade e acabar sofrendo consequências pesadas. Tem muita gente ganhando dinheiro com isso, vendendo cursos e livros sobre como se curar com chá de graviola, por exemplo. Eu sempre falo que o problema não é você tomar um chazinho quando está doente. É abandonar o tratamento convencional pra ficar só nas simpatias. Isso é perigoso. A não ser que tenha algum efeito placebo, essas coisas não resolvem nada. Teve um tempo em que circulou a história de que leite de alpiste cura diabetes.

EC – Como é esta história?
Lopes – Eu até brinco nas minhas palestras, dizendo que nem sabia que alpiste dava leite, né? Vai ter que ir numa fazenda de alpiste e ordenhar? Diziam que foi um estudo da Universidade Autônoma do México. A primeira coisa que fiz foi procurar no site da universidade, e, claro, não tinha nada. Esse é um truque de quem espalha essas histórias, usar o nome de entidades importantes pra dar mais credibilidade.

EC – Nesse caso das pesquisadoras, o influenciador se apresenta como nutricionista.
Lopes – Então, ainda tem essa questão da autoridade, né? A pessoa usa o crachá para falar. A gente vê muito isso no WhatsApp. A pessoa manda um áudio dizendo: “Ah, eu sou médica e queria falar que tal coisa”. Você nem sabe quem é, só ouve o áudio. Mas aí, por ela dizer que é médica, as pessoas acreditam e repassam. O Conselho Federal de Medicina nem se mexe com isso, e parece que quem se forma vai na internet falar qualquer coisa para ver se ganha dinheiro. Hoje, o profissional não é só aquilo que ele foi formado para ser. Um corredor de Fórmula 1, por exemplo, o que ele menos faz é correr. Passa a semana fazendo propaganda, vídeos para o Instagram, atendendo à imprensa. Só corre uma hora por semana. A mesma coisa vale para um dentista. Hoje, ele não pode só fazer o trabalho dele; tem que postar no YouTube, no Instagram; mostrar o antes e depois dos clientes. E no meio dessa necessidade de produzir conteúdo, se falam coisas que nem sempre são verdade.

EC – Quais são os principais padrões que você identifica nas fake news relacionadas à autoajuda e ao coaching motivacional?
Lopes – O coach motivacional sempre apela para o lado emocional, né? E ele usa coisas que nem sempre são reais. Um bom exemplo é o Napoleon Hill, o pai da autoajuda. Ele criou esse estilo, a ponto de quando você vai na livraria, tem lá ficção, não ficção e autoajuda. O Napoleon Hill dizia que um milionário, o Carnegie (Andrew), encomendou a ele um estudo sobre o que as pessoas bem-sucedidas tinham em comum. E aí, ele passou 20 anos estudando e lançou o primeiro livro de autoajuda. Só que, depois, o biógrafo do Carnegie disse que eles nunca se encontraram. Mas, com o Carnegie morto, não dava pra desmentir. O Napoleon Hill fez fortuna com uma história que nunca foi comprovada. Inclusive, faliu várias empresas que tentou abrir; mas, na literatura, ele foi um gênio e ganhou milhões. É essa a pegada do coach motivacional. Ele vende uma ideia que ele mesmo nem sempre alcançou. Tipo, o coach que vai te ensinar a ser milionário. Mas ele é milionário? Não, ele não é.

O caçador de mentiras

Foto: Marcelo Menna Barreto

Se a sua mente está mal, você tem que ir a um médico. O coach não tem esse poder de te curar, ainda mais em uma única reunião ou palestra

Foto: Marcelo Menna Barreto

EC – Vende a ideia?
Lopes – Vende a ideia de que é milionário, mas, na real, tudo que ele mostra é alugado: o carro, a casa. Ele não tem empresa nem sucesso de verdade. O que ele faz bem é vender curso e o curso é sobre como vender curso. Aí, ele se apresenta como um cara ou uma mulher bem-sucedida e promete que, se você seguir tudo o que eles sugerem, você também vai ser.

EC – Só que não, né?
Lopes – No meu livro, eu falo sobre isso. Tem até um dado de um estudo nos Estados Unidos que mostra que mais de 90% das pessoas que investiram na Bolsa de Valores não ficaram ricas. Só que o que se divulga são histórias de sucesso. E isso é parecido com o que acontece na área de saúde também. Quem toma um “chazinho milagroso” e não sobrevive não está aí para contar, mas os poucos que, por coincidência, melhoram são os que aparecem dando depoimento. Para cada empresário que deu certo, tem milhares que faliram. E aí, quando a coisa não funciona, a culpa é sempre de quem comprou o curso, não de quem vendeu. A pessoa pensa: “Ah, eu não mudei meu mindset o suficiente, a culpa foi minha”.

EC – É mais ou menos como o Marçal faz. A diferença é que, em tese, me parece que ele é muito rico, não?
Lopes – É uma situação meio complicada, né? Durante a campanha eleitoral, ele deu uma entrevista e o repórter perguntou sobre o fato de ele ter aumentado o patrimônio em R$ 190 milhões em um ano. Isso daria, mais ou menos, R$ 120 mil por dia. Aí o jornalista questionou: “Por que você quer ser prefeito de São Paulo, ganhando R$ 30 mil por mês, se você faz esse valor em um dia?”. Aí ele enrolou, dizendo que nem tudo o que ele ganha foi declarado no TSE. Acabou soando como se ele estivesse escondendo alguma coisa. A impressão que ele tenta passar é sempre de ser super bem-sucedido, mas conheço gente que foi no escritório dele e me disse que tudo lá parecia meio ensaiado. Para reforçar essa imagem de sucesso. Estavam lá conversando com ele e a secretária entrava de tempos em tempos, dizendo coisas como: “Senhor Marçal, o jato que o senhor comprou chegou”. Dá pra ver que ele sempre quer mostrar que está melhor do que realmente está.

EC – Uma jogada ensaiada…
Lopes – Mas ele é só um exemplo. Tem vários outros que fazem a mesma coisa. Parece que a vida dele é ensaiada, tudo seguindo um script. E é assim que esses coaches motivacionais vendem a ideia de que a vida deles é ótima e que a sua também pode ser, se você seguir os passos que eles indicam.

EC – De que forma essas desinformações podem prejudicar emocional e financeiramente os seguidores dessa gente?
Lopes – Pois é, é uma série de decepções. Você tem ali, por exemplo, R$ 2 mil guardados pra uma emergência e aí aparece um curso prometendo que, se você seguir os 12 passos da prosperidade, vai ficar rico. Aí você investe não só o dinheiro, mas também o seu tempo, a sua dedicação. No fim, você descobre que não é bem assim, que não funciona, e acaba frustrado. Isso pega muito, especialmente com os coaches que prometem curar a depressão. A pessoa, ao invés de procurar um médico, vai atrás de um coach que promete resolver tudo. Quando não dá certo, a frustração é maior ainda e piora o problema. No livro, eu até falo que, se você quebra uma perna, vai no médico colocar o gesso. Se a sua mente está mal, você tem que ir a um psicólogo, a um médico. O coach não tem esse poder de te curar, ainda mais em uma única reunião ou palestra. É algo perigoso e muito frustrante.

EC – Como as pessoas podem identificar que estão sendo enganadas por histórias inspiradoras fabricadas?
Lopes – Antes de qualquer coisa, as pessoas têm que checar o currículo do profissional que está tentando vender aquele curso, aquela filosofia de vida. Nem todo mundo é picareta, né? Tem gente que é bem-intencionada, mas só testou suas ideias em laboratório. Na vida real, é bem mais complicado. Mas, claro, tem profissionais honestos que fazem um trabalho ótimo, principalmente em empresas, ajudando de verdade. Agora, o ideal é verificar o histórico da pessoa, ver se tem reclamações no Reclame Aqui ou em outros lugares, porque você precisa se informar antes de investir seu tempo e dinheiro. Assim como você checa uma escola de inglês ou um curso de canto, tem que ver se aquela empresa ou profissional é confiável. E o mais importante: usar bom senso. Não dá pra acreditar em tudo que dizem, né? Tem que sempre manter o pé atrás e usar bom senso, como em tudo na vida, pra não cair na mão de um picareta por aí.

EC – Sem a regulação das redes sociais – que o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP/AL), não quer ver em votação –, como a sociedade pode se proteger das fake news disseminadas por essa gente que você classifica como “picaretas”?
Lopes – Eu sempre digo que a melhor arma contra a desinformação é a própria informação. Eu tenho até feito trabalhos em faculdades e escolas, mostrando como identificar notícias falsas. As pessoas precisam se informar, isso é essencial. Tem muita gente que entra nas redes sociais e no WhatsApp e acha que tudo que recebe ali é verdade. Não custa nada abrir uma janelinha de navegação e fazer uma busca rápida sobre o assunto, sabe? Dá um pouquinho de trabalho, mas é importante. Eu mesmo já tive discussões sobre as urnas eletrônicas, mandando link com informações oficiais, mas a pessoa preferiu acreditar num áudio anônimo. Então, o que eu sempre falo é: tenha consciência, desconfie de tudo, e, na dúvida, não compartilhe. Sempre abra uma janelinha, veja se algum jornal confiável está falando sobre este ou aquele assunto. E, no caso de autoajuda, dá uma olhada no currículo do autor, do palestrante, porque é fácil cair em golpes.

O caçador de mentiras

Capa: Reprodução

Capa: Reprodução

EC – Quem é mais vulnerável à desinformação no campo da autoajuda?
Lopes – São as que mais sofrem com isso, sabe? Aquela pessoa que está em busca de uma recolocação no mercado, que muitas vezes acaba se apoiando em promessas de picaretas e entregando tudo, na esperança de uma vida melhor. Geralmente, são pessoas com renda mais baixa e escolaridade também menor. Tem também aqueles do famoso conto do vigário de antigamente, que pegava quem tinha ganância. Sempre tem aquele que sonha em ganhar muito rápido e acabava caindo na conversa, tipo a história do cara que vendeu a Torre Eiffel para alguém que acreditava que conseguiria revendê-la por um preço maior. No fundo, são essas pessoas mais simples e desesperadas que buscam se dar bem na vida, mas acabam sendo enganadas.

EC – Qual foi o caso mais curioso ou surpreendente de fake news de autoajuda que você checou no E-Farsas?
Lopes – Olha, uma história muito conhecida é aquela sobre a águia, após os 40 anos, se retirar para o cume de uma montanha. Lá, arranca todas as penas, retira o próprio bico e, depois de umas duas semanas, sai voando com penas e bico novos. Aí vem a história de que é assim que a gente tem que ser na empresa, que a gente tem que ser na nossa vida. Só que, na natureza, nenhum animal se automutila. Na verdade, a águia não retira seu bico, que faz parte do seu crânio. Além disso, ela precisa se alimentar constantemente, pois seu metabolismo é rápido e não conseguiria sobreviver mais de uma semana sem bico, portanto, sem comida. No meu livro, eu uso dados de especialistas em biologia para mostrar que essa história não faz sentido. Também dedico um capítulo para desmentir várias frases atribuídas a Einstein que ele, na verdade, nunca disse. É importante ter discernimento e buscar informações verdadeiras, ao invés de acreditar em mitos.

Comentários