A longa espera de crianças e adolescentes por uma nova família
Foto: Luísa Bell
A lei brasileira prevê que quando crianças e adolescentes são retirados de suas residências por alguma quebra de vínculo familiar é porque alguns de seus direitos mais básicos foram violados.
Através do Conselho Tutelar, elas são encaminhadas para uma instituição de acolhimento. A depender da violação que a criança sofreu, os familiares são proibidos de visitá-la. Nesse momento inicia-se a perda de vínculo com a família biológica e começa o processo de destituição do poder familiar que pode terminar com uma possível adoção. Mas isso só acontece depois de diversas e longas etapas e um lapso de tempo que pode ser determinante para a rejeição: nessa espera, as crianças crescem e saem do radar da maioria dos potenciais adotantes.
Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) revelam que, no Rio Grande do Sul, a maioria das 539 crianças disponíveis para adoção estão na faixa etária entre 14 e mais 16 anos. Esses jovens tendem a ficar em casas de passagem por mais de três anos, enquanto crianças de até dois anos costumam permanecer nos abrigos por períodos mais curtos, não mais do que seis meses.
Foto: Luísa Bell
Segundo a juíza Carmen Cabral, titular do 2º juizado da Vara da Infância e da Juventude, não existe um tempo definido para as crianças ficarem nos abrigos. Isso ocorre porque, em alguns casos, existe uma demora para encontrar os genitores do menor. Nesse caso, não é possível realizar as audiências de adoção, porque ela tem que ser feita com a presença dos pais biológicos.
“O que acontece é que às vezes você demora para localizar os genitores, que em muitos casos são pessoas que não têm paradeiro”. O processo de adoção tem um prazo de 120 dias. No entanto, na maioria dos casos, ele é mais demorado.
Em Porto Alegre, a juíza Carmen Cabral atua na área protetiva da Infância e Juventude há cinco anos, mas iniciou na carreira em 1988.
Entre as suas atribuições está a de fazer audiências de instrução, escutando as partes do processo e as testemunhas. Também participa de audiências concentradas, nas quais se desloca até os abrigos na Zona Norte de Porto Alegre.
Nessa circunstância, a juíza escuta as equipes técnicas, a rede de assistência e os demais envolvidos no processo, que são os pais, avós, tios, parentes extensos.
Essa oitiva é importante para se certificar se existe alguma possibilidade de retorno da criança ou adolescente convívio familiar. “Esgotada essa possibilidade, então, munida de laudo técnico, podemos colocar a criança ou adolescente em família substituta”, explica a magistrada.
O “tempo” no processo de adoção
Inforgráfico: Eduarda Cidade
Para o bancário Lucimar Quadros da Silva, 59 anos, e o cabeleireiro Rafael da Silva Gerhardt, 49, de Gravataí, a espera pela adoção demorou em torno de três anos e meio mais os cerca de seis meses de espera pela habilitação, ou seja, foram quatro anos até conseguir a adoção legal. Eles adotaram o filho, João Vitor, que está com 14 anos, quando ele tinha três meses e 20 dias de vida.
“O João Vitor não chegou a ficar muito tempo em um abrigo, porque ele foi entregue no fórum pela mãe e avó biológicas com três meses e como estava com bronquiolite, foi internado. Acreditamos que ele ficou apenas 20 dias na casa de passagem e depois veio para nós. No caso do João, como ele foi entregue para adoção, o processo de destituição familiar já foi assinado no fórum e depois só teve mais uma audiência, que era a chance para recorrer, mas ninguém apareceu. Fizemos questão de participar de tudo, certinho, e estávamos presentes”, relata Lucimar.
Processo de adoção
Infográfico: Eduarda Cidade
A juíza Conceição Aparecida Canho Sampaio, que atua na Vara de Juizado Regional da Infância e da Juventude da Comarca de Osório, ressaltou por entrevista virtual que uma das etapas decisivas para a efetivação do processo de adoção é a habilitação dos pais adotivos. Para isso, o judiciário oferece um curso aos candidatos à adoção.
“Aqui em Osório nós fazemos este curso, algumas comarcas têm ONGs que fazem esse curso para habilitação para adoção, como por exemplo a Elo, e neste curso a gente trabalha diversas dinâmicas. A gente inicia com a parte jurídica, explicando o que é adoção, todo o aspecto da destituição do Poder Familiar daquela criança, ou da entrega voluntária”, ressalta a juíza.
Quando a criança está apta para adoção ela é inserida no Sistema Nacional de Adoção (SNA) e depois, acontece todo processo legal de adoção. Nesse curso, também são efetuadas dinâmicas para trabalhar o perfil que aquele pretendente intenciona e dinâmicas sociais. Depois do curso, quem se candidata é habilitado a se tornar um pai ou uma mãe adotiva.
“Normalmente trabalhamos muito o perfil pretendido, porque eu observo algumas tendências de pessoas com mais idade querendo adotar bebês”, revela.
Quebra do vínculo com a família biológica
Além da destituição, há outros fatores que levam as crianças a permanecerem nos abrigos. Conforme a titular do 2º Juizado da Infância e da Juventude de Porto Alegre, Carmen Cabral, questões como vícios dos pais biológicos ou parentes, violência, casos de abusos, problemas financeiros. Em alguns casos, a criança, quando com mais idade pode optar por não ser mais adotada. Às vezes, a criança muda de ideia. Queria muito, mas pode chegar na audiência e dizer: não quero mais ser adotado, relata a juíza.
Segundo a psicóloga do Lar Esperança, Karen Rhoden, não existe idade mínima para criança decidir se quer ser adotada ou não. Se ela já consegue se posicionar e falar o que sente é o que vale.
“Quando ela vai entrar na questão dos aplicativos de adoção, a equipe do judiciário chama a equipe técnica junto a essa criança para que ela seja ouvida e possa expressar se quer ser adotada, se ela pensa em ter uma família, se quer ser adotada de forma nacional ou internacional, se deseja fazer um videozinho para o aplicativo, como é que ela quer fazer, tudo isso é questionado. A criança sempre tem voz nesse sentido” destaca Karen.
Um levantamento feito no dia 19 de novembro revela que há 3.783 crianças e adolescentes acolhidos no Rio Grande do Sul. Destes, 569 estão aptos para adoção, sendo que 219 já estão vinculados a pretendentes devidamente habilitados. Os dados foram solicitados ao SNA por meio do pedido de LAI (Lei de Acesso à Informação).
A difícil reconstrução do pertencimento
Foto: Luísa Bell
Quando há tentativa de reintegração da criança à família biológica, o processo de adoção se torna ainda mais prolongado, reduzindo as chances das crianças. Enquanto o vínculo familiar não é restabelecido ou rompido de vez, essas crianças aguardam no sistema de acolhimento.
Segundo a juíza Carmen, a demora ocorre em razão do processo de destituição do poder familiar. Muitas vezes, por conta do encaminhamento da criança ou adolescente à família extensa, que são os parentes próximos com vínculo de afinidade e afetividade, mas principalmente em razão do necessário cumprimento processual de esgotamento das possibilidades de citação pessoal dos genitores. Enquanto não são esgotadas as tentativas, o processo não desenvolve e a criança ou adolescente permanece em acolhimento institucional ou familiar.
Conforme estabelece a Constituição Federal, a prioridade absoluta é conferida às crianças e adolescentes e a Lei Nacional de Adoção (Lei nº 12.010/2009) trouxe avanços para acelerar o processo de adoção.
“Contudo, na prática, os desafios relacionados à reintegração familiar tornam o processo muito mais demorado do que deveria, uma vez que a legislação especial privilegia excessivamente o vínculo biológico ao considerar prioritária a família natural”, avalia.
A juíza da Vara da Infância de Porto Alegre afirma que quanto menor a criança mais rápido ocorre o rompimento do vínculo com a família genitora. Quando a criança fica muito tempo em situação de acolhimento familiar ou institucional ela vai se desvinculando da família biológica. Com isso, vão se perdendo as memórias de convivência. Contudo, no caso de uma criança maior ou de um adolescente, esses vínculos são maiores.
“Pode ser um vínculo positivo ou negativo, em que a criança guarda boas memórias da família de origem, ou ruins. Isso também acontece. Aliás, boa parte das crianças em situação de acolhimento tem memórias ruins da família biológica, de omissão, de negligência, de abuso”, detalha Conceição.
Conforme a juíza, o rompimento do vínculo da criança com a sua família de sangue depende da idade da criança e da vida que é ofertada depois que ela é retirada da família biológica.
“Quanto maior a criança, mais longo é o período para desvincular. Mas quando essa criança é colocada já na família adotiva, em que ela recebe amor, cuidados, o rompimento do vínculo vai automaticamente acontecer, porque toda criança precisa de afeto. Esse vínculo vai se tornando uma mera lembrança que criança tem da família de origem”, ressalta.
O papel das ONGS
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Uma das fundadoras da ONG Amigos de Lucas, Rosi Prigol, ao lado do seu marido Gilberto Prigol, trabalha com um grupo de pessoas que tem interesse em adotar ou que está em processo de adoção, fazendo reunião mensal, sempre no primeiro fim de semana do mês, com o grupo na sede da Faculdade Dom Bosco. Ela lembra que são comuns os casos em que familiares acreditam que têm direitos de propriedade sobre a criança e fazem de tudo para impedir que ela seja adotada.
“São pessoas desprovidas de cultura e de entendimento, que tratam os filhos como se fossem uma propriedade e preferem que eles fiquem no abrigo do que na casa de alguém. Então, tem tudo isso para andar num processo, toda essa parte legal que torna muito morosa a destituição do poder familiar”, explica.
Rosi também enfatiza que durante o processo de adoção a prioridade do poder judiciário é o bem-estar da criança.
“Tudo depende de o juiz entender o que é benéfico para criança, falamos no melhor interesse da criança e não do adulto, então sempre vai ser assim, tanto para a família biológica quanto para os adotantes”. Na reunião, ela cita o exemplo de uma integrante do grupo, que está habilitada. “Eles não vão se preocupar em buscar uma criança pra Sandra, mas em pegar uma mãe para uma criança que está precisando que pode ser ela”, ilustra a voluntária. “A busca parte da criança para o adulto, não do adulto para criança”, reitera. Ela esclarece ainda que o judiciário não permite que a família que está adotando procure a família biológica. “Depois da adoção finalizada, existe a possibilidade da criança ou adolescente adotada ter acesso à sua história, retomando o contato com a família de origem”, explica.
Destituição familiar
Foto: Acervo Pessoal
A administradora Elisabete Cristina Crucillo, 62 anos, relata que o principal desafio enfrentado na época em que ela resolveu adotar uma criança foi a busca em um orfanato. Nessa perspectiva, os pais biológicos ficaram sabendo do interesse na adoção e a mãe genitora relutou em assinar.
“A morosidade da justiça contribuiu para que somente depois de obter a guarda da criança, com 11 anos, conseguíssemos resolver a adoção, quando ela já tinha 17 anos”, destaca.
Elisabete tem dois filhos adotivos: o Fábio, de 39 anos, e Maria Luiza, de 23. O processo de adoção de Maria ocorreu de forma rápida. Em pouco tempo os pais conseguiram a certidão definitiva. Já no caso de Fabio, por conta da destituição familiar, o processo durou cerca de seis anos.
“Cada caso é um caso, mas afirmo que no caso do meu filho a justiça não levou a sério sua vontade e tempo de convivência”, explica.
Bete relata que a filha sofreu discriminação já na fila de espera.
“Fiquei sabendo por uma telefonista que cinco casais já tinham mantido contato e a rejeitaram por ela ser negra. Como isso não interferia no nosso caso, logo fomos ao encontro dela”, comenta.
No caso do filho, o casal já estava convivendo com ele. Em ambas as adoções, eles receberam visitas das assistentes sociais.
Difícil acesso à informação
Foto: Luísa Bell
A Coordenadoria da Infância e Juventude do RS, produziu um material com o passo a passo do processo de preparação para a adoção. Para ter acesso, basta clicar no link Cartilha de Orientação da Coordenadoria da Infância e Juventude do RS. Os dados sobre adoção de crianças e adolescentes no estado, no entanto, não são públicos nem de livre acesso à imprensa.
Diante disso, para produzir esta reportagem, a equipe formalizou cinco pedidos via Lei de Acesso à Informação (LAI), referentes a dados sobre: o número de crianças/adolescentes disponíveis para adoção; o número de crianças aguardando para serem adotadas e que já foram adotadas entre os anos 2010 e 2024; o número de pretendentes aguardando para adotar entre os anos 2010 e 2024; o número de crianças/adolescentes que foram devolvidas durante esse mesmo período.
Os pedidos foram para os respectivos órgãos: Ministério Público Estadual, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Conselho Tutelar do Rio Grande do Sul, Defensoria pública do Rio Grande do Sul e ao Conselho Nacional de Justiça.
Apenas o Conselho Nacional de Justiça atendeu o pedido e se propôs a tirar dúvidas e passar os dados pelo e-mail do suporte do SNA. O órgão passou quase todos os dados solicitados. O único dado não fornecido foi o número de crianças/adolescentes devolvidas durante o período de 2010 a 2024. O CNJ respondeu que “no momento, o Departamento de Pesquisas Judiciárias (DPJ), unidade técnica deste Conselho Nacional de Justiça, está realizando uma pesquisa, no âmbito do Justiça Pesquisa, em parceria com a ABJ, para identificar as motivações das devoluções no Brasil. Faz parte do escopo da pesquisa definir melhor os parâmetros do SNA do que é considerado ‘reinserção’, tanto durante o estágio de convivência quanto após a adoção, a fim de evitar erros metodológicos na divulgação do dado. Assim, no momento, não temos os dados solicitados”.
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*Esta reportagem é a primeira da série sobre adoção realizada na disciplina de Jornalismo Investigativo do curso de Jornalismo da Universidade do Vale do Rio do Sinos – Unisinos, sob a supervisão da professora Luciana Kraemer, no segundo semestre de 2024. Leia a primeira parte da matéria: Maioria das crianças e jovens vulneráveis não está apta para adoção.
O Extra Classe e a Unisinos firmaram Termo de Cooperação, no início de 2022, para a veiculação no jornal de reportagens produzidas pelos estudantes da disciplina de Jornalismo Investigativo do curso de Jornalismo da instituição e o acompanhamento dos estudantes na produção das edições mensais impressas do jornal.