Intolerância religiosa: racismo, fundamentalismo e a luta pelo poder
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
O próximo dia 21 de janeiro marca no Brasil o Dia Nacional do Combate à Intolerância Religiosa. A efeméride foi criada por conta de um dos casos mais emblemáticos intolerância religiosa do país, os ataques promovidos pela Igreja Universal do Reino de Deus a Iyalorixá baiana Gildásia dos Santos e Santos, conhecida como Mãe Gilda de Ogum. Para o fundador e presidente do Instituto Cultural Aruanda, Rodrigo Queiroz, apesar de ver ainda tempos difíceis pela frente, “é muito importante a oportunidade desse momento de fala”.
Por outro lado, o Filósofo, especialista em Psicologia Positiva, professor, sacerdote de Umbanda e autor do livro Entidades da Umbanda(Citadel Editora), lamenta que em pleno século 21 ainda tenha que se ter uma data demarcada para se discutir com a sociedade o tema da intolerância religiosa.
“Isso acontece porque há pessoas morrendo por isso; há pessoas perdendo emprego por isso; há pessoas tendo problemas seríssimos de saúde psicológica por isso. Tem uma coisa muito errada, muito disfuncional nessa sociedade que vende a ideia de que é muito pacífica, amorosa e acolhedora. Não é verdade?”, provoca.
Racismo religioso
Segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos (MDH), no ano passado foram registradas 2.472 denúncias de intolerância religiosa, 990 a mais do que em 2023 (1.482). A maior parte direcionada a religiões de matriz africana.
Para Queiroz, isso é a evidência do que chama racismo religioso, o motor dessa discriminação. O Brasil, destaca ele, é um país de maioria negra e parda que carrega o peso do racismo em todas as esferas, incluindo nas práticas religiosas.
“Quem é atacado, apedrejado, perseguido são os terreiros, as religiões afro-brasileiras de forma geral”, destaca. Segundo o filósofo, o racismo está no cerne da intolerância que essas tradições enfrentam já que outras práticas religiosas, como o judaísmo e tradições orientais, não sofrem o mesmo tipo de perseguição. “Você não está vendo judeu recebendo pedrada na rua. Você não está vendo sinagoga sendo fechada por traficante ou budista sendo xingado?”, questiona.
Se no Rio de Janeiro, as hostilidades contra terreiros são “cotidianas” e amplamente noticiadas, Queiroz cita exemplos recentes de intolerância contra religiões de matriz africana em outras localidades para evidenciar a gravidade e a frequência desses ataques.
A audácia do ódio
Foto: Acervo/Umbanda EAD
Um dos casos mencionados ocorreu em Botucatu, SP, onde um terreiro de Umbanda foi invadido por jovens que arremessaram pedras e coquetéis molotov, gritando insultos como “sai daqui, seus endemoniados”. O episódio aconteceu em novembro, justamente durante no período de discussão sobre a Consciência Negra, enfatiza ele.
A denúncia foi feita nas redes sociais. “Raramente aqui (na imprensa), vira notícia formal”, ao contrário de outro terreiro na mesma cidade que pegou fogo em 2022 por conta do ritual com velas e outros materiais inflamáveis.
Em Brotas, também no interior de São Paulo, frequentadores de um terreiro foram alvo de xingamentos e ataques durante seus rituais. “Cheio de gente lá dentro, concentrada, rezando, cantando”. Isso, destaca Queiroz, mostra o aumento da audácia desses atos de violência.
Já no Rio Grande do Sul, durante as festividades de São Cosme e Damião no ano passado, Queiroz lembra um caso de Gravataí. “Um terreiro teve janelas quebradas e pichações com mensagens de ódio deixadas no local”.
Ataques acompanhados por pichações, quebras de imagens e discursos de ódio, reforçam que “essas ações são motivadas por intolerância evidente”. Há ainda, a ironia de alguns agressores justificarem os ataques com reclamações de barulho: “Eles que sempre gritam tanto em seus cultos, reclamam que um ritual importuna. Olha só a hipocrisia.”, registra.
A religião como mercado e estratégia de poder
Sobre o clima que cria o ambiente de hostilidade, Queiroz é pragmático. “Religião é mercado. Enquanto o mercado é de massa, você tem poder sobre o outro.”
A crítica é sobre o uso da religião como ferramenta de controle político, destacando que há líderes religiosos que manipulam fiéis em busca de poder e lucro: “Quem está no controle desse movimento de perseguir outras crenças nem fé eu acredito que tenha… É uma estratégia de poder.”
E é essa estratégia de poder que deixa Queiroz pessimista. “Vai piorar”, lamenta. Ao lembrar que o clima de intolerância se acirrou nos últimos quatro anos de Jair Bolsonaro na presidência da República, ele entende que a estratégia para as eleições presidenciais de 2026 “já está bem montada”.
Como exemplo, cita as eleições municipais de São Paulo. “O debate agora não precisa ter lógica nenhuma; tem que ser performático e violento.
É isso que tá acontecendo. E no Brasil, cola falar de religião. O povo é muito religioso, o contingente de ateus aqui é uma coisa muito pequena”, aponta Queiroz ao entender que não faltará quem use um púlpito para demonizar um ou outro candidato e suas crenças.
“Não pode ser normal um líder religioso dizer que a voz de Deus manda votar em alguém e discriminar outros”, conclui.
Mãe Gilda
Foto: Elói Corrêa/GOVBA
O Dia Nacional do Combate à Intolerância Religiosa foi instituído pelo Governo Federal em 2007 para coincidir com a data da morte de Gildásia dos Santos e Santos, fundadora do terreiro de candomblé Ilê Asé Abassá, na Lagoa do Abaeté, bairro de Itapuã, em Salvador, BA.
Conhecida como Mãe Gilda, a candomblecista foi taxada como charlatã por pessoas de outras religiões. A Igreja Universal do Reino de Deus, via seu jornal, a Folha Universal, a estampou em sua capa na matéria “Macumbeiros e Charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”.
Após a publicação, a perseguição se intensificou. Além de agressões verbais e físicas sofridas, Mãe Gilda viu vândalos atearem fogo em sua casa e terreiro. O resultado da perseguição fragilizou a saúde da sacerdotisa que teve um infarto fulminante em 21 de janeiro de 2000.
Filha de Mãe Gilda, Jaciara Ribeiro dos Santos, moveu uma ação por danos morais e uso indevido da imagem contra a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). A Igreja foi condenada em 2009 e teve de pagar uma indenização à filha e ao marido da vítima.
Além da instituição do dia nacional de combate à intolerância religiosa, em 2014 foi inaugurado um busto de Mãe Gilda em Salvador. Desde então, o busto já foi alvo de vandalismos várias vezes.