O zelo pela contravenção
Foto: Assessoria de Imprensa/Paulo Pimenta
A partir de junho, a Polícia Federal começa a enviar ao Ministério Público Federal os inquéritos com os primeiros indiciamentos da Operação Zelotes – o nome é uma referência ao falso zelo que os lobistas manifestavam às empresas ao propor a extinção de multas tributárias mediante pagamento de propina. Deflagrada em 26 de março, no curso de investigações iniciadas em 2013, a força-tarefa da PF, Corregedoria do Ministério da Fazenda, Receita Federal e MPF investiga a manipulação de julgamentos de dívidas tributárias de grandes empresas no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) – órgão do Ministério da Fazenda que julga ações de contribuintes que têm débitos bilionários junto ao Fisco. Trata-se da primeira ação amparada pela Lei Anticorrupção, sancionada em março pela presidente Dilma Rousseff, que abrange os corruptores ao responsabilizar empresas por práticas ilícitas contra a administração pública.
O Grupo RBS, a Gerdau, os bancos Bradesco, Santander, Safra, Pontual e Boston, as montadoras Ford e Mitsubishi, a Braskem e a Petrobras, a Macopolo, além de gigantes de energia e telefonia como a Light, Usiminas e Telemar, entre outras, são investigados pela suspeita de pagamento de propina, via “consultorias”, a integrantes do Carf para anular multas tributárias. São investigadas fraudes praticadas entre 2005 e 2015. De acordo com o jornal O Estado de São Paulo, primeiro a ter acesso à investigação, recai sobre a RBS a suspeita de pagamento de R$ 15 milhões para anular multas pelo não pagamento de tributos superiores a R$ 150 milhões, de um total de débitos de R$ 672 milhões investigados pela Polícia Federal. “A RBS está segura de que as investigações demonstrarão que a empresa não cometeu qualquer tipo de irregularidade em suas relações com a Receita Federal. A empresa irá colaborar para a mais completa elucidação dos fatos”, afirma em nota o Grupo RBS. Também investigado pela suposta tentativa de anulação de débitos de R$ 1,2 bilhão, o Grupo Gerdau enviou comunicado à Comissão de Valores Mobiliários em que alega não ter sido comunicada por nenhuma autoridade sobre a investigação.
Os investigados – conselheiros, advogados da área tributária e servidores da Receita Federal ativos e inativos e empresários – são acusados de crimes de advocacia administrativa fazendária, tráfico de influência, corrupção passiva, corrupção ativa, associação e organização criminosa e lavagem de dinheiro. A fase preliminar da operação apurou fraudes de R$ 5,7 bilhões em 20 julgamentos fraudados entre 2005 e 2013. Outros 54 processos suspeitos são investigados e podem elevar o rombo para R$ 19,6 bilhões desviados da Receita Federal. Por envolver grandes empresas, inclusive grupos que controlam a comunicação no país, o caso tem sido tratado com restrições por grupos de comunicação e enfrenta entraves por parte do Judiciário. O caso tem paralelos com outro escândalo evitado pelos grandes jornais, o Swiss leaks (Vazamentos suíços), em que o HSBC é o atual foco de um escândalo bancário iniciado com o vazamento de dados de 106 mil clientes de 203 países que mantinham contas na Suíça, inclusive do Brasil, cuja fatia envolve evasão de divisas e sonegação no valor estimado de R$ 21 bilhões distribuídos em 5.549 contas.
PODER ECONÔMICO – Em um paralelo com a Lava-Jato, operação que investiga lavagem de dinheiro e evasão de divisas envolvendo a Petrobras, no total de R$ 2,1 bilhões, ou seja, um terço da parte comprovada da fraude da Zelotes, o procurador Frederico Paiva apelou à “necessária contribuição” da Justiça para que a investigação seja de conhecimento da sociedade.
Paiva tem afirmado que os escândalos de corrupção que não envolvem políticos são mais difíceis de ser investigados porque não despertam o interesse da sociedade e da mídia. “Quando atingem o poder econômico, não há a mesma sensibilidade”, lamenta. “É preciso que a Zelotes tenha, por parte do poder Judiciário, uma acolhida. Assim como está acontecendo em Curitiba (Lava-Jato), que todos os fatos venham à tona, com transparência”, defendeu.
Em audiência pública no dia 13 de maio na Câmara dos Deputados, o coordenador da Zelotes estranhou o silêncio da grande imprensa em relação à operação – embora partes das investigações tenham sido vazadas para a Folha, Estadão e Valor Econômico. “Curiosamente, a Zelotes não é notícia, e a chamada grande mídia não demonstra nenhum interesse em ter acesso ao processo, em cobrar providências. Como explicar à sociedade brasileira que um esquema que causou um prejuízo aos cofres públicos de R$ 19 bilhões não seja de interesse público?”, questiona o deputado gaúcho Paulo Pimenta (PT), relator da subcomissão que fiscaliza o caso no âmbito da Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara. Para Ataídes Oliveira (PSDB/TO), presidente da CPI do Carf instalada no dia 19 de maio no Senado, “esse rombo vai superar os R$ 30 bilhões”.
Foto: Luis Macedo/Agência Câmara
BURACO NEGRO – A subcomissão levantou que a dupla atuação de conselheiros do Carf, como julgadores dos processos envolvendo multas tributárias das empresas e também como lobistas dos interesses dos mesmos devedores já foi alvo de outras investigações da PF e denúncias de procuradores federais, mas os inquéritos nunca foram adiante devido a supostas interferências em alguma instância do Judiciário. Esse histórico motivou uma interpelação por parte do MPF ao juiz Ricardo Leite, da 10ª Vara Federal em Brasília, questionando sua decisão de negar, de forma reiterada, os pedidos de prisão preventiva, a continuidade das escutas telefônicas e impedir a quebra de sigilo da operação.
O Ministério Público entrou com uma representação na Corregedoria do Tribunal Regional Federal (TRF) da Primeira Região, em Brasília, contra o juiz. Os promotores argumentam que Leite seria conhecido por reter processos por longos períodos sem justificativas razoáveis e pedem que esse comportamento seja examinado pelos corregedores. O juiz será acionado ainda no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por meio de uma representação de autoria de Pimenta. O parlamentar ressaltou que Leite é titular de processos antigos contra investigados da Zelotes, que sequer foram chamados a depor nas investigações anteriores e que poderiam ser favorecidos novamente.
O promotor Frederico Paiva disse à comissão que o MPF irá apresentar à Justiça, entre junho e julho, denúncias por corrupção e lavagem de dinheiro contra os investigados na Zelotes que estão livres por decisão do juiz. Em seus pedidos de autorização para prorrogar a escuta telefônica de suspeitos, os investigadores ressaltam que há fortes indícios de que conselheiros do Carf e lobistas continuariam cobrando propinas de empresários para reduzir de forma ilícita suas dívidas tributárias. Os argumentos, no entanto, não foram suficientes e essas provas não puderam ser ajuntadas aos autos. “Foi feito o pedido de prisão de 26 pessoas e foi negado pelo poder Judiciário. Algo que não é comum.
O mais inusitado é que houve um pedido de reconsideração, argumentando sobre a necessidade das prisões para o sucesso das investigações, e foi negado de novo. Também chama a atenção que já existem fatos semelhantes envolvendo esses mesmos investigados, com denúncia do Ministério Público feita há muito tempo, mas há casos em que a Justiça nunca ouviu ninguém até hoje no processo”, desconfia Paulo Pimenta, que pediu a quebra do sigilo da operação e entrou com uma representação contra o juiz no CNJ.
O pedido de abertura de uma correição extraordinária na Vara comandada por Leite partiu da procuradora regional da República Valquíria Oliveira Quixadá Nunes, integrante da força-tarefa criada pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot. O juiz Ricardo Leite alega o sigilo dos autos para não se manifestar sobre as acusações. “As providências administrativas e judiciais em desfavor do Procurador serão tomadas no momento adequado”, adverte.
O inquérito será fracionado para agilizar os processos
Nos próximos meses serão concluídos os primeiros inquéritos sobre a Zelotes. Os resultados das investigações serão compilados em mais de um volume, medida já autorizada pelo Judiciário, devido ao volume de provas e à quantidade de réus. “Não temos como juntar 50 réus em um único inquérito”, revela o delegado da Divisão de Repressão a Crimes Fazendários da PF e coordenador da operação, Marlon Oliveira Cajado dos Santos. A estratégia visa a agilizar a instrução processual, uma cautela para evitar novas negativas ou pedidos de mais diligências por parte do Judiciário. “Aceitar ou negar as denúncias é da natureza do Judiciário. Não é anormal que o juiz tenha posições divergentes da Polícia Federal ou do Ministério Público”, contemporiza o delegado.
No dia 20 de maio, Cajado e outros dois delegados da PF, Oslaim Campos Santana, diretor de Combate ao Crime Organizado, e o coordenador-geral da Polícia Fazendária, Hugo de Barros Correia, participaram da segunda audiência pública promovida pela subcomissão. “Estamos elencando casos prioritários para trabalhar neles e, posteriormente, havendo necessidade de prosseguir com as investigações, vamos instaurar novos inquéritos, tantos quanto necessários”, disse. Ele sugeriu que o Congresso participe da discussão sobre reformulação do Carf, que vem sendo promovida no âmbito do Ministério da Fazenda, e disse que a investigação já teve o “efeito pedagógico de botar luz sobre o órgão e fechar uma torneira, por onde estavam saindo recursos em prejuízos da União”.
Foto: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados
Para o delegado, é preciso repensar a forma de composição do Conselho, por exemplo, a paridade entre representantes da Receita e contribuintes. Todos os processos que tramitam no Carf somam atualmente R$ 580 bilhões, de acordo com um levantamento feito pelo Senado. O Carf tem 360 conselheiros. As turmas que julgam os processos na primeira instância são formadas por três conselheiros da Receita Federal e três indicados pelos contribuintes. Segundo os policiais, isso facilitou o surgimento dos “anfíbios”, conselheiros que atuam como representantes da Receita e depois se afastam e voltam como representantes das empresas, fazendo uso de informações privilegiadas para exigir propina para manipular julgamentos. “Essa investigação é uma das maiores, se não a maior, de uma organização criminosa especializada em sonegação fiscal no Brasil, pelos valores e pelo modus operandi”, destaca o delegado Oslaim Santana, diretor de Combate ao Crime Organizado da PF.
RASTRO DO DINHEIRO – Ao cumprir os 41 mandados de busca e apreensão expedidos pela Justiça Federal no dia 26 de março, a PF recuperou R$ 2 milhões, US$ 9 mil e 1,5 mil euros, além de joias, carros de luxo e outros bens. Parte do dinheiro, R$ 800 mil, foi apreendida com o conselheiro do Carf Leonardo Manzan, genro de Otacílio Cartaxo, que já foi secretário da Receita e presidiu o Carf. Ao identificá-lo, a PF chegou ao nome de um auditor fiscal que tem ligações com Cartaxo há pelo menos 15 anos. Valmar Fonseca de Menezes, identificado por testemunhas como “o carregador de pasta” do ex-dirigente da Receita. Menezes é apontado nas investigações que deram origem à Zelotes como “responsável pelo desvio de bilhões de reais nos últimos anos”. Outra peça-chave nas investigações é o conselheiro Paulo Roberto Cortez, conselheiro indicado pela Confederação Nacional do Comércio (CNC) e o primeiro suspeito a manifestar interesse em um acordo de delação premiada quando de seu depoimento a policiais federais. O relatório das investigações elaborado pelo delegado Marlon Cajado indica que Cortez tem ligações com o conselheiro e auditor aposentado da Receita José Ricardo Silva, considerado um dos mentores do esquema. Cortez e a sócia de Silva, Adriana Ribeiro, têm uma empresa especializada na lavagem do dinheiro recebido das empresas pela prática do crime de advocacia administrativa.
Conselheiros anfíbios e mutantes
De acordo com o procurador Frederico Paiva, o esquema era muito bem arquitetado e segmentado em tarefas definidas, delegadas para agentes específicos dentro da organização criminosa. “Quem estava lá na ponta, desempenhando determinada ação, dificilmente conhecia quem eram os cabeças da trama”. O esquema funcionava a partir do contato de conselheiros ou seus cúmplices com as empresas devedoras para oferecer resultados favoráveis nos julgamentos de dívidas tributárias – um zelo simulado em relação ao contribuinte, detalhe usado para batizar a operação. De posse de informações sigilosas sobre processos em andamento no Carf, um mensageiro procurava as empresas com débitos tributários questionados no Conselho.
Ele oferecia os “serviços” da organização, que consistiam em extinguir os débitos sub judice no Carf em troca do pagamento de propina. Segundo Paiva, quando o empresário não acreditava na proposta, o mensageiro oferecia uma prova de existência do tráfico de influências dentro do Carf: marcava dia, hora e nome do conselheiro que iria pedir vistas de determinado processo. “Quando as informações se confirmavam, dava certeza ao “contratante” de que o serviço oferecido seria executado”. O esquema envolve conselheiros, advogados da área tributária e servidores da Receita Federal já afastados ou em atividade. Para viabilizar a lavagem do dinheiro recebido das empresas, os agentes criminosos assinavam contratos de “consultoria tributária”. “Encontramos famílias inteiras atuando como consultores”, disse o delegado federal Marlon Cajado ao descrever a forma como os “conselheiros anfíbios” atuam. As quadrilhas teriam fixado até uma tabela de preços: análise de recurso R$ 300 mil; colocar processo na pauta, R$ 200 mil; vista do processo, R$ 50 mil.
MUTANTES – O esquema de corrupção montado no Carf para livrar grandes empresas e bancos de multas e cobranças bilionárias de impostos sobrevive há pelo menos duas décadas, apesar das investidas da Polícia Federal e Ministério Público. Dois “anfíbios” investigados pela Operação Zelotes já aparecem em investigações sobre o mesmo tipo de crime nos anos 1990. Em 1994, uma multa contra a construtora OAS, no valor de R$ 1,1 bilhão, foi reduzida para R$ 25 milhões com a interferência de uma consultoria que recebeu R$ 18,35 milhões de propina e o lobby exercido por conselheiros “mutantes”. O caso da OAS envolve o então secretário da Receita Federal, Jorge Rachid, reconduzido ao cargo agora em 2015. Ele é réu em um processo de improbidade administrativa acolhido pela Justiça Federal no dia 4 de abril de 2006, acusado pelo Ministério Público de obstruir investigação realizada pela Corregedoria da Receita. O auditor da Receita Federal, Sandro Martins, suspeito de atuar na defesa da OAS, foi assessor especial de Rachid até 2003.
A assessoria da Receita Federal alega que a própria Corregedoria decidiu pelo arquivamento do caso “por total improcedência da acusação”. Em nota, a Receita destaca que “após avaliar o caso, a Advocacia-Geral da União também entendeu improcedentes as acusações do MPF, passando a defender Jorge Rachid na ação judicial, que aguarda decisão de mérito em primeira instância há mais de nove anos”. Além de Martins, outro auditor da Receita é citado no caso da OAS, Paulo Baltazar Carneiro. Ambos estavam licenciados e voltaram à ativa no órgão, reassumindo seus empregos. Eles foram alvo de uma investigação em 2002, comandada pelo procurador Guilherme Schelb. Acabaram indiciados, mas o processo parou na 12ª Vara Federal de Brasília. Apesar das acusações, Baltazar assumiria em 2005 como secretário adjunto da Receita. Martins e Carneiro agora estão entre os alvos das 24 prisões negadas pelo juiz Ricardo Leite.
Ainda em 2005, o MP ajuizaria outra ação contra os dois auditores e também contra o então secretário, Everardo Maciel. Desta vez por suspeita de fraude envolvendo a redução de dívida tributária de outro cliente deles junto ao Carf, a Fiat. A ação abrange o representante da multinacional no Brasil, Giovanni Razzelli. Martins, Carneiro e Maciel são acusados de articular um esquema envolvendo o Congresso Nacional para livrar a Fiat de uma multa de R$ 600 milhões. O débito datava de 1999, referente ao não recolhimento de contribuição social sobre o lucro líquido. Desta vez, a fraude envolve uma proposta de medida provisória enviada por Everardo Maciel ao ministro da Fazenda de Fernando Henrique, Pedro Malan. Editada com o número 1807/99, a MP tem um artigo que isenta os contribuintes que ajuizaram processo judicial contra a cobrança até dezembro de 1998. Em 2000, um ex-assessor de Maciel atuaria como lobista de uma grande universidade privada do Rio Grande do Sul para reduzir dívidas tributárias.