JUSTIÇA

A mais organizada facção criminosa se espalha pelo país

O Primeiro Comando da Capital está usando a ausência do Estado e as falhas do sistema prisional para expandir sua atuação em todo o território nacional
Por Flávio Ilha* / Publicado em 13 de setembro de 2017
Pátio do Presidio Central de Porto Alegre

Foto: Sidinei Brzurska/Vara de Execuções penais/ Divulgação

Apenados tomam sol no Pátio do Presidio Central de Porto Alegre

Foto: Sidinei Brzurska/Vara de Execuções penais/ Divulgação

O Primeiro Comando da Capital (PCC), a facção criminosa mais organizada do país, está usando o falido sistema penitenciário brasileiro como ferramenta para se transformar num grupo de ação política e ideológica transnacional. Numeroso, articulado e, sobretudo, ambicioso, o PCC já domina 90% das unidades prisionais paulistas, tem ramificações em países como Paraguai e Bolívia e estabeleceu como meta estender sua rede de colaboração por todas as regiões brasileiras. Além disso, já tem influência direta nos indicadores de criminalidade de São Paulo ao controlar o mercado de drogas e estabelecer uma espécie de “instância de regulação” no mundo do tráfico, onde a maioria dos conflitos não precisam mais ser resolvidos à bala

O homicídio deixou de ser uma prática corriqueira, especialmente aquele decorrente dos desacertos dentro do mercado da droga, explica a pesquisadora Camila Caldeira, professora da Universidade do ABC e integrante do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo. O grupo, que completou 24 anos de atuação no final de agosto, aposta numa estratégia que mistura violência e ideologia para consolidar sua concentração de poder, mas não está sozinho: o Comando Vermelho (CV), facção surgida no Rio de Janeiro, mais antiga, mas menos organizada, passou a polarizar com o PCC nas regiões Norte e Nordeste do país, em busca da mesma hegemonia almejada pelos paulistas. Antigos aliados, os dois grupos são responsáveis pela explosão nos índices de homicídios e pela multiplicação de facções criminosas menos importantes, que agem como filiais, ou franquias, dos grupos hegemônicos.

A violência aparece como mensagem pública de terror, típicas da máfia. Um exemplo: três agentes penitenciários foram mortos desde o dia 2 de setembro do ano passado como represália pela aplicação do “regime disciplinar diferenciado” contra as lideranças do PCC nos quatro presídios federais do país, considerados berço do moderno crime organizado brasileiro. As ordens partiram das próprias cadeias. E o discurso ideológico se instaura como poder de adesão entre os “irmanados”: PCC e Comando Vermelho usam a ausência do Estado nos presídios, a política de superencarceramento e as péssimas condições de vida no sistema como forma de catalisar descontentamentos que, em linha direta, vão gerar mais violência.

“O PCC elaborou um discurso político-ideológico que gira em torno da identificação do Estado como opressor. Ele conclama os presos a se unirem como forma de contraponto a esse Estado opressor, que é inimigo da população carcerária. É um discurso que está presente no nascimento do PCC, em agosto de 1993 no Anexo da Casa de Custódia de Taubaté –conhecido como Piranhão – e que perdura até hoje, com algumas variações: a ideia de oprimidos contra opressores, ou seja, de presidiários contra um Estado identificado pela má administração prisional e pela Polícia Militar”, relata a pesquisadora, que há dez anos estuda com profundidade o grupo.

Segundo a professora, a base de sustentação do PCC atualmente vai muito além das ações violentas de dominação implementadas em sua primeira fase de existência – entre 1993 e 2001, quando empreendeu a maior rebelião carcerária do país até então, com 29 unidades sublevadas – e do sucesso na manutenção econômica através do tráfico. “A população carcerária é majoritariamente composta de pessoas para as quais o Estado só aparece na sua dimensão opressora. Gente que mora na favela, na periferia, onde a PM entra e prende em flagrante, invade a casa, não tem esgoto, escola. É uma população submetida historicamente a uma relação com o Estado que se mostra apenas na face da opressão. É, também, uma população que não conhece o Estado de bem-estar social, garantidor de direitos”, completa.

Expansão à força

Em janeiro de 2017, após três dias da rebelião comandada pelo PCC, 26 presos da facção rival foram decapitados no Presídio de Alcaçuz, Rio Grande do Norte

Foto: Fotos Públicas

Em janeiro de 2017, após três dias da rebelião comandada pelo PCC, 26 presos da facção rival foram decapitados no Presídio de Alcaçuz, Rio Grande do Norte

Foto: Fotos Públicas

Paralelamente, a política de expansão tem deixado um rastro de sangue pelas regiões onde o PCC disputa a hegemonia já obtida em São Paulo com facções locais. No Nordeste, dados do Mapa da Violência apontam que os crimes violentos cresceram este ano em todos os estados onde a guerra pelo controle do tráfico é uma realidade: 25% no Ceará, 22% no Rio Grande do Norte e 11% e Alagoas. O professor Ivênio Hermes, integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, também destaca a ausência do Estado como motor para a hegemonia de grupos criminosos organizados. “O Estado falhou e falha diariamente em prover um serviço de qualidade para os apenados. O resultado dessa ausência está diretamente vinculado ao crescimento das facções e à multiplicação de grupos interessados no mercado da droga, a ponto de provocar um colapso nas políticas ostensivas de combate ao tráfico e à violência”, afirma.

O juiz da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre, Sidinei Brzuska, vai na mesma direção. Ele usa o exemplo da novíssima Penitenciária de Canoas I (Pecan I), inaugurada em março de 2016 e que obedece aos padrões de tratamento humanitário recomendado pelos órgãos internacionais, para concluir que há uma relação direta entre criminalidade e cumprimento de pena. “Um levantamento recente aponta que já passaram pela Pecan I 1.215 presos, dos quais 101 acabaram voltando ao sistema prisional. A taxa de retorno, de 8%, é quase dez vezes menor que em outras cadeias, onde a reincidência beira os 70%. Naturalmente que um preso, nessas condições, custa mais caro para o Estado. Mas é muito mais barato, sem dúvida, para a sociedade”, argumenta o juiz.

No Rio Grande do Sul, a presença do PCC já é visível – embora o sistema prisional não tenha, ainda, células orgânicas da organização. O acordo para atuar no estado, segundo fontes policiais ouvidas pela reportagem do Extra Classe, passa pelo grupo criminoso Bala na Cara – que se notabilizou por usar métodos extremamente violentos nas suas abordagens, incluindo decapitações e esquartejamento de rivais. Comandados da Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc) por José Dalvani Nunes Rodrigues, o Minhoca, até março deste ano, os Bala na Cara, segundo essas fontes policiais, têm estabelecido há pelo menos três anos acordos “pontuais e informais” com o PCC, especialmente para o tráfico de armas e de drogas vindas do Paraguai. É uma negociação sem guerra e sem sangue entre os dois grupos. Por enquanto.

Minhoca foi preso em agosto de 2016 na cidade paraguaia de Ciudad Del Este. Em março passado, foi transferido para a Penitenciária Federal de Campo Grande (MS). “Foragido do sistema, o criminoso tinha seis mandados de prisão e estava com bases formais de operação no Paraguai, o que indica uma sofisticação da atividade. Não temos ainda as evidências dos vínculos formais dos Bala na Cara com o PCC, mas a presença de uma liderança como essa no mercado paraguaio certamente vinha estimulando os negócios entre as quadrilhas”, informa o delegado Arthur Raldi, do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic).

O delegado Felipe Bringhenti, do Gabinete de Inteligência e Assuntos Estratégicos (GEI) da Secretaria de Segurança Pública, diz que os dois grupos estão bastante articulados e que cresceram exponencialmente pelos métodos violentos de ação, que ficaram a cargo do grupo criminoso gaúcho. “As duas facções arregimentaram muitos soldados em curto espaço de tempo devido à recompensa que a violência extrema propicia. É um poder paralelo, uma tentação para os jovens. Em alguns casos, a adesão vem por pagamento em dinheiro mesmo”, afirma o delegado. Bringhenti evita revelar dados estratégicos dos grupos, como número de “sócios” ou “irmãos”, mas informa que as duas facções dominam amplamente o tráfico na região Metropolitana e em várias cidades do interior do estado.

O CV, ao contrário do nível de organização do PCC, tem uma atuação mais esparsa mas, nem por isso, menos efetiva. Em Porto Alegre, conseguiu arregimentar vários grupos rivais em um objetivo comum: neutralizar a influência da facção paulista no mercado gaúcho da droga. Mesmo que não seja um mercado preferencial, o Rio Grande do Sul é estratégico devido à região Metropolitana. Os Anti-Bala, cujo objetivo está explícito no nome, conseguiu reunir bandos tradicionais, como os Brasas, com grupos novos e ousados, caso do V7, que aterroriza a zona sul de Porto Alegre com crimes cada vez mais violentos. “É uma guerra local mas com interesses nacionais: quem vencer vai reinar sozinho no estado”, diz Bringhenti.

ENTREVISTA: CAMILA CALDEIRA

“O sistema federal é o comitê central do crime”

Camila Caldeira , da Universidade do ABC é pesquisadora de violência urbana

Foto: Anne Coutinho/Divulgação

Camila Caldeira , da Universidade do ABC é pesquisadora de violência urbana

Foto: Anne Coutinho/Divulgação

Professora da Universidade Federal do ABC e pesquisadora da violência urbana há dez anos, Camila Caldeira esteve em Porto Alegre em agosto para participar de uma audiência pública na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa. Depois do encontro, deu esta entrevista exclusiva ao Extra Classe.

 EC – Quais seriam os principais gatilhos para a formação e fortalecimento das organizações criminosas?
Caldeira – Há questões que são centrais para compreender os processos políticos e jurídicos que conformam essa situação. O excesso de presos provisórios, que chega a ser absurdo, atingindo 70% em alguns estados, por exemplo. Uma situação caótica no que diz respeito à atuação do Judiciário. Temos uma “política de segurança” que se baseia no aumento da Polícia Militar e da prisão em flagrante. Se a gente for ver a população que está presa hoje, a grande maioria foi presa através do mecanismo do flagrante, ou seja, não foi alvo de uma investigação complexa. São pessoas que estavam na rua, foram abordadas pela PM. O flagrante é a porta de entrada majoritária, quase que única, para o sistema de justiça criminal. E quem é preso em flagrante? O criminoso do varejo, sem articulação, sem condições de se defender. A vinculação do aumento no encarceramento com o fortalecimento das facções não é casual.

EC – O Rio Grande do Sul terá um presídio federal, muito próximo a outros estabelecimentos penitenciários estaduais. Isso ajuda ou atrapalha?
Caldeira – O que a gente vê, em relação ao sistema federal, é que muitas vezes o preso que vai para lá não tem liderança nenhuma, ele só é um preso que traz problema. Então, esse preso vai para o federal e, depois de um tempo, terá que voltar para o estado de origem. Só que quando ele volta, volta empoderado, tendo feito contatos, trocado experiências com presos mais experientes. Ou seja, o Estado ajuda a produzir essa liderança. Por exemplo: a Família do Norte é uma facção que foi criada (entre 2007 e 2009) depois que alguns presos do Amazonas foram mandados para um presídio federal. Tiveram contatos com o Comando Vermelho, com o PCC, voltaram com a estrutura pensada, com o modelo, tudo pronto. Uma liderança do PCC disse algo que achei interessante: o sistema federal é o comitê central do crime. Aonde mais os presos do Amazonas, do Rio Grande do Sul, do Mato Grosso iriam se encontrar? De lá saem as alianças e de lá saem as rupturas.

EC – Tem solução?
Caldeira – O que eu vi nesses 15, 16 anos de trabalho foi um fechamento paulatino do sistema. E acho que isso reflete muito tanto esse fenômeno das facções quanto a própria forma de o Estado lidar com o preso. Ao invés de entrar lá, de fazer a gestão dos presos, o Estado foi se retirando. Há um abismo radical, cada vez maior, entre sociedade, administração prisional e população carcerária. As grandes crises de segurança que se tem hoje se referem diretamente ao sistema prisional. Então, acho que esse é o grande dilema que o modelo de prisão gerou. Não é mais só um lixo que está lá, jogado (o preso) lá. Esse lixo se organizou e transbordou, e agora está voltando. Acho que é necessário que a gente olhe para os efeitos das opções políticas que vêm sendo tomadas nos últimos 20, 30 anos, e que geraram a situação atual da violência no Brasil. Está dando certo? Não. Se não está, por que a gente continua insistindo nas mesmas propostas? É por aí.

Facções influentes nacionalmente

PCC – Foi fundado em 31 de agosto de 1993 no Anexo da Casa de Custódia de Taubaté (SP). Foi o primeiro grupo criminoso a estabelecer um estatuto e uma hierarquia rígida de comando. Tem entre seus líderes Marcos Camacho, conhecido como Marcola, que cumpre pena no Centro de Readaptação Penitenciária de Presidente Venceslau (SP). Também são líderes Fabiano Alves de Souza, o Paca, foragido, Gegê do Mangue, e Edilson Borges Nogueira, o Birosca, ambos presos em Presidente Venceslau. Aliados: Amigos dos Amigos (ADA), do RJ, Terceiro Comando Puro (TCP), do RJ, e Bala na Cara (RS).

Forças de segurança ocupam o complexo da Maré, no Rio de Janeiro

Foto: Salvador Scofano/GERJ

Forças de segurança ocupam o complexo da Maré, no Rio de Janeiro

Foto: Salvador Scofano/GERJ

 CV – Criado em 1979 na extinta prisão Cândido Mendes, na Ilha Grande (RJ), por presos comuns e presos políticos que cumpriam pena no local. Foi o primeiro grupo criminoso a instituir a “caixinha” como forma de sustentar os detentos. Tem entre seus líderes Fernandinho Beira-Mar, que cumpre pena na Penitenciária Federal de Mossoró (RN), Elias Maluco, que está preso na Penitenciária Federal de Campo Grande (MS), e Marcinho VP, detento da Penitenciária Federal de Catanduvas (PR). Aliados: Família do Norte (FDN), do AM, Sociedade do Crime (SDC), do RN, Primeiro Grupo Catarinense (PGC), de SC, Okaida (OKD), da PB, Comando da Paz (CP), da BA, Anti-Bala, no RS, e Bonde dos 40, no MA.

  • Colaborou Anne Coutinho

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