As várias mortes de Cancellier
Foto: UFSC/ Divulgação
No próximo dia 26 completam-se cinco meses da transferência e promoção da delegada Erika Mialik Marena para a Superintendência da Polícia Federal em Sergipe. Com passagens pela Lava Jato, sua última grande operação, a Ouvidos Moucos, continua repercutindo. Dessa vez, após o suicídio do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), dois professores da UFSC foram intimados pela PF por criticar a ação da delegada.
O professor de jornalismo e chefe de gabinete da reitoria da universidade, Aureo Mafra Moraes, foi gravado por estudantes para a TV da Universidade e lamentou a morte de Cancellier. Apesar de não ter feito referências a Erika e à própria PF, foi chamado para prestar depoimento porque atrás dele o vídeo registrou cartazes criticando a Ouvidos Moucos, com fotos dos agentes públicos envolvidos. Já o professor Mario de Souza Almeida, teve que dar explicações sobre o discurso que fez em fevereiro na formatura de uma turma de Ciência da Administração em que foi paraninfo e questionou a prisão de professores sem acusação e direito de defesa. “O professor Cancellier não conseguiu suportar tanta injustiça, tanta vergonha e cometeu suicídio em outubro”, ressaltou Almeida no seu discurso aos formandos. “Me pediram para ficar quieto, não tocar mais no assunto e é o que vou fazer. Para bom entendedor, meia palavra basta”, disse em entrevista à Folha de São Paulo o professor do departamento de Administração da UFSC.
Foto: PF/ Divulgação
Perseguições e teoria do domínio do fato
Os inquéritos que estavam em andamento sem maiores rumores tornaram-se públicos devido à coluna da jornalista Mônica Bergamo, da Folha, e iniciaram praticamente após um parecer feito pelo delegado Luiz Carlos Korff, que recomendou o arquivamento de uma sindicância contra a delegada Erika Marena. Na época, Korff também era responsável por assessorar Erika e os outros delegados de Santa Catarina nas relações com a imprensa. Além de pedir e conseguir que o professor Moraes fosse investigado pela PF por calúnia e difamação, a delegada Marena ainda sugeriu que o caso também seja levado à Advogacia Geral da União para avaliar se o professor da UFSC não teria cometido crime de improbidade, o que é passível de exoneração.
Um agente da PF ouvido pelo Extra Classe em anonimato afirma que o episódio é motivo de vergonha. Ele se diz envergonhado com a conduta da delegada e da cúpula da PF. “Só posso falar assim porque infelizmente eu estou entre a minoria da corporação”, disse. Apesar de não estar na jurisdição do inquérito que levou à prisão do reitor da UFSC, o policial acredita que que, sem provas, “mais uma vez veremos ser utilizada a teoria do domínio do fato”. Ele se refere à recente manifestação do delegado que substituiu Erika na Ouvidos Moucos, Nelson Napp. Em seu relatório final, Napp indiciou 23 pessoas e disse que Cancellier só não está nele porque morreu. Em sua argumentação, Napp, afirmou que o reitor teria nomeado ou mantido em posições de destaque professores que mantinham uma suposta política de desvios de verbas. Como nas 817 páginas do relatório final da PF não existem provas de que Cancellier teria sido favorecido nos supostos desvios, para o policial ouvido em condição de anonimato “vão matar mais uma vez o reitor. Dessa vez em nome do corporativismo”.
Para o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, o ministro da Segurança Pública Raul Jungmann deve se pronunciar a respeito do que está acontecendo em Santa Catarina. “Eles (PF) não têm nenhum cuidado com a honra alheia e são tão cuidadosos quando criticam os seus”, acusou o ministro, sugerindo que Jungmann deixaria um bom legado caso assumisse a tarefa de “instalar o Estado de Direito na PF”. Outros ministros do STF também manifestaram inconformidade com o ocorrido. Os questionamentos do STF sugerem que a PF estaria agindo para sufocar críticas de forma truculenta, o que levou o ministério da Segurança Pública a pedir maiores esclarecimentos aos seus subordinados.
Acusação, prisão e morte
Foto: Pipo Quint/Agecom/UFSC
O reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier, morreu no dia 2 de outubro de 2017, segundo laudos da Polícia Civil, ao pular no vão livre de um shopping na capital catarinense. Definido por amigos e adversários como um homem inteligente, afável e conciliador, Cancellier era reitor da UFSC desde maio de 2016. Advogado, 59 anos, mestre e doutor em Direito, vinha sendo acusado pela Polícia Federal de tentar obstruir as investigações da Operação Ouvidos Moucos, deflagrada em 2014 para apurar supostos desvios em um programa de ensino a distância, oriundos de gestões anteriores.
A juíza Janaina Cassol Machado, da 1ª Vara Criminal da Justiça Federal de Santa Catarina, em despacho de 28 de agosto, autorizou a prisão de sete acusados, entre eles Cancellier, cinco conduções coercitivas e diversas buscas e apreensões. A ação, comandada pela delegada Erika Marena em 14 de setembro, mobilizou mais de cem policiais de diversas regiões do país. Dois dias antes das prisões, a juíza titular pediu licença por motivos de saúde e foi substituída por colega Marjôrie Freiberger. No dia seguinte ao cumprimento dos mandados, a substituta determinou a soltura dos presos. Em entrevista ao jornalista Carlos Damião, de Florianópolis, Cancellier desabafou após ser libertado: “Foi uma coisa da qual nunca vou me recuperar”. O reitor estava desolado, fora despido para uma revista e humilhado na sede da PF antes de ser transferido para o Presídio da Agronômica. “Com endereço conhecido, disse que sempre esteve à disposição da Justiça e da PF. Lembrou que nenhuma acusação de desvio de recursos pesava sobre ele, mas de gestões anteriores, desde 2006”, relatou o jornalista. No relatório final de 817 páginas da PF, que vazou em 25 de abril, não existem provas contra Cancellier.