JUSTIÇA

Brasil concentra 40% dos feminicídios do continente

Das 2.795 mulheres assassinadas em 2017 em razão de sua identidade de gênero na América Latina, 1.133 eram brasileiras. Leis não amparam negras e indígenas
Da Redação* / Publicado em 16 de novembro de 2018
Coletivos femininos em ato contra a violência de gênero e Movimento 8M, no dia 8 de março, em Porto Alegre

Foto: Carol Ferraz / Mídia NINJA

Coletivos femininos em ato contra a violência de gênero e Movimento 8M, no dia 8 de março, em Porto Alegre

Foto: Carol Ferraz / Mídia NINJA

A cada dez feminicídios cometidos em 23 países da América Latina e Caribe em 2017, quatro ocorreram no Brasil. Segundo informações da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU), ao menos 2.795 mulheres foram assassinadas na região, no ano passado, em razão de sua identidade de gênero. Desse total, 1.133 foram registrados no Brasil.

O levantamento também ranqueia os países a partir de um cálculo de proporção. Nessa perspectiva, quem lidera a lista é El Salvador, que apresenta uma taxa de 10,2 ocorrências a cada 100 mil mulheres, destacada pela Cepal como “sem paralelo” na comparação com o índice dos demais países da região.

Em seguida aparecem Honduras (5,8), Guatemala (2,6) e República Dominicana (2,2) e, nas últimas posições, exibindo as menores taxas, Panamá (0,9), Venezuela (0,8) – também com uma base de 2016, e Peru (0,7). Colômbia (0,6) e Chile (0,5) também apresentam índices baixos, mas têm uma peculiaridade, que é o fato de contabilizarem somente os casos de feminicídio perpetrados por parceiros ou ex-parceiros das vítimas, chamado de feminicídio íntimo.

Totalizando um índice de 1,1 feminicídios a cada 100 mil mulheres, o Brasil encontra-se empatado com a Argentina e a Costa Rica.

TIPIFICAÇÃO – Ao divulgar relatório na última quinta-feira, 15, a Cepal ressaltou que a gravidade do feminicídio já fez com que 18 países latino-americanos tenham modificado suas leis para que o crime seja assim tipificado, o que implica no agravamento da pena.

Os países que já promoveram essa alteração em sua legislação foram os seguintes: Costa Rica (2007), Guatemala (2008), Chile (2010), El Salvador (2010), Argentina, México (2012), Nicarágua (2012), Bolívia (2013), Honduras (2013), Panamá (2013), Peru (2013), Equador (2014), República Dominicana (2014), Venezuela (2014), Paraguai (2016) e Uruguai (2017). No Brasil, a caracterização desse tipo de crime foi detalhada em 2015, com a Lei 13.104, que classificou o feminicídio como crime hediondo.

Veiculado a poucos dias do Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher, o comunicado da Cepal também assinala como um dos principais desafios para se abordar corretamente o tema a compreensão de que todas as formas de violência que afetam as mulheres estão determinadas, para além de sua condição sexual e de gênero, por diferenças econômicas, etárias, raciais, culturais, de religião e de outros tipos.

Na avaliação da comissão, esse discernimento permitiria que as políticas públicas considerassem a diversidade das mulheres e as diversas formas de violência direcionada a essa parcela da população.

Segundo o Instituto Patrícia Galvão, as diretrizes que norteiam as classificações aplicadas na América Latina para se tratar de feminicídio abarcam a diversidade de contextos dessas mortes. Embora distintas, as 13 linhas revelam que o desprezo ou a discriminação da vítima devido à sua “condição de mulher” são componentes constantes em todas ocorrências.

São relacionados, por exemplo, além do feminicídio íntimo, o feminicídio sexual sistêmico, em que a vítima também é sequestrada e estuprada, e o feminicídio lesbofóbico ou bifóbico, configurado quando a vítima é bissexual ou lésbica e é assassinada porque o agressor entende que deve puni-la por sua orientação sexual.

Políticas universais não amparam mulheres negras e indígenas

A pesquisadora Jackeline Aparecida Romio identificou três tipos de feminicídio: sexual, doméstico e reprodutivo

Foto: Agência Câmara/ Divulgação

A pesquisadora Jackeline Aparecida Romio identificou três tipos de feminicídio: sexual, doméstico e reprodutivo

Foto: Agência Câmara/ Divulgação

O feminicídio está crescendo entre as mulheres negras e indígenas, embora esteja diminuindo entre as mulheres brancas. Entre os dois primeiros grupos, o índice do crime chega a ser o dobro do que entre as mulheres brancas. O alerta foi feito pela doutora em demografia pelo Instituto de Filosofia e Ciência Humanas da Universidade Estadual de Campinas, Jackeline Aparecida Romio. Ela participou de debate na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Câmara dos Deputados No início de novembro sobre a ocorrência de feminicídios no país. Segundo a pesquisadora, os dados significam que as mulheres negras e indígenas não estão sendo atingidas pelas políticas universais e precisam de políticas públicas específicas.

“Talvez vocês aqui possam pensar em políticas de segurança e de saúde pública que sejam específicas e direcionadas para mulheres negras e indígenas para corrigir essa tendência de queda só para mulheres brancas, que talvez sejam melhor atendidas nas delegacias, talvez tenham todo um serviço de apoio e assistência diferenciados, talvez sejam até mais contempladas pelas campanhas de violência contra a mulher”, disse.

Lei aprovada pelo Congresso em 2015 (13.104) alterou o Código Penal (Decreto-Lei 2.848/40) para qualificar o feminicídio como um crime contra a mulher tendo como razão simplesmente a sua condição do sexo feminino. A lei inclui entre essas razões a violência doméstica e familiar; e o menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Pela lei, esses crimes são considerados hediondos e têm pena maior do que o homicídio comum.

A doutora acrescenta que em muitos feminicídios há mutilação de corpos – o que demonstraria o ódio contra a mulher. Além do feminicídio sexual (resultado de violência sexual) e do doméstico (resultado de violência doméstica), ela considera que existe o feminicídio reprodutivo – que seriam as mortes indiretas de mulheres causadas pelo aborto. “Essas mortes devem ser entendidas como feminicídio pelo grau epidemiológico em que têm ocorrido no Brasil”, avaliou.

A deputada Carmen Zanotto (PPS-SC) afirmou que é preciso investigar as causas de mortalidade materna no Brasil e por que as mulheres negras morrem mais do que as brancas. Segundo ela, as negras sofrem racismo institucional, sendo o tempo dedicado nas instituições de saúde brasileiras às mulheres negras inferior ao tempo dedicado às mulheres brancas nas mesmas instituições.

“Por que mulher negra tem que morrer mais do que mulher branca se tem a mesma escolaridade e a distância do posto de saúde é a mesma e teve o mesmo número de consultas no pré-natal?”, questionou.

SUBNOTIFICAÇÃO – Jackeline acredita que é importante que o feminicídio tenha sido tipificado em lei, mas ressalta que ainda é preciso trabalhar para que a lei seja de fato aplicada. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no último ano, 4.606 mulheres foram assassinadas, sendo que apenas 621 casos foram notificados como feminicídio. A pesquisadora destaca a alta taxa de mortalidade entre mulheres de 15 a 49 anos. Nas mulheres dessa faixa etária, o feminicídio seria a segunda causa de morte.

Já a deputada Zenaide Maia (PHS-RN) acredita que é preciso um trabalho de educação para coibir o feminicídio, já que a maior parte desses crimes ocorre no ambiente familiar. Para Jackeline Romio, o governo deveria implementar nos currículos escolares o ensino sobre a violência por questões de gênero.

*Com Agência Brasil e Agência Câmara.

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