JUSTIÇA

Moro: analfabetismo científico e jogos de poder

Para o cientista social, especialista em segurança pública, Charles Kieling, o pacote anticrime do juiz Sérgio Moro “é uma caça às bruxas sem precedentes"
Por Tom Belmonte / Publicado em 14 de março de 2019
“Moro abre um precedente para o próprio crime dominar o cenário político, o que já acontece com alguns estados, onde alguns políticos são eleitos com o capital e com a autorização dos grupos criminosos”

Foto: Igor Sperotto

“Moro abre um precedente para o próprio crime dominar o cenário político, o que já acontece com alguns estados, onde alguns políticos são eleitos com o capital e com a autorização dos grupos criminosos”

Foto: Igor Sperotto

Enviado ao Congresso em fevereiro, o pacote da Segurança Pública do ministro da Justiça e Segurança, Sérgio Moro, tem a marca da polêmica e da contradição. A começar pela abordagem pueril aos problemas da segurança pública ao apostar no encarceramento e na oficialização dos autos de resistência – licença para policiais matarem em serviço –, além do recuo em relação à tipificação do crime de Caixa 2, que motivou o fatiamento do projeto na hora de enviar à apreciação dos deputados. Para o cientista social, especialista em segurança pública e professor da Universidade Feevale, Charles Kieling, 49 anos, o pacote anticrime do juiz Sérgio Moro “é uma caça às bruxas sem precedentes na história brasileira e não resolverá o problema da criminalidade”. Legaliza as facções e milícias, o que levará o país a “conviver com o crime e o caos jurídico e social”. E afirma que a licença para matar sempre foi o desejo das polícias. Kieling, que têm quase três décadas dedicadas a pesquisas e processos no âmbito da segurança pública, legislação policial-militar, prisões, organizações, políticas e gestão pública, segurança privada, empreendedorismo e riscos corporativos, enquadra o ex-juiz e agora ministro como um autoritário, em busca de visibilidade e que induz ao erro para fazer valer o seu jogo de poder. “Moro é um analfabeto científico, pois escapa das questões basilares da ciência jurídica, que lida com o fato”, define Kieling nesta entrevista.

Extra Classe – Em linhas gerais, qual a sua opinião sobre o pacote anticrime do ministro Sérgio Moro?
Charles Kieling – Não vai de maneira alguma resolver o problema da criminalidade, porque na perspectiva das ciências sociais, quando analisamos as leis, há a questão de como promover as punições para regular a disciplina e o comportamento humano. Isso é da história da humanidade. Nunca se conseguiu fazer uma lei para reprimir, limitar, mitigar a questão da violência. Então o que ele traz de anticrime é como se estivesse anulando tudo que já foi desenvolvido ao longo da história da humanidade. Como se fosse o primeiro a propor.

EC – O que o senhor identifica como mais grave?
Kieling – Uma extrema falta – e eu quero ser bem delicado nessa questão – de ciência básica. Ele é um analfabeto, e não só ele, pois isso é uma questão da nossa educação em geral no país, um analfabeto científico. Escapa das questões basilares de uma ciência, em especial da ciência jurídica, que lida com o fato. A hipótese, em ciências, é apenas uma ideia colocada. Ela não lida com o fato, a evidência. Ela nos indica algo pra trabalhar em decorrência da evidência.

EC – Moro age de forma deliberada ou por falta de conhecimento?
Kieling – A própria pessoa dele indica que ele é um autoritário, uma pessoa que induz, e isso está bem claro no texto. Ele induz ao erro o outro. Traz muito forte no texto a questão da teoria dos jogos (o estudo das tomadas de decisões entre indivíduos quando o resultado de cada um depende das decisões dos outros, numa interdependência similar a um jogo). Inclusive, quando aborda num dos pontos a barganha com o criminoso, ele está trazendo à tona a teoria dos jogos. Ou seja, o juiz deixa de ser imparcial, assume uma postura que deixa de lado os fatos, as evidências e passa a jogar com a interpretação.

EC – Qual é a motivação de Moro?
Kieling – Ele perde a sua autonomia em termos de neutralidade e assume uma postura no campo de batalha, assume um dos lados. E é isso que ele faz. E quando um desses lados não é muito visível e tal, fica mais fácil para ele, porque ele ganha o destaque. E ao ganhar esse destaque aí entra a personalidade, de novo, de uma pessoa que se acha empoderada pela mídia. Pelas questões que pontua ele se torna uma espécie de herói. Só que na verdade vira um anti-herói. Como um Dom Quixote. Acredita que está indo em direção a uma Divineia da vida, mas no fim está querendo simplesmente combater o avanço da tecnologia, o avanço do conhecimento. Atacar moinhos de vento.

EC – E dentro dessa perspectiva, o que o juiz Moro trouxe ao país?
Kieling – Quem prejudicou a economia brasileira foi ele. Na medida em que não colocou interventores nas empresas estatais, condenou o país à quebradeira financeira e econômica. E gerou uma onda de desemprego com uma proposta de moralização. Porém, a moralização que Moro prega é uma moral cega, de acordo com o Zygmunt Baumann. É apenas a moral que ele pensa, que ele imagina que possa ser colocada na sociedade. E ele se aproveita disso porque tem a mídia ao seu lado e faz parte da justiça. Para a sociedade, isso é um símbolo de autoridade e de confiança.

EC – E esse é o grande problema, uma falha primária?
Kieling – Sim, é uma falha primária. Não dá pra entender como um juiz … quer dizer, só se entende que um juiz faz isso quando ele não tem conhecimento de ciência básica. Se ele tivesse conhecimento básico não cometeria esse erro primário. É como chegar na Matemática e não saber fazer as contas básicas.

EC – E o pacote está de fato abrindo o precedente da pena capital no Brasil de forma sumária?
Kieling – De fato, ele abre essa licença para matar e autoriza a execução sumária, na medida que estabelece que o agente pode ser julgado, mas cabe ao juiz dentro da sua visão e proposta assumir uma postura dentro da teoria dos jogos e dizer “não, o policial agiu com medo, então ele agiu em legítima defesa”. Também o conceito de legítima defesa está equivocado nesta posição.

EC – Ou seja, “cada cabeça uma sentença” para quem estiver julgando?
Kieling – E que mostra a falta de uma ciência básica, de conhecer as realidades da criminalidade e das populações empobrecidas. Porque boa parte do pessoal que anda armado numa vila é adolescente, pré-adolescente. Abre o precedente para o policial simplesmente executar. Temos ene desses casos em que o policial matou o jovem porque ele estava armado, mas não representava perigo para o policial. Não representava a grave ameaça. Em Porto Alegre tivemos um caso na frente de um hospital onde os policiais simplesmente executaram. Inclusive um dos indivíduos rastejou para a calçada sem arma nenhuma, sem demonstrar ameaça, e o policial aparece executando. Moro está abrindo para esse precedente de execução sumária.

"Existe um círculo vicioso, em que a iniciativa do crime continua sendo um dos principais movimentadores do sistema carcerário e de segurança"

Foto: Marcelo Camargo/ ABr

“Existe um círculo vicioso, em que a iniciativa do crime continua sendo um dos principais movimentadores do sistema carcerário e de segurança”

Foto: Marcelo Camargo/ ABr

EC – E como isso repercute dentro das instituições de segurança? O policial anseia mesmo por essa licença para matar?
Kieling – Isso é sensível, é um assunto muito sensível para nós que trabalhamos nesse campo. Porque é tudo que o policial quer. Essa é a questão. Ele quer essa licença pra matar. Ele já sabe que tem isso. Não é por nada que em alguns casos temos a questão evidente do plantio de armas de fogo para justificar determinada ação policial que resultou em morte do criminoso. E isso abre um precedente maior e aí voltamos à questão da interpretação, não mais dos fatos. Basta o policial informar “ele estava armado, me apontou” e falar a história, porque ninguém estava lá vendo. O que vale é sempre a opinião do policial. E eles têm fé pública, o que ele disser e como dizer é fé pública. Você acaba criando todo um arcabouço de interpretações, longe das evidências, que levam o país para o caos jurídico. E mais que isso, pois no momento que temos o caos jurídico, isso repercute no caos social. A extremidade desse caos social está nas comunidades que serão atacadas pelos policiais, que serão vitimadas pelos policiais.

EC – E na outra ponta, qual o reflexo desse projeto para quem está no crime?
Kieling – Não tem uma repercussão no sentido de debelar a criminalidade. Bem pelo contrário. Eles (os criminosos) vão se armar e vão se armar mais ainda. E vão se especializar cada vez mais. O que vejo como precedente é que esse processo do Moro está abrindo caminho para processos de milícias muito bem preparadas do mundo. Na medida em que a Al Qaeda começou a ser atacada pelos Estados Unidos, numa proposta de limitar ações, de fazer um ataque mais duro e tentar cercá-la, surgiu o Estado Islâmico. Muito mais empoderado, mais forte e com maior penetração no mundo, e não apenas na região do Oriente Médio. E com pessoas com conhecimento de pós-graduação, mestrado, doutorado, com uma força muito maior. E o que se enxerga à posteriori? Que em algum momento surgirão grupos muito bem armados e muito especializados.

EC – E para onde isso nos leva?
Kieling – É perigoso para a sociedade. É o próprio Estado organizando o crime. O próprio Estado quase dando um CNPJ para o crime, pois, na medida que ele traz para a lei, entre aspas, o nome de algumas organizações, ele dá esse CNPJ. Na questão da competição de mercado e tudo mais. Outra organização que vier e tentar se estruturar nesse cenário vai precisar de um CNPJ muito mais forte. E daí nós não conseguiremos mais voltar atrás nesse processo. Então, o que percebo nessa perspectiva é essa falta de ciência, onde ele começa a, de fato, organizar o crime. Pois, primeiramente, o crime não é organizado. Quem organiza é o próprio Estado, na medida em que traz o nome dessas organizações, dessas articulações, as institucionaliza e valida. E o que é mais perigoso é que essas organizações, se é que dá pra usar esse conceito, vão em certa medida conseguir um capital financeiro e passar, sim, a controlar os presídios de forma financeira. Que é um dos aspectos que está surgindo hoje no Brasil de também privatizar o sistema prisional. Ora, quem passará a controlar isso, o seu capital, é o próprio crime. E é nesse sentido que o Estado, a passos rápidos e agora com esse pacote, está organizando a criminalidade, inclusive financeiramente.

EC – O fatiamento do pacote o surpreende?
Kieling – Eu vejo isso como uma estratégia que ele está utilizando para conseguir sinergia com os diferentes grupos que vão discutir esse projeto. Ele joga o pacotão pro Congresso discutir e lá no Congresso começa o fatiamento para os grupos afins. E obviamente que uma parte vai chegar no Judiciário. Isso dá uma repercussão na mídia, similar à Lava Jato, pois desenvolve tantas etapas e tem sempre assunto na mídia, o que o coloca sempre em evidência. Vejo isso como uma estratégia política, para ter visibilidade, e para criar essa sinergia com os diferentes grupos que vão criar esse debate.

"É licença para matar, autoriza a execução sumária ao estabelecer que o agente pode ser julgado, mas cabe ao juiz assumir uma postura dentro da teoria dos jogos e dizer 'não, o policial agiu com medo', em legítima defesa"

Foto: Fernando Frazão/ ABr

“É licença para matar, autoriza a execução sumária ao estabelecer que o agente pode ser julgado, mas cabe ao juiz assumir uma postura dentro da teoria dos jogos e dizer ‘não, o policial agiu com medo’, em legítima defesa”

Foto: Fernando Frazão/ ABr

EC – Na prática, com o pacote o país terá bem mais que os atuais 60 mil homicídios por ano?
Kieling – Sim, de fato devem aumentar os assassinatos. Mas o que mais me preocupa na nossa realidade é essa questão mais mafiosa surgindo, mais pontual no crime, da formalização do crime. E na medida que eles estão se empoderando do Estado, ou seja, do aparato político, eles estão eliminando os políticos que podem ser oposição ao seu projeto. A Marielle (a vereadora do PSol, Marielle Franco, e seu motorista, Anderson Gomes, foram executados por milicianos no Rio na noite de 14 de março de 2018) é um exemplo de como eles vão abrindo caminho para que os seus ganhem espaço. E isso é perigoso pra nós. Nesse sentido, Moro abre um precedente para o próprio crime dominar o cenário político, o que já acontece com alguns estados, onde alguns políticos são eleitos com o capital e com a autorização dos grupos criminosos. Aqui no Rio Grande do Sul já temos bairros de Porto Alegre, Caxias, Novo Hamburgo, em que os políticos são eleitos com o suporte do crime. Eles estão ganhando esse empoderamento. No momento que Moro abre esse precedente da lei, ele leva o crime a dizer “bom, vamos ocupar tal e tal posição, mas amanhã vamos controlar os presídios, controlar a polícia e o Judiciário”.

EC – O senhor pinta um cenário sombrio…
Kieling – Alguém vai dizer que estou pensando no apocalipse, mas basta olhar numa perspectiva mais abrangente para constatar que essas forças vão começar a atuar juntas nas decisões políticas, financeiras. Vamos aprender a conviver com o crime. Como já ocorreu na Bolívia, na Colômbia. É para onde estamos caminhando e a passos largos. Por mais que se diga que temos que varrer a corrupção da política. Olha, eu venho acompanhando esse cenário político de envolvimento de capital empresarial e sempre se arrumou brechas na lei. Um exemplo? Na medida em que se proibiu a participação de pessoas físicas (empresários) no financiamento de campanha, os candidatos e partidos passaram a contratar pessoas para trabalhar temporariamente para as campanhas. Quer dizer, invisto em dinheiro, mas contrato pra trabalhar na minha empresa e depois coloco trabalhando esse pessoal na rua, para fazer panfletagem, entrega de santinho, bandeiraço e tudo mais. Isso não aparece na contabilidade do partido. Então, tem todo um processo que dá pra fazer tranquilamente e que fica sempre em benefício de alguém. Ora, esse processo o crime já faz.

EC – Há solução para a segurança pública nacional?
Kieling – No Brasil, na área de segurança, dos órgãos que fazem o setor, o que vejo como grande carência é o conhecimento científico, a aplicação científica, é a falta do conhecimento e da aplicação científica. Tudo é feito pela cabeça de quem está liderando, mas sem um real conhecimento da realidade. É fácil construir um castelo bonito, mas como colocar esse castelo na realidade se não há encaixe? E as nossas principais lideranças não detêm conhecimento científico.

EC – Como o conhecimento científico pode fazer a diferença?
Kieling – Só pra fazer um comparativo, o Mohamed Atta, um dos terroristas que jogou os aviões nas torres gêmeas, tinha conhecimento de quatro línguas. Era PhD e conhecedor de Tecnologia da Informação entre outros conhecimentos. Pegamos qualquer general no Brasil, de alto escalão, ou qualquer comandante ou delegado, seja quem for, não tem nem um terço do conhecimento de um terrorista. Só pra fazer um comparativo nessa questão de ciência. Se nossos líderes e principais instituições que lidam com segurança pública não têm conhecimento científico significa que estamos tateando no escuro em promover segurança pública no Brasil. E no momento em que estamos tateando no escuro, as fragilidades pra colocar qualquer pacote que deseja construir a nossa Divineia, aquele lugar da liberdade onde canta a Seriema e seremos felizes numa realidade bucólica, isso pode pegar, mas não se sustenta ou consolida na realidade concreta, onde a criminalidade não é conhecida pelos órgãos de segurança e detém conhecimento até um pouco mais avançado que os próprios órgãos de segurança.

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EC – O senhor acredita que o pacote anticrime passa no Congresso?
Kieling – O pacote vai passar, não no seu todo, mas vai passar. Porque representa esse símbolo do herói. E pros políticos é complexo, fica muito complicado começar a trancar, dizer que está equivocado e que não pode ser aprovado. Então vão fazer ajustes para que o pacote passe, a fim de não sofrer desgaste de suas imagens. Porque o povo em geral não tem conhecimento da praxis. Então começa a confiar neste Dom Quixote, acreditar que os moinhos de vento são gigantes. E na medida em que o político enxerga essa situação ele limita também a sua ação para dizer que Moro está errado. Isso é muito complexo porque afeta diretamente o eleitorado. Se não afetasse, ou o eleitorado estivesse esclarecido, daria bagagem para se fazer uma oposição a esse pacote. Mas não se tem isso, e é óbvio que o Congresso vai jogar para o Judiciário resolver. Algumas questões que dizem respeito à Constituição eles vão jogar pro Judiciário. Os políticos não vão querer o desgaste. Estamos entrando agora num processo eleitoral, daqui a dois anos já tem eleição. E não sei se Moro fica dois anos lá.

EC – O senhor mencionou que o projeto fomenta uma guerra social. Por quê?
Kieling – Vejo que o judiciário vai bater o martelo e ter um controle sobre essas questões mais pontuais da execução sumária e da própria segurança. Por que mais hoje mais amanhã algum fato poderá surgir no meio policial e fará o judiciário mudar essas leis. A sociedade precisa se dar conta que o projeto de lei está carregado de juízos de valor. É necessário identificar onde estão esses juízos, porque isso não pode acontecer numa lei e acaba segmentando a sociedade, promovendo uma guerra de classes, uma guerra social. Por outro lado, identificar os pontos onde o projeto de lei simplesmente autoriza o processo de interpretação parcial, essa autorização da parcialidade. Por outro ponto, é necessário também trabalhar a questão do método que ele coloca na proposta de lei que é a teoria dos jogos.

EC – Qual método?
Kieling – A essência de todo o projeto é a teoria dos jogos, onde ele autoriza o juiz a definir de acordo com a cabeça dele e não mais de acordo com o que os advogados apresentam. Ele (o juiz) vai tomar partido. É necessário também para se trabalhar na sala de aula, nas escolas, nas universidades, como a teoria dos jogos está embutida nesse contexto aqui. É estudar basicamente quando ele trabalha no dilema do prisioneiro, que é esse o conceito da teoria dos jogos. Ele coloca isso como se fosse uma alternativa, e sabemos por A mais B, por experiência e evidências, que a teoria dos jogos oportuniza que a autoridade puna de acordo com a sua cabeça. Ou seja, é preciso identificar como esse projeto de lei é autoritário e acaba criando todo um processo que regride a nossa proposta de legislação a no mínimo 500 anos, a uma caça às bruxas.

EC – Moro quer fazer do governo sua plataforma para algo maior?
Kieling – Moro não abriu mão do judiciário. Está, digamos assim, afastado temporariamente. O que eu percebi ao longo desse processo foi o desgaste dele como juiz, de esvaziamento. A mídia começou a cansar de olhar pra ele e para o Lula, em especial. Então esse processo de desgaste, no momento em que estava nos holofotes da mídia, o leva a pensar medidas e encontrar caminhos para que continue aparecendo e em evidência. Aí entra a vaidade, a “picada da mosca azul”. Moro quer aparecer, quer estar em evidência. E o que acontece: se afasta do desgaste da legislação, de envolver empresários, apontar pra políticos, e deixa apenas alguns presos. Passa a bola pra outros continuarem o processo e vai para o cenário de Brasília. Lá, ele levanta agora a sua personalidade através desse pacote, desses projetos, porque quando eu falei que ele peca na análise de ciência, da base de ciência, o projeto dele tem que ser desmembrado em ao menos três. São três projetos, no mínimo, porque abrangem campos diferentes, específicos, e que mudam a constituição.

EC – O ex-juiz criminaliza tudo e todos?
Kieling – Ele (Moro) surgiu num vácuo das instituições políticas do Estado. E como ele surge nesse processo? Ele começa a puxar questões de uma investigação que fez da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). E por ali ele foi construindo uma interpretação, em que todos que estão na política são envolvidos com corrupção. Como se na história da humanidade só o Brasil tivesse isso e tivesse começado recentemente. E ele busca isso no sentido de falta de ciência básica, sem o sentido de entender as evidências, de buscar em certa medida levantar os fatos, tão somente os fatos.

EC – Qual a sua opinião sobre o encarceramento em massa?
Kieling – Vejo como uma proposta que não tem como dar resultado positivo no Brasil. O encarceramento em massa exige uma construção também de prédios em massa. Temos um déficit de prisões, isso no Rio Grande do Sul, que ultrapassa no mínimo 10 mil celas para abrigar os presos. E como há uma tendência de crescimento anual no número de encarcerados de 4,5% a 5%, conforme o ano, se houvesse construção de prédios para encarcerar teríamos que no mínimo ter uma visão que o número de celas no país teria que crescer também na mesma proporção para acompanhar a demanda de mercado criminoso. Outro ponto é a falta de recursos humanos para dar segurança e garantia a essas prisões. Não tem capital humano e nem financeiro pra sustentar toda essa máquina, o que leva a iniciativa privada a ter espaço nisso. Porém, ela assumindo esse espaço vai chegar o momento do esgotamento financeiro da iniciativa pública. E aí entra o crime para dar esse suporte financeiro. Como o crime já está se organizando, passará a ser um dos elementos financiadores dos presídios que terão essa parceria público-privada. Ou seja, daqui a 15, 20 anos, caso sejam construídos esses presídios no formato PPP, teremos a penetração financeira do próprio crime em determinados presídios e para “cuidar” dos seus próprios. Então temos um círculo vicioso, em que a iniciativa do crime continua sendo um dos principais movimentadores do sistema carcerário e de segurança.

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