JUSTIÇA

Cartel de trens é multado em R$ 535,1 milhões pelo Cade

Fraudes em licitações para eliminar concorrentes e superfaturar trens resultaram na condenação de 11 empresas e 42 empresários. Cartel agia em São Paulo, Distrito Federal, Minas Gerais e Rio Grande do Sul
Por Gilson Camargo / Publicado em 8 de julho de 2019
A espanhola CAF e a francesa Alstom atuaram para eliminar concorrentes na licitação e elevar preços de trens comprados pela Trensurb

Foto: Trensurb/ Divulgação

A espanhola CAF e a francesa Alstom atuaram para eliminar concorrentes na licitação e elevar preços de trens comprados pela Trensurb

Foto: Trensurb/ Divulgação

O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) condenou 11 empresas e 42 pessoas físicas por formação de cartel em licitações públicas de trens e metrôs realizadas em São Paulo (SP), Distrito Federal (DF), Minas Gerais (MG) e Rio Grande do Sul (RS). Em sessão realizada nesta segunda-feira, 8, o Tribunal concluiu que, pelo menos, 26 certames foram prejudicados pela atuação do cartel durante os anos de 1999 a 2013. Em um dos golpes aplicados pelo cartel, em 2012, as empresas CAF e a Alstom formaram um consórcio para fraudar as licitações da Trensurb (Porto Alegre) e CBTU (Belo Horizonte) para a aquisição de trens de superfície. Ficou acertado que a CAF ficaria com a maior parte do projeto da CBTU e a Alstom, da Trensurb. De acordo com o Cade, a ação coordenada das duas empresas eliminou a concorrência e superfaturou o preço final dos trens. O Conselho apreendeu farta documentação que contém, inclusive, atas de reuniões de planejamento e até registram a comemoração dos resultados das ações dos cartel.

Foram condenadas por práticas anticompetitivas as empresas Alstom Brasil Energia, Bombardier Transportation Brasil, CAF Brasil Indústria e Comércio, IESA Projetos Equipamentos e Montagens, MGE Equipamentos e Serviços Rodoviários, Mitsui & Co Brasil, MPE – Montagens e Projetos Especiais, TC/BR Tecnologia e Consultoria Brasileira, Empresa Tejofran de Saneamento e Serviços, Temoinsa do Brasil, e TTrans Sistemas de Transportes. As multas somam R$ 515,6 milhões. O Conselho também aplicou multas às 42 pessoas físicas condenadas, no valor total de R$19,5 milhões.

A investigação teve início em maio de 2013, com a assinatura de um acordo de leniência entre Siemens, Superintendência-Geral do Cade, Ministério Público Federal e Ministério Público do Estado de São Paulo. Com base nos indícios apresentados, o Cade obteve autorização judicial para realizar, em julho daquele ano, uma operação de busca e apreensão na sede de empresas suspeitas de integrarem o cartel. Foram apreendidos mais de 30 terabytes de dados eletrônicos, além de documentos físicos que, após submetidos a análise, embasaram a instauração do processo administrativo.

Os ex-governadores Geraldo Alckmin e José Serra, ambos do PSDB, na inauguração da Linha 8-Diamante, da CTPM

Foto: CTPM/ Divulgação

Os ex-governadores de São Paulo, Geraldo Alckmin e José Serra, ambos do PSDB, na inauguração da Linha 8-Diamante, da CTPM

Foto: CTPM/ Divulgação

SÃO PAULO – O Cade não divulgou o nome de empresários e autoridades condenadas. Em 2016, três anos após o início da investigação do Conselho, a Justiça de São Paulo aceitou uma denúncia contra sete executivos acusados de cartel e fraude a uma licitação de 2009, durante o governo José Serra (PSDB) em São Paulo, para a criação de uma Parceria-Público Privada (PPP) no setor metroferroviário paulista. A contratação, no valor de R$ 1,8 bilhão, serviu para a operação e a manutenção de 288 novos carros na Linha 8-Diamante da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) e atribuiu às empresas vencedoras a responsabilidade de fazer a revisão da frota por 20 anos. Os investigados eram executivos da francesa Alstom e da espanhola CAF. As duas empresas estão entre as vencedoras da licitação. À época, a juíza Roseane Cristina de Aguiar Almeida, da 29ª Vara Criminal da capital, entendeu que havia indícios de crimes cometidos por cinco executivos da Alstom e dois da CAF e eles foram denunciados pelo Grupo de Atuação Especial de Combate a Delitos Econômicos (Gedec) do Ministério Público de São Paulo.

Contatos ilícitos tiveram início em 1999, com a licitação da Linha 5 do Metrô de São Paulo, da CPTM, a mais visada pelo cartel

Foto: CPTM/ Divulgação

Contatos ilícitos tiveram início em 1999, com a licitação da Linha 5 do Metrô de São Paulo, da CPTM, a mais visada pelo cartel

Foto: CPTM/ Divulgação

DOCUMENTAÇÃO – A investigação do Cade constatou que o cartel foi organizado a partir de encontros e contatos entre empresas e/ou consórcios concorrentes ou que tinham potencial interesse em determinada licitação pública. Os contatos aconteciam antes e durante os certames, estendendo-se em alguns casos até o momento posterior à adjudicação do contrato. “O objetivo do cartel era dividir o mercado, fixar preços, ajustar condições, vantagens e formas de participação das empresas nas licitações. Para tanto, os membros do conluio utilizaram estratégias como supressão de propostas, apresentação de propostas de cobertura, formação de consórcios e realização de subcontratações, e ainda contaram, por vezes, com a colaboração e facilitação de consultorias especializadas”, descreve o comunicado do Cade.

A totalidade das provas das condutas anticompetitivas inclui e-mails, faxes, anotações manuscritas, atas de reunião, planilhas e documentos impressos. De acordo com o Conselho, o material contém discussões explícitas para realização e monitoramento do cartel, registros de reuniões entre concorrentes, tabelas de alocação das licitações e valores das propostas a serem apresentadas, ajustes para compensação entre projetos, além de relatórios comprovando o sucesso dos acordos anticompetitivos e o consequente superfaturamento dos contratos.

Seis empresas foram excluídas da investigação

Ao todo, 11 empresas foram condenadas, 4 foram inocentadas por falta de provas e uma, a Siemens, fez acordo de leniência, sendo excluída do julgamento por ter colaborado com as investigações. Serveng, Hyundai, RHA, Caterpilar foram inocentadas por falta de provas. A Procint e a Constech chegaram a constar na lista do Cade, mas não foram investigadas porque sua suposta participação nas fraudes prescreveu.

Alstom Brasil Energia – multa de R$ 128,6 milhões

Bombardier Transportation Brasil – R$ 85,6 milhões

CAF Brasil Indústria e Comércio – R$ 167 milhões

MGE Equipamentos e Serviços Rodoviários – R$ 80 milhões

Iesa de Projetos Equipamentos e Montagens – R$ 927 mil

Mitsui & Co Brasil – R$ 600 mil

MPE – Montagens e Projetos Especiais – R$ 35,2 milhões

TC/BR Tecnologia e Consultoria Brasileira – R$ 17,7 milhões

TTrans Sistemas de Transportes – R$ 20,230 milhões

Tejofran de Saneamento e Serviços – multa de R$ 23 milhões

Temoinsa do Brasil – R$ 17,7 milhões.

 

Projetos superfaturados pelo cartel

Linha 5 – Metrô de São Paulo

Os contatos ilícitos tiveram início em 1999, por ocasião do processo licitatório referente ao projeto da Linha 5 do Metrô de São Paulo, realizado pela Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). Participaram desses acordos anticompetitivos as empresas Alstom, DaimlerChrysler (atualmente Bombardier), CAF, Mitsui e Siemens. No âmbito desse projeto, as estratégias utilizadas pelas participantes foram o reconsorciamento e, possivelmente, a realização de subcontratações. As empresas inicialmente se apresentaram na licitação como concorrentes em consórcios diferentes e após a fase de pré-qualificação combinaram a formação de um consórcio único. O objetivo foi eliminar a possibilidade de disputa, com a divisão do objeto entre todos os participantes do cartel, gerando a elevação dos preços das propostas e, consequentemente, do contrato assinado.

Manutenção de trens da CPTM

No início dos anos 2000, os acordos anticompetitivos se expandiram para as licitações referente aos projetos da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) para manutenção dos trens das Séries 2000, 3000 e 2100. O acordo anticompetitivo estabelecia a divisão das licitações entre as empresas Siemens, Alstom, Bombardier, CAF Brasil Indústria e Comércio S/A, TTrans, Temoinsa, Tejofran e Mitsui que combinaram quais seriam as vencedoras de cada certame, quais delas seriam subcontratadas após a adjudicação do contrato, de forma a recompensar sua colaboração no acordo colusivo (seja pela supressão de propostas, seja pela apresentação de propostas de cobertura).

Segundo a investigação, a Série 2000 foi alocada ao Consórcio Cobraman (formado por Alstom, Bombardier e CAF). Já a Série 3000 foi destinada à Siemens e a Série 2100 ao consórcio Alstom e CAF, que subcontrataria as empresas Bombardier, Temoinsa e Mitsui. Também participaram desses acordos as empresas Tejofran e TTrans.

Nos anos 2006 a 2008, ocorreu outra rodada de negociações entre as empresas para dividir o objeto de novas licitações realizadas pela CPTM para contratação de serviços de manutenção dos trens das Séries 2000, 3000 e 2100. Participaram novamente do acordo as empresas Alstom, Bombardier, CAF, Siemens, Temoinsa, Tejofran, TTrans, além de MPE e MGE.

Da mesma forma, entre os anos 2011 e 2013 Alstom, Bombardier, CAF, Siemens, Temoinsa, Tejofran, TTrans, MPE e MGE se reuniram novamente para dividir licitações realizada pela CPTM. Dessa vez, os alvos dos acordos eram os objetos dos certames para manutenção dos trens das Séries 2070, 7000, 7500 e 9000, além de 2000, 3000, 2100.

As empresas Alstom, MGE, CAF, Bombardier, Siemens, Tejofran e Mitsui também estabeleceram contatos para eliminar a competição do projeto de aquisição e manutenção de trens da Série 5000 da CPTM, em 2009. O ajuste era destinado à formação de um acordo global entre os três grupos interessados em participar da licitação: Bombardier, Siemens, Tejofran e Mitsui; CAF; e Alstom e MGE. O objetivo era que todos se beneficiassem com a simulação de concorrência no certame.

Linha 2 – Metrô de São Paulo

Em 2005, as empresas Alstom, Siemens, TTrans e Bombardier mantiveram contatos que afetaram a concorrência da licitação referente ao projeto de extensão da Linha 2 do Metrô de São Paulo. O acordo celebrado entre as envolvidas no cartel estabeleceu a formação de dois consórcios para dividir o objeto do certame. O Consórcio Linha Verde (Alstom e Siemens) foi designado como o vencedor, enquanto o Consórcio Linha Dois (Bombardier, Balfour Beatty e TTrans) apresentou uma proposta perdedora para, posteriormente, ser subcontratado.

Projeto Boa Viagem – CPTM

Entre 2004 e 2005, as empresas Siemens, Alstom, Bombardier, CAF e IESA realizaram vários contatos com o objetivo de dividir os lotes da licitação do projeto Boa Viagem da CPTM. O certame tinha como objetos a execução de serviços voltados à expansão da malha, manutenção de vias, melhorias nos sistemas fixos de vias e de alimentação e à revitalização do material rodante. No acordo anticompetitivo, foram adotadas estratégias de apresentação de propostas de cobertura ou supressão de propostas, simulando a concorrência do certame.

Aquisição de carros – CPTM

No período de 2007 a 2008, quando foram realizadas as licitações dos projetos da CPTM para aquisição de 320 carros e de 64 carros, as empresas Alstom e Siemens realizaram acordos anticompetitivos com o objetivo de eliminar a concorrência no certame. As empresas fizeram diversos contatos para combinar qual consórcio seria vencedor de cada licitação e de que forma se dariam as subcontratações.

Linhas 1 e 3 – Metrô de São Paulo

Entre 2008 e 2009, as dez empresas participantes das licitações para reformas das Linhas 1 e 3 do Metrô de São Paulo realizaram acordos anticompetitivos para dividir entre si o escopo dos projetos. Para eliminar a concorrência no certame, Alstom, Siemens, Bombardier, Tejofran, MGE, TTrans, Temoinsa, IESA, MPE e CAF utilizaram estratégias de formação de consórcios e realização de subcontratações, bem como apresentação de propostas de cobertura e não apresentação de documentos de habilitação básicos.

Manutenção de trens – Metrô DF

No projeto de manutenção da Companhia do Metropolitano do Distrito Federal (Metrô DF), realizado em 2005, também foram mantidos contatos entre concorrentes que resultaram em um acordo anticompetitivo envolvendo as empresas Alstom, IESA, TCBR e Siemens. O objetivo do cartel foi dividir o escopo do projeto por meio da subcontratação do consórcio perdedor pelo consórcio vencedor. Desse modo, foi estabelecido que 52% do volume total seria do Consórcio Metrô Planalto (constituído por Alstom, IESA e TCBR) e os outros 48% para o Consórcio Metroman (formado pela Siemens e Serveng).

Aquisição de trens – CBTU e Trensurb

Em 2012, CAF e Alstom mantiveram contatos que resultaram na divisão das licitações promovidas pela Empresa de Trens Urbanos (Trensurb) e pela Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU), destinadas à aquisição de trens para os metrôs de Porto Alegre e Belo Horizonte, respectivamente. Em razão desse acordo, as empresas participaram das licitações como um consórcio e definiram que a CAF ficaria com a maior parte do projeto da CBTU e a Alstom com a maior parcela do certame da Trensurb. A atuação coordenada das empresas teve como objetivo eliminar a competição das licitações e elevar o preço final dos projetos.

Seis anos depois de comprar 15 novos trens da denominada Série 200 por R$ 244,64 milhões de reais (valores atualizados), a Trensurb vê os veículos enferrujarem em seu pátio. Problemas mecânicos que parecem insolúveis os impedem de rodar. De 2014, quando começaram a ser entregues e entrar nos trilhos, até agora, os 15 trens jamais trafegaram juntos. Atualmente, apenas cinco estão em operação, num exemplo do descaso com o dinheiro público e na prestação de serviço aos 200 mil usuários/dia do sistema.

LENIÊNCIA – Em razão da declaração de cumprimento integral das obrigações do acordo de leniência, o Tribunal do Cade decretou a extinção da pretensão punitiva da Administração Pública em favor da Siemens e seis pessoas físicas ligadas às empresas.

OUTRAS PENALIDADES – Além da aplicação de multas, o Conselho determinou à Alstom pena de proibição de participação em licitações públicas, nos ramos de atividade afetados pela conduta, realizadas pela Administração Pública federal, estadual, municipal e do Distrito Federal e por entidades da administração indireta, pelo prazo de cinco anos. O Tribunal também recomendou aos órgãos públicos competentes para que não seja concedido às empresas Alstom, Bombardier e CAF, pelo prazo de cinco anos, parcelamento de tributos federais devidos ou para que sejam cancelados, no todo ou em parte, incentivos fiscais ou subsídios públicos, nos termos da alínea ‘b’ do inciso IV do artigo 38 da Lei 12.529/11.

ARQUIVAMENTO – O Conselho determinou o arquivamento do processo em relação às empresas Serveng-Civilsan e Hyunday, além de pessoas físicas relacionadas a elas, por insuficiência ou ausência de provas. Com relação às empresas Procint Projetos e Consultoria Internacional e Constech Assessoria e Consultoria Internacional, além de três pessoas físicas, o processo foi arquivado por prescrição da pretensão punitiva. O Tribunal também arquivou o caso em relação às empresas Caterpillar Brasil e RHA do Brasil Serviços de Infraestrutura, por reconhecimento da “ilegitimidade passiva”. O processo foi desmembrado em relação a duas pessoas físicas e a individualização da representada Balfour Beatty Rail Power será feita nos autos do processo nº 08700.000448/2015-32.

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