Eduardo Fösch: caso de racismo e assassinato chega à Comissão Interamericana de Direitos Humanos
Foto: Igor Sperotto / Arquivo Extra Classe
Em 28 de abril de 2013, havia 150 jovens em uma festa num condomínio de classe alta, apenas um era negro. Por que este jovem foi espancado e morto por seguranças? Por que, na época, a polícia fez de tudo para parecer acidente? Por que o caso ainda não foi julgado sequer em primeira instância? Atrás de respostas para essas perguntas e buscando justiça para o filho, os pais do adolescente Eduardo Vinícius Fösch dos Santos, assassinado aos 17 anos, denunciaram o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) – órgão da OEA – na última quinta-feira, 10 de dezembro, em Washington, Estados unidos. Segundo a advogada Lesliey Gressler Gonsales, que representa a família da vítima, a medida pretende dar visibilidade à morosidade da Justiça brasileira, que desde 2013 “sequer julgou o caso em primeira instância“.
Estado agressor
“Já há bastante tempo nós (os advogados) viemos batalhando para que esses processos penal e cível andem com mais celeridade. Atualmente, ambos os processos estão parados e não há qualquer interesse da Justiça em fazer com que eles andem”, explica a advogada. Perguntada pela reportagem se o fato de haver entre os moradores do condomínio pessoas de classe alta com influência no Judiciário a advogada respondeu: “isso eu não posso afirmar, mas posso dizer o que consta na nossa intervenção junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos: lá questionamos a inércia do Estado brasileiro”.
Segundo Lesliey, desde o início esses dois processos estão demorando. “Queremos responsabilizar o Estado pelo sofrimento que esta mãe e este pai estão passando pelo fato de que até agora, depois de sete anos, se mantém sem qualquer resposta, responsabilização ou punição. Pior que isso, nem mesmo a sentença de pronúncia ou no Cível, de primeiro grau. Não é normal que se leve esse tempo todo. Há algo estranho aí. Por isso estamos questionando”.
Inquérito levou 33 dias para ser aberto
Foram 33 dias para abrir o inquérito policial à época do acontecimento e a tese da polícia era de acidente. “Não existe investigação de acidente ou homicídio que possa esperar 33 dias para começar a ser investigado”, explica a advogada. “Nesse tempo podem ser apagadas as imagens das câmeras do condomínio e já limparam a cena do crime e não há vestígios de nada. Por isso estamos questionando por que o Estado brasileiro não fez seu trabalho direito. O que esperamos com isso é que tanto a Justiça cível como a criminal deem andamento nos processos”.
“A violência que meu filho sofreu nós não aceitamos de forma alguma. Ele foi agredido, morto e as pessoas do condomínio envolvidas foram negligentes. Na sequência disso, o próprio processo está sendo tratado de forma totalmente morosa e sem qualquer andamento significativo. Um ano ou mais entre um pequeno trâmite e outro. Nisso, já se passaram sete anos sem um desfecho para o caso. Estamos a caminho do oitavo ano do falecimento do Eduardo e não temos nenhum resultado, nenhuma sentença, nada. Sequer houve a denúncia dos réus para irem a julgamento. Ninguém foi punido. Esse é um conjunto de fatores que não consigo aceitar”, desabafa Jussara Regina Föch, 54 anos, mãe da vítima.
Injustiça sentida na pele
Foto: Acervo da Família/ Reprodução
Ao ser perguntada pelo Extra Classe se o fato de seu filho ser negro influencia na procrastinação da Justiça, Jussara é categórica. “Eu acredito que sim. O próprio fato só ocorreu e teve o desfecho que teve em função da cor da pele do Eduardo. E o processo todo é conduzido da forma costumeira de como a Justiça trata no Brasil casos de pessoas afrodescendentes”.
A denúncia na CIDH resulta do esforço de Jussara em buscar Justiça para o filho, que ela entende não ser caso isolado. “Estou aprendendo toda a questão jurídica e sobre os direitos que estão em vigor para cada cidadão. Este passo é mais um aprendizado e um exercício do direito e da cidadania. Muitas vezes a gente precisa estudar e aprender o que é direito, para depois usufruir disso. Para mim, o exercício do direito é muito importante, porque os deveres eu já cumpro há 54 anos. Então, a gente precisa ter os direitos igualmente respeitados e preservados. Inclusive, nos casos em que a legislação é falha temos de correr atrás para tentar aprimorar as leis”, explica.
Violência Institucional
Na última quinta-feira, 10, a Câmara dos Deputados votou favorável à alteração da Lei de Abuso de Autoridade por meio do PL 5091/20, ao tipificar como Violência Institucional situações em que as autoridades venham a submeter as vítimas ou suas famílias a novo sofrimento. O conceito é de “revitimização”. Ainda será avaliada no Senado antes de ir à sanção presidencial.
Tanto Jussara Föch, quanto sua advogada entendem que o caso se encaixa neste tipo de abuso. Casos similares não faltam para corroborar a tese. Vide o ocorrido em Santa Catarina com Mariana Ferrer, que sofreu discriminação na corte por ser mulher e tantos outros. Em recente entrevista ao Extra Classe, a desembargadora Kenarik Boujikian, afirmou que a Justiça brasileira violenta duas vezes os direitos das vítimas quando são mulheres, negros, pobres ou pertencentes a minorias.
“Eu senti isso na pele”, diz Jussara, “não apenas pela cor do meu filho ser negra, mas também em função de haver uma diferença de classe econômica. Por nós pertencermos a uma classe econômica considerada inferior à classe elevada dos responsáveis pelos seguranças que cometeram as agressões que mataram meu filho. Ou seja. O fato de eu pertencer a uma classe mais baixa, vamos dizer assim, contribui com a lentidão da Justiça”.
Foto: Clóvis Victória/Sindibancários/ Arquivo
Entenda o caso Eduardo Fösch
Na noite de 27 de abril de 2013, Eduardo Vinícius Fösch dos Santos participou de uma festa com outros 150 adolescentes com bebida alcoólica liberada em residência do condomínio de luxo Jardim do Sol, na zona sul de Porto Alegre (RS). Eduardo era o único negro entre os convidados. A festa já terminava quando Eduardo se afastou de seus amigos por alguns instantes e não foi mais visto, por volta das 6h. Eduardo seria encontrado seriamente ferido no pátio da residência vizinha apenas as 11h da manhã seguinte. O adolescente foi levado ao Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre (RS), mas, depois de vários dias em coma, faleceu em 6 de maio de 2013. O incidente foi imediatamente levado ao conhecimento das autoridades policiais, ainda no dia 28 de abril de 2013.
Não foi acidente
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Depois de ouvir a declaração de pessoas presentes na festa e fazer levantamento fotográfico do local, as autoridades chegaram a conclusão de que teria havido um acidente. Eduardo teria caído do terreno da residência onde ocorria a festa, no terreno da residência onde foi encontrado, um desnível de seis metros, e essa seria a origem dos ferimentos que levaram a sua morte.
Entretanto, Jussara Regina Fösch e Júlio César Rodrigues dos Santos, pais de Eduardo, não se convenceram da conclusão das autoridades policiais. Eduardo era surfista e skatista, tinha excelente equilíbrio. Também, seus amigos presentes na festa disseram que se encontrava lúcido na última vez que o viram. Já que as autoridades policiais nunca requisitaram a formulação de laudo pericial pelo Instituto Geral de Perícias, o que seria um procedimento padrão para casos como esse, os pais de Eduardo decidiram contratar perito particular para analisar o local do incidente.
Perito particular indica violência
O perito Celso Menezes Danckwardt, especialista em levantamento de locais de morte, confirmou as suspeitas da família. Conforme Celso, evidências deixadas de lado pelas autoridades policiais indicam que Eduardo não teria sido vítima de acidente, mas de ataque violento com objeto contundente.
As lesões no dorso de sua mão indicam cortes ao desferir socos em situação de defesa; as lesões em sua cabeça e seu tórax indicam que foi vítima de golpe com objeto contundente; e. os traumatismos graves na nuca, o padrão de sangue no chão e na parede ao seu redor, a ausência de lesões nos cotovelos e/ou nos tornozelos indicam estava desacordado quando foi lançado sem reação do alto do desnível entre as duas residências.
Ministério Público
De posse do laudo, o juízo responsável não autorizou o arquivamento do inquérito. Ordenou que retornasse às autoridades policiais para que dessem prosseguimento às investigações. Os pais de Eduardo também passaram a atuar no caso como assistentes de acusação, representados pela advogada Lesliey Gressler Gonsales. Ante os erros e a demora das autoridades policiais na condução das investigações, o Ministério Público decidiu instaurar procedimento de investigação próprio para colher declarações de testemunhas e levantar provas.
Agressão motivada por racismo
Em 17 de novembro de 2015, o Ministério Público apresentou denúncia criminal contra Isaías de Miranda, vigia, e Luis Fernando Souza de Souza, policial civil e consultor privado de segurança, ambos contratados pelo Condomínio Horizontal Jardim do Sol. Conforme a denúncia ministerial, Isaías teria atacado Eduardo querendo ou, pelo menos, assumindo o risco de matá-lo por motivações racistas. Foi denunciado por homicídio triplamente qualificado. Por sua vez, Luis Fernando teria deixado de adotar as medidas necessárias para a isolamento do local em que Eduardo foi encontrado, ao contrário, mandando um de seus subordinados limpá-lo, bem como teria ordenado que fossem apagadas os vídeos das câmeras de vigilância do condomínio. Foi denunciado por fraude processual.
Mesmo diante das evidências não há decisão judicial
Desde então, foram realizadas audiências para a oitiva de testemunhas e realizadas diligências para a elucidação dos fatos. Entretanto, passados sete anos do, agora sabido, ataque violento contra Eduardo, não existe qualquer decisão judicial. O processo criminal permanece meses sem qualquer andamento por absoluta inércia do sistema de justiça. Ainda não foi proferida a sentença de pronúncia, que reconhece a materialidade do delito e os indícios de autoria pelos acusados, primeiro passo para que os acusados sejam levados a julgamento pelo Tribunal do Júri em Porto Alegre (RS).
Na Justiça Cível é ainda pior
Na esfera judicial cível, o tratamento dado ao caso é ainda pior. Em 11 de agosto de 2014, os pais de Eduardo ajuizaram ação de reparação de danos contra, José Antônio Jacovas e Simone Cristina Schimitz, proprietários da residência e pais de um dos adolescentes responsáveis pela organização da festa, e contra o Condomínio Horizontal Jardim do Sol. Sustentaram a gravidade da situação, a realização de uma festa para mais de cento e cinquenta adolescentes com consumo liberado de bebidas alcóolicas sem a supervisão de outros adultos além dos seguranças contratados para a festa e dos vigias contratados pelo Condomínio. Entretanto, passados sete anos do ataque violento a Eduardo, sequer foi realizada audiência para a oitiva de testemunhas. Esse processo também permanece meses sem qualquer andamento por absoluta inércia do sistema de justiça.
Impunidade e preconceito
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Para o advogado Marcelo Andrade Azambuja, a impunidade dos delitos cometidos contra pessoas negras no Brasil envia a mensagem de que esse tipo de violência é tolerada, o que favorece sua perpetuação e a aceitação social do fenômeno.
A impunidade também favorece persistente desconfiança dessa e de outras populações vulneráveis no Estado e no sistema de justiça. Segundo a última edição do Mapa da Violência do IPEA, em 2018, 75,7% das vítimas de homicídio eram afrodescendentes no Brasil.
Isso significa que uma pessoa afrodescendente tem 2,7 vezes mais chances de ser assassinada no Brasil do que uma pessoa não-afrodescendente. O Estado brasileiro precisa assumir sua responsabilidade e parar de descartar incidentes como esse como “acidentes” ou “casos isolados”.