Incêndio na boate Kiss: oito anos de impunidade
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“Kiss, oito anos de impunidade” é a frase do novo mural grafitado sobre a fachada do que restou da boate Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, onde um incêndio de grandes proporções matou 242 jovens, a maioria universitários, na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013.
O incêndio provocado a partir de uma desastrosa performance de pirotecnia durante um show se transformou em uma tragédia de grandes proporções devido a uma sequência de negligências e omissões por parte do poder público e dos donos do estabelecimento.
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Em novembro de 2016, o Conselho Superior do Ministério Público do RS (MPRS) arquivou o inquérito no qual eram citados por improbidade administrativa, o ex-prefeito de Santa Maria, Cézar Schirmer (PMDB), dois secretários municipais e outros dois funcionários da prefeitura.
Além disso, Schirmer, que é advogado, foi premiado com cargos públicos por companheiros de partido, o antigo PMDB, atual MDB. Em outubro de 2019 foi nomeado secretário da Segurança Pública do estado na gestão do então governador Ivo Sartori (MDB) e, em janeiro deste ano, assumiu a Secretaria de Planejamento de Assuntos Estratégicos da prefeitura de Porto Alegre no governo de Sebastião Melo (MDB).
Quatro réus continuam impunes
Quase uma década depois da tragédia que comoveu o país e gerou grande repercussão internacional, os quatro réus do caso continuam impunes. Eles aguardam o júri popular, transferido para Porto Alegre por manobras dos advogados e do Ministério Público. O julgamento público ainda não tem data confirmada, mas poderá ocorrer no segundo semestre deste ano.
Em 2017, o Tribunal de Justiça do estado (TJRS) já havia decidido que os sócios da boate Elissandro Spohr e Mauro Hoffman e os músicos Luciano Bonilha e Marcelo de Jesus deveriam ir a júri pelo homicídio de 242 pessoas e a tentativa de homicídio de outras 636.
No entanto, numa decisão sem fundamento diante das evidências e provas existentes, um recurso da defesa foi julgado no fim de 2017 e os desembargadores do TJRS decidiram que os réus não iriam mais a júri popular por considerar que esse tipo de julgamento “é reservado para os crimes mais graves”. Pior, o TJRS desconsiderou que tenha havido dolo, ou seja, quando alguém age de forma a provocar a morte de outra pessoa.
Cabe lembrar que o que o judiciário hesitou em considerar crime grave provocou a morte de 242 e ferimentos graves em 636 pessoas; e que seguranças praticamente empurraram os jovens para a morte ao bloquear a única saída do estabelecimento. Após diversos recursos que restabeleceram o julgamento público, os quatro réus aguardam em liberdade.
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“Essa situação é muito injusta. São oito anos de sofrimento e dor e, durante esses anos, a gente perdeu muitos familiares, pais de vítimas, que tiveram outras doenças, agravadas pela dor da perda, e acabaram morrendo”, lamenta Flávio Silva, presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria.
Fundada cerca de dois meses após a tragédia, a entidade reúne pais e familiares das vítimas em busca de reparação. Flávio Silva perdeu a filha, Andrielle, de 22 anos, no incêndio.
Na ocasião, ela estava na discoteca com mais quatro amigas para celebrar seu aniversário. Todas morreram asfixiadas pela fumaça tóxica liberada pelo fogo que consumia a espuma de isolamento acústico do local.
Homenagens às vítimas
“A gente não teve tempo de curtir o luto, porque nós partimos do luto para a luta. Então, é uma questão de a gente tentar transformar a dor num ato de amor, que é esse ato de prevenção, e tentar salvar vidas”, afirma Silva.
Todo dia 27 de janeiro é marcado por homenagens às vítimas do incêndio de Santa Maria. Este ano, por causa da pandemia, a homenagem será virtual. A Associação de Familiares Vítimas e Sobreviventes da Tragédia organizou uma live para as 20h30 desta quarta-feira, que será mediada pelo jornalista Marcelo Canellas, com a participação dos atores Tony Ramos, Chistiane Torloni, Dira Paes, a autora de teledramaturgia Glória Perez, a mãe de uma das vítimas da tragédia, Ligiane Righi, e o jurista Jair Krischke, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul (MJDH).
Nesta madrugada, os santa-marienses foram lembrados do momento em que começou o fogo na boate. Às 2h30 da madrugada, uma sirene do Corpo de Bombeiros tocou na cidade para lembrar o exato momento em que o incêndio começou, também como forma de homenagear os mortos.
Julgamento longe de Santa Maria
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No processo criminal, com mais de 85 volumes, os empresários e sócios da boate Kiss, Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, além do vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos, e o produtor do grupo musical, Luciano Bonilha Leão, respondem por homicídio simples (consumado 242 vezes, por causa do número de mortos) e por 636 tentativas de homicídio, de acordo com o número de feridos.
Ao longo do ano passado, enquanto o país mergulhava na crise sanitária por causa da pandemia de covid-19, três dos réus (Elissandro, Mauro e Marcelo) travaram uma batalha judicial vitoriosa para que o julgamento pelo júri popular fosse transferido da comarca de Santa Maria para um foro na capital, Porto Alegre.
Em seguida, o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS) interferiu para que Luciano Bonilha também fosse julgado na capital gaúcha, embora ele não tivesse requisitado a medida.
Dessa forma, todos os réus poderão ser julgados numa única data e pelo mesmo júri. Entre os argumentos para pedir o “desaforamento” do caso, os réus alegaram dúvida sobra a parcialidade dos jurados em Santa Maria, por causa da comoção da tragédia, e o ambiente mais distante e controlado da Justiça de Porto Alegre.
Júri de portas fechadas
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Distribuído por sorteio para a 1ª Vara do Júri do Foro Central de Porto Alegre, em dezembro do ano passado, o processo da boate Kiss agora aguarda a designação de um juiz titular para a Vara, já que a magistrada que ocupa atualmente o posto, Taís Culau de Barros, assumirá novo cargo no TJRS) a partir de fevereiro. Só depois que um novo juiz da 1ª Vara for definido é que a data e o local do julgamento serão definidos. Desde já, no entanto, a principal preocupação dos familiares das vítimas é que o júri popular não seja a portas fechadas e permita a participação deles.
“Em entrevista, a advogada de um dos réus informou que estaria peticionando um júri de portas fechadas, alegando restrições da pandemia. A gente teme que isso ocorra. Se acontecer, vamos lutar com todas as forças para reverter. São longos anos de espera. Aconteça o que acontecer, não teremos nossos filhos de volta, mas a gente espera que se faça justiça”, protesta Flávio Silva.
Vítimas impedidas de sair do local do incêndio
Foto: Wilson Dias/Agência Brasil/Arquivo
A tragédia na boate Kiss ocorreu na madrugada de 27 de janeiro de 2013, na região central da cidade. Por volta das 2h30, um integrante da banda Gurizada Fandangueira, que fazia uma apresentação ao vivo, acendeu um sinalizador de uso externo dentro da casa noturna, e faíscas do artefato acabaram incendiando a espuma que fazia o isolamento acústico do local.
A queima da espuma liberou gases tóxicos, como o cianeto, que é letal. Foi justamente essa fumaça tóxica que matou, por sufocamento, a maior parte das 242 vítimas.
Além disso, a discoteca não contava com saídas de emergência adequadas, os extintores eram insuficientes e estavam vencidos. Parte das vítimas foi impedida por seguranças de sair da boate durante a confusão, por ordem de um dos donos, que temia que não pagassem as contas.
Lei Kiss adiada até 2023
O incêndio na Kiss iniciou um debate no Brasil sobre a segurança e o uso de efeitos pirotécnicos em ambientes fechados com grande quantidade de pessoas.
Ainda em 2013, meses após o acidente, a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul aprovou uma lei complementar estadual, batizada de Lei Kiss, que aumentou o rigor de normas sobre segurança, prevenção e proteção contra incêndios em edificações e áreas de risco. Em 2017, uma lei federal, também batizada de Lei Kiss, foi aprovada pelo Congresso Nacional com o mesmo objetivo.
Apesar das iniciativas, no caso da lei estadual do Rio Grande do Sul o prazo para adequação dos edifícios às novas normas foi prorrogado, em 2019, por meio de decreto, por mais quatro anos e só deve começar a valer mesmo, na prática, a partir de 2023.
“Essas prorrogações mostram quem os nossos governantes não aprenderam nada com a tragédia. A impressão que fica é que o risco de mais matança segue legalizado”, critica Flávio Silva, acrescentando que a prevenção deve ser vista como investimento por empresários e o Poder Público. “O que salva vidas mesmo é a prevenção. Ela é um investimento. Enquanto esses empresários pensarem na prevenção como despesa, o Brasil não vai pra frente em termos de garantia de segurança”.